sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

meio Mar Becker, meio Claudia Lisboa

adivinhar na arte de amar do outro
quais artérias do desejo pulsam mais forte
as nuances de seu ser em trajetória

atiçar seus, nossos rios de fogo
achar-lhes um ritmo comum
afinado com a harmonia das esferas

descobrir-lhe os traços distintivos
que podem ser, talvez, sugeridos pelos astros
- mas essa é só uma curiosidade à toa

(nada melhor que a graça de apenas ser)

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

lábios, dentes, língua

pródiga mente que jorra aos borbotões
ideias furiosas
pródigo corpo que se expande 
em tentáculos e mandalas
seus dedos tenros e suaves
arrepiando minhas carnes ansiosas

"não, não quero me envolver
e depois enjoar de você"

domingo, 4 de dezembro de 2022

sonhar é melhor que viver

uma frustração galopante, velha amiga, me arrebata em seus macios braços
e me leva para a cama, me aninha, e eu não tardo em adormecer.
sete pares de horas - e alguns acréscimos -, meu ser ausente desse plano
maléfico, maldito, em que o futuro é sinistro, o presente é difícil
e o passado, doloroso.

antes fossem apenas os problemas de gênero o que me aflige,
o que nos aflige, todas nós, as que nascemos sob o signo da Terra.
mas são eles, sim, a ponta de uma lança cujo comprimento não importa:
seu poder de destruição está na violência do golpe, na frieza da intenção.

no meu sonho adormecido, em que a aflição se faz presente, mas não machuca
- porque não é real no plano concreto, esse que tenho o prazer de poder ignorar -,
minha casa é um palacete, cheia de perigos iminentes, necessidades de reparos,
mas circundada por uma vegetação fresca, ar limpo, sem o tóxico cheiro
da fumaça produzida por escapamentos antiquados.

as aventuras com o Outro são quase análogas:
revejo amigos queridos, revestidos de memórias dúbias, mas não há ressentimentos
(eis uma palavra estranha, um caleidoscópio de amargores
- e não é como se o amargo fosse sempre um sabor repulsivo,
mas tudo o que é muito peca pelo excesso
e eu não tenho conseguido, nunca, equilibrar esses pratos...).

caminho pela rua de trás de minha antiga casa concreta
- a vertiginosa sobreposição de significantes - 
e nela há uma sequência de portas e janelas
de uma vizinhança sinistra e deslumbrante
como as ruas de Santa Teresa - mas sem as colinas.

entro e saio por essas passagens
colhendo rastros de outras vidas
montando quebra-cabeças orgânicos
não encontrando, é claro, o que eu queria
- mas, ao contrário da vida real,
no meu sonho eu obtenho resposta.

(no lindo mundo da minha imaginação
as pessoas agem como eu espero,
a vida é justa, 
a dor tem cura.

no horrendo mundo da alienação capitalista
compra-se anestesia para a alma
[nem todo mundo pode comprar],
a vida não precisa ser justa,
a dor pode ser ignorada.

um arrepio me percorre por dentro,
ao imaginar o momento em que a panela de pressão vai explodir:
isso não tarda.)

terça-feira, 29 de novembro de 2022

ternura é só uma das faces

a primeira, com que eu inauguro o contato.

pense na esfera como o que é: um poliedro de infinitos lados,
e a singularidade do ser humano como essa esfera:
imperfeita, um geóide, à imagem e semelhança da Mãe Terra.
na irregularidade de sua superfície destacam-se algumas planícies,
os vastos oceanos e suas profundezas encobertas,
os desertos de areia, e sal, e gelo,
as cadeias de montanhas, rochosas e ásperas.

pense no encontro como uma conjunção planetária:
a partir de certo momento, os campos gravitacionais começam a interagir.
o primeiro segundo, meu mais agudo ângulo, é a ternura
(ainda que pensem, ainda que queiram enxergar a loucura).

o de vocês, ó grande outro uraniano, é o frio calculismo.

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

poemeto do desgosto

até quando
a desumanização como preço?

entre sabiás e bem-te-vis

na asa da fantasia, embarco.

uma memória tão leve quanto
a sensação de olhar pra um dia em grão
ou delirar em uma noite insone.

o bem-te-vi sou eu, ainda que
uma versão noturna,
presença inconfundível
nas travessias da loucura
- mas sou normal, eu sou.
só não quero ser comum.

o sabiá é você: pena-flecha
a me atravessar sem dó,
com tanta graça
que me enlevou, inequívoco.

isso é o que me sopra a brisa da intuição,
mas ela nunca me conduz o pouso à razão,
e os sonhos estão quase todos mortos... 



domingo, 20 de novembro de 2022

domingo em três tempos

o pensamento:

All the loneliness you make me go through,
You deserve it all back to you. And you're gonna have it.
(Let me feel anger, just let me, let me, let me...)

Then, Cornel West:
"How do you channel that rage into love and justice rather than hatred and revenge?, 'cause the rage sooner or later is gonna bubble up."

In my case, it took thirty-fucking-one years to start bubbling up.


o amor:

"Love is a form of death. You'll never be able to get on the edge of that abyss to make the leap, to know what love is unless you're willing to take that risk." (Cornel West)

"Every attempt of expression of love, even if it doesn't work, is still worth it." (Cornel West)

a luta:

"My fear is fighting against my faith." (bell hooks)

"If you're struggling in some way where you can't find any joy, it's time to step back, reevaluate and consider: is there a struggle that can restore to me that sense of joy?" (bell hooks echoing Paulo Freire)




sábado, 19 de novembro de 2022

ancoragem no acaso

mordi a isca enganchada a oeste do pensamento,
no mesmo lado onde está o coração concreto,
em que se fala em profecias, pertencimento
e viver grandes momentos
(com o perdão pela quebra de paralelismo).

meu eu desdobrado é esse espectro que flutua
e navega e mergulha as águas frias e fundas do intelecto.
não apenas pensamentos, elas também são emoções,
e desse caldo espesso e misterioso ressinto
a - no muito mais das vezes - solitária travessia.

não somos bondosos nem puros, disse a outra,
voz incógnita no turbilhão de conteúdos.
mas o gancho me atraiu precisamente com a ideia
de uma nova ética, radical e simples:
a alma existe, importa e necessita de amor.

o que será do amor sem a coragem da bondade?
o que será do amor sem a pureza da intenção?
amor é ação respeitosa, que promove o crescimento
e não se mistura com abuso, violência, negligência.

"há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer,
nem há desembarque onde se esqueça."
pudera eu, poeta, me esquecer,
fingir que não foram assim
essas últimas três décadas
de navegar meu oceano dentro
e caminhar o deserto fora,
sem porto para um repouso,
sem fundo para descer a âncora,
sem água que mitigue a sede:
"solidão é lava que cobre tudo,
o amargor em minha boca sorri seus dentes de chumbo"...

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

como 2 e 2

quem não conseguiu fazer sua alquimia interior
não vai poder crescer junto comigo.
(this is the spell I cast to myself)

vejam, os anos têm sido impiedosos para nós,
os que crescemos na sociedade pós-industrial.
olhamos ao redor, e antes fosse tudo deserto:
há lixo por toda parte,
ar e água não são mais potáveis,
a terra está contaminada
e o fogo criminoso consome
nossas últimas reservas de vida natural.
na terra brasilis o povo trouxe a primavera nos dentes
mas, de tanto rangê-los, talvez fiquemos banguelas.
ninguém tem nervos de aço, ainda que alguns se proclamem
"anti-frágeis".
ontem completaram-se 100 anos daquele que sabia
que somos feitos de carne, e sangramos
.
não adianta, meu pretenso amigo, trazer tatuadas
inscrições inspiradoras na sua carcaça bela e triste,
se sua terceira dimensão é um poço envenenado.

ou reflorestamos a nascente dos nossos corações,
ou sucumbimos junto ao sistema do poder colonial.
a primavera não vai recuar.

(inexata, dolorosa, mística
matemática humana)

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

2D

como a Terra plana:
um mito pobre, de alienados.

largura: a dos quadris.
altura: alongada pelo salto alto
finalizando pernas nuas.

nada do que corre por dentro importa,
tão afogado está em seu próprio espelho d'água.

(minha terceira dimensão é um mar infinito
que você não é capaz de navegar:
marinheiro de piscina)

terça-feira, 8 de novembro de 2022

full moon, you see me standing alone

entregaria todos os meus vícios
dos mais inofensivos aos mais auto-destrutivos
- entre eles, um continuum insuspeito - 
ao gelado fluxo das águas profundas,
aquelas que não veem o Sol da consciência desperta.
entrego. entrego tudo isso que me rouba de mim,
que me detém em minhas investidas,
que amarra meus pés nos tapetes das etiquetas
e me põe presa nos muros da auto-dúvida
(que é diferente de auto-questionamento,
como o ego é diferente da auto-estima).
entregaria, porque sei que a magia existe,
mas ela depende da feiticeira para se manifestar.
ponho nestas palavras corriqueiras
- minha magia, minha perdição, meu alento - 
a intenção de que a lua cheia carregue
minhas feridas, meus vícios, minhas dores
para debaixo da terra quente e úmida
e que a nossa feiticeira-mãe, maior,
esteja comigo, conosco, todas nós,
em nossos processos de regeneração.

domingo, 6 de novembro de 2022

[...]

secam-me as palavras no fluxo dos dias
secos, depois das lágrimas de alívio:
a aurora de uma linha temporal em que é possível
sonhar com o futuro.
reticente, penso. aqui dentro, silêncio.
por fora, o trabalho da voz e das mãos
navegando o fluxo seco dos dias.
o que se omite é tudo que não são essas palavras:
o fluxo dos meus dias, em que tudo ocorre,
em que muito analiso, piso em falso,
sorrio e sinto raiva,
mais digo do que faço: as tantas coisas que preciso fazer.
a insatisfação crônica que também me obseda,
as unhas roídas de aflição contínua, ancestral,
desde quando... desde há muito, muito tempo.

muitas palavras do lado de fora.
falo muito mais do que costumava,
costumava calar: o que torna tudo tão mais fácil
e mais sofrido, o gozo masoquista.
apanhar não é bom, não.
é um constante atentado contra a minha dignidade,
essa que, hoje sei, vale ouro: mas só pra mim.
a quem mais ela deveria importar? a todo mundo.
mas isso é utopia, e a revolução não acontece
no nível individual.

amo as palavras do lado de dentro,
essas que brotam do meu misterioso âmago,
do mesmo lugar de onde vêm as imagens do meu desejo.
essas que adoro, amo mesmo, o gozo íntimo
de ter uma vida interior tão intensa
quanto vertiginosa:
olhar para dentro é um maravilhoso conforto.
será meu entorpecente favorito
esse encontro com Hipnos, irmão de Tânatos,
filhos de Nyx, a Noite, e Érebo,
as trevas infernais,
a sombra crepuscular.

sei o preço que paguei e pago por minhas escolhas.
selei meu destino comigo mesma há muito tempo.
duvidar de si mesmo é a pior prisão
mas sigo, pés descalços sobre aguda linha,
a tentar escapar, com delicadeza e cautela,
dos muros do cárcere infinito.

o mundo é deserto e solitário.
o amor vem em lampejos,
tudo é seco e árido,
mas às vezes chove e a grama viceja
e é bonito de ver que a Natureza se renova
mesmo que eu não:
vivo de arrastar correntes
como um espectro triste,
flutuando a milímetros do chão.

o mundo é fascinante e imenso,
mas minhas escolhas me prendem a este chão
de tacos envernizados
rodeado por muros brancos
sobre eles, um teto todo meu,
dentro deles, eu, meus livros, 
meu museu de mim mesma,
my song of myself.

[...]

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

investigações erótico-políticas

1. necro- vem de "nékros" (grego), "morto";
2. tanato- tem origem incerta, talvez do aoristo sânscrito "á-dhvani-t", "ocultou-se, desapareceu", particípio "dhavan-ta", "obscuro". Seu uso no sentido de "morrer" resulta de um eufemismo;
3. necro- não tem registro de origem mitológica, até onde eu alcancei
----- "nek-ios" (indo-europeu): cadavérico;
4. Tânatos é irmão de Hipnos, os dois são filhos de Érebo [Trevas Infernais, deriva também "crepúsculo"] com a Noite, Érebo e Noite são irmãos que nascem do Caos, que é o Vazio aberto, anterior à criação, onde surgem Gaia e Eros.
5. "Erotismo é a afirmação da vida até na morte": na morte Tânatos, onde ela se funde com Eros, porque Amor é risco e abdicação [de uma parte] do Eu [às vezes do Eu por completo - ver "Império dos sentidos". Mas aquilo não é Amor, talvez seja amor, mas é um exagero caricatural]. (?) Essa afirmação de Eros em Tânatos não é a afirmação pela proliferação do Necro, o cadáver, o morto, onde não há mais vida (É mais o gesto de abdicar do Eu do que de exterminar o Outro?).

ReferênciaDicionário Etimológico da Mitologia Grega

[de repente, abnegação e sacrifício se tornam traços femininos]
[o Eu é masculino, o Outro é feminino - no senso comum, o mesmo que acha que o capitalismo é natural e imutável]
[a renúncia ao gozo é a raiz do mal-estar na cultura, segundo Pávon-Cuéllar]

Aí ero-tanato-política é uma coisa, e necropolítica é outra.
A necropolítica necrosa uma parte da sociedade - no engano coletivamente autodestrutivo de que o Eu consegue existir sem o Outro.

- Qual é a relação que há entre Eros e Tânatos? São duas pulsões.
- Penso muito na eropolítica contra a necropolítica.
- Há quem fale em politizar a pulsão de morte.

"se antes o sadismo era visto como primário e o masoquismo como a introjeção desse sadismo, agora o masoquismo (pulsão de morte que foi retida no Eu) seria primário e o sadismo serve para proteger a integridade desse Eu ainda precário, expulsando uma determinada cota de pulsão de morte para fora."

[o masoquismo é a cota de pulsão de morte que nos cabe?]

"Um detalhe curioso é que Freud percebe a complexa interação entre os dois grupos de pulsões e que, em dadas condições, 'talvez nos seja permitido declarar […] como sendo igualmente narcísicas as células das neoplasias malignas que destroem o organismo'. (Freud, 1920/2020, p. 169). Ou seja, nem sempre a captura das cotas de pulsão de morte pela libido garante que ela se tornará inócua, é possível que determinadas formações narcísicas sejam de fato mortíferas."

[mortíferas como um câncer - o inferno do igual que se repete indiscriminadamente e não sabe dar o salto em direção ao Outro]

"as restrições e sacrifícios impostos aos indivíduos não se distribuem de forma homogênea na sociedade, resultando disso que alguns sacrificam pouco de sua satisfação pulsional enquanto outros sacrificam demasiado."

[a que mais sacrifica (é sacrificada) é a mulher negra gorda pobre lésbica]

[a recusa da vida como sacrifício é uma face do erotismo. o catolicismo é totalmente desprovido de erotismo nesse sentido.]

"[...] 'narcisismo das pequenas diferenças'[:] Através desse mecanismo, 'é possível ligar um grande número de pessoas pelo 'amor' [aspas minhas], desde que restem outras para que se exteriorize a agressividade'". (Freud, 1930/2020, p. 366).

[a dificuldade do Amor absoluto, que é diferente do amor incondicional]

"O realismo capitalista pode ser definido como 'o sentimento disseminado de que o capitalismo é o único sistema político e econômico viável, sendo impossível imaginar uma alternativa a ele'. (Fisher, 2009/2020, p. 10). Ou ainda: 'Trata-se mais de uma atmosfera penetrante, que condiciona não apenas a produção da cultura, mas também a regulação do trabalho e da educação – agindo como uma espécie de barreira invisível, limitando o pensamento e a ação'". (Fisher, 2009/2020, p. 33).

["blablabla sempre foi assim, não tem como mudar, é como o mundo é blablabla"]

"'Precisa-se ter em mente que o capitalismo é tanto uma estrutura impessoal hiper abstrata quanto algo que não poderia existir sem a nossa colaboração'". (Fisher, 2009/2020, p. 28).

[dialética essência-aparência]

"O combate a essas condições é dificultado por várias estratégias do realismo capitalista: uma descentralização que pode ser sentida (e foi assim descrita por alguns) como declínio da função paterna ou perda da crença no Outro, uma hiper-responsabilização dos indivíduos por seu sofrimento e uma desmontagem das organizações coletivas (como sindicatos, por exemplo)."

"Uma das melhores formas de se fazer isso [isso = fazer frente ao realismo capitalista] seria exatamente tomar o campo da saúde mental como paradigmático da operação do realismo capitalista."

[daí a depressão/ansiedade/burnout/TDAH etc etc]

"Diante disso, 'não há mais inimigo externo identificável' (Fisher, 2009/2020, p.64), nenhum alvo suficiente para a agressão, ninguém que responda a ela e, portanto, ela nada produz de mudança [quebrar janelas, espelhos, copos, roer unhas, nada disso funciona]. O efeito é apenas o desgaste do trabalhador-consumidor e a manutenção do funcionamento do sistema. Outro efeito é obtido ao impossibilitar a empatia entre o sujeito que procura o call center e o que trabalha nele. É por essa razão que, para Fisher, 'nosso desafio agora é reinventar a solidariedade'". (Fisher, 2009/2020, p.150)."

""O conceito de lugar social deveria produzir uma metapsicologia ampliada, em que se inclui essa incidência de fatores sociais (por exemplo, raça, classe, gênero) como um dos vetores que produz determinada conformação psíquica. Isso abre caminho para pensar que o trabalho do analista visa também a alteração nas condições materiais da vida de seus pacientes. Não que ele tome essa tarefa para si diretamente, mas atua para equipar o paciente para produzir esse tipo de alteração. (Por exemplo, enfraquecendo inibições ou idealizações das figuras de autoridade e, portanto, liberando o caminho para a expressão de seus anseios libidinais e agressivos). (Bernfeld, 1929)."

[basta de monstros sagrados e deuses-pais-todo-poderosos. a ação política é terapêutica - da micro à macropolítica]




sábado, 22 de outubro de 2022

🜁

ouço:

o vento cantando, lamentoso, pelas frestas da cidade,
a chuva que ruge e uiva: cântaros, brisa ou bruma,

fustigam a janela e sua rachadura
aberta pelo meu arroubo de raiva
- a frustração tem seus dias de galope.

vejo:

a mulher alada que segura um tecido fluido
na vitrine da loja de artefatos cristão-católicos
lembra o anjo da Temperança, mas sem as ânforas.

o homem alado, colérico, viril,
arcanjo-chefe-supremo
do-exército-celeste,
como a Justiça, carrega de um lado
a espada, apontada para a cabeça do demônio,
e do outro
a balança, com que mede, tão certo,
a validade do seu ato de violência
- como se não fosse o Amor
aquilo que repara os danos.
só Deus-Pai-Todo-Poderoso
pra chancelar Amor com violência.

penso:

em outra mitologia, a Justiça,
como a Temperança, é uma mulher:
sua espada está em riste, apontando para o alto,
e a balança está parada, como todo o conjunto da imagem,
o que é muito mais sensato,
porque não dá pra ela funcionar de forma apropriada
sem estar apoiada em uma base firme.

sinto:

a cântaros. o vento balança a espada
como o galho de uma árvore sob tempestade.
um arrepio me corre por dentro.
pesam-me os restos que se desprendem,
pênseis,
da matriz desértica do meu ventre.

domingo, 16 de outubro de 2022

now I understand

something that I refused to realize
even in my worst nightmares
the most real reality of love
wouldn't be so cruel like 
this fucking state of things
our cynicism and nihilism lead us to

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

arar a terra sem semeá-la

[deambulações da agonia]

amor é trabalho:
o que fazemos com as superfícies em que metemos nossas mãos?
a escassez do amor não determina sua ausência:
Eros está nos perfumes do mundo,
circulando pela atmosfera.

deixe embriagar-se pelo menos uma vez
e você não terá mais como esquecer.
uma vez visto, não dá pra desver.
uma vez sentido, seu corpo cria memória
- não dá pra desfazer.

é possível passar pela existência sem assimilar o Amor?
tristemente, a resposta é: sim.
quem nunca conseguiu sair de si
e dar o salto rumo ao desconhecido do outro;
quem ficou aprisionado
dentro de altíssimos muros
feitos de medo.

nossas mãos rudes podem deixar rastros de destruição.
nossas mãos suaves por sobre outros relevos
engendram novos mundos
mesmo sem semear a terra:
ará-la com carinho e consideração
pelo simples prazer do ato,
o gozo de um ensaio eterno
sem apresentação final.

dizer à terra: sei de sua potência criadora
mas prefiro os frutos abstratos
que podem surgir de nossas carícias
- o trabalho do amor nunca é indiferente
ou estéril.

não maltratar a terra
porque os quentes afagos
são a única coisa que você espera dela:
você espera algo, afinal.
por que não ter a decência
de tocá-la com cuidado?

amor é trabalho:
por isso, afasta os preguiçosos e indispostos.
por isso, é escasso entre os exauridos.
mas não é impossível, não é impossível.

tenho amor e tenho medo.
o medo trava minha língua
rouba minha respiração
embola minhas pernas.
o amor é esse anseio trêmulo
(ele tem sua forma medonha: a súplica,
a feia irmã-gêmea da sede)
e o pavor constante
de que não haja mais abismos nos quais saltar,
ou de que todos sejam terrivelmente rasos,
ou de que eu permaneça saltando sozinha.

o Amor... esse desconhece o medo:
é a coragem que brota aos borbotões
é supra-lógico 
nota em que se afina a música das esferas
do Universo em que vivemos.

tenho Amor, mas tenho medo
desse amor minúsculo
que me confunde e cega
para o Eros magnânimo e infinito.

meu trabalho, parte dele desperdiço com preguiçosos e indispostos,
porque o Amor e o amor,
por azar ou ironia do destino
decidiram nunca se afinarem de todo em meu peito.
há algo, no entanto, que resiste
e uma ilusão que teima em me atarantar
(insisto em cantar, mesmo desafinada).

que eu aprenda a direcionar os esforços dedicados
a esse amor pequenino - cupido real, porém falso -,
e afague a terra do meu próprio coração esfacelado...
muito mais do que fique devaneando
sobre Eros e tudo o mais
- ou que eu faça de um devaneio prático
a minha utopia erótica selvagem.

(se você não gosta de mim, 
veja só que coisa:
não tem como eu gostar de você.)

(sua idealização de mim
não conta, porque não sou eu.)

(o auto-engano da minha retórica
é o que me cura e salva...)

(as verdades estão sempre a meio caminho.
quero ser feliz, mas também quero estar meio certa.)

(o amor não é um trabalho monetizável
mas a acumulação primitiva de capital
forjou-se sobre bases enganosas
do que seja o Amor
- todo esse engano tem gerado tanta dor...)

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

in the big old shadow of time

em breve mingua a lua
e eu, que ando desconcertada com o tempo cósmico,
desperto - enquanto o satélite prepara-se para o repouso.

a maré cheia me afogou em tanta mágoa reprimida.
penso no mundo todo, imenso e ínfimo;
penso na marcha da história - muito horror, pouca glória;
penso em nossa singular forma de ser hoje
e todas as minhas células se retraem, angustiadas,
porque nunca estivemos encontrados,
sempre estivemos vagando, girando em nossa elíptica.
mãos na terra, em trabalho,
ou mãos ao céu, em súplica.

as luzes artificiais ressecam-me as vistas cansadas.
penso na grande e velha sombra do tempo,
essa que vem munida de um cajado
ora carregando a singela lanterna da esperança,
ora aterrorizando com a prata brilhante da foice.

não há alívio, nem há conclusão.
vagueiam meus pensamentos vagabundos
e suas palavras desleixadas...

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

arrasta-me (2)

quem me arrasta é o mar magnífico
com suas ondas colossais
sua força de eras
caldo extremo de vida que viceja
(e que hoje padece de contaminação)

como está contaminado esse outro que
espera que eu me arraste
sem carinho, sem coberta,
num tapete atrás da porta,
reclamando baixinho.

vão à merda todos vocês.

sábado, 1 de outubro de 2022

[cansaço]

Lua pressaga! Os indiferentes astros tramam
Contra a minha sanidade. O cansaço que sinto
É marca registrada™ do tempo sombrio em que,
A galope, rumamos - em direção ao abismo.

Lua crescente! Em seu bojo de terra e prata
Revolvem as espirais de nosso seco, duro destino.
A foice do trabalho árduo abre-se, inegável,
Contra o abismal céu uraniano.

                É tempo de ceifar: uma existência a marteladas.

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

tunnel vision

tudo o que não sei corre pelo mundo de forma difusa,
incorporado em múltiplas formas que fervem,
fornalhas vivas de núcleo ardente
que nascem de forma análoga às mais vertiginosas
explosões cósmicas.

de seu momento mais fresco, quente e úmido,
o corpo-vivo vai crescendo e secando.
"no topo do ponto mais alto da serra de Petrópolis
encontraram vestígios de fósseis marinhos.
o que isso significa?
isso tudo era mar. foi secando."
saída da úmida infância, Gaia revela
seus filhos feitos de barro: terra encharcada.

"aquecimento global... eu tenho a minha teoria:
a Terra está esfriando"

os rebeldes filhos revolvem suas entranhas,
extraem suas vísceras e, com engenho e arte,
projetam-nas aos céus em busca de respostas
para sua mais antiga angústia:
a solidão universal.
"o que é o Hubble? minério."
minério, sim,
e infinitas noites e dias de trabalho mental, acrescento.

(as quatro questões mais candentes:
liberdade, envelhecimento, solidão e morte)

serra acima, uma face do tudo-que-eu-não-sei
desfia seu rosário de sangue: 
o suspiro discreto de um peito cheio de dor,
a garganta presa por um bolo de mágoa,
desolação, pensamento,
ritmo, música, afeto
e nesse bojo,
diamantes, rubis e esmeraldas da alma.
o outro é meu abismo e meu tesouro.

domingo, 25 de setembro de 2022

nevermind

(notas para uma canção que eu não sei compor)

Rihanna found love in a hopeless place,
Adele hopes to find someone like that one.
As for me, nevermind,
I'll find someone who is able to see
These things you just can't see in me.

(Your blindness makes me sick)

sábado, 24 de setembro de 2022

Maeve, the queen

A oeste de Sligo a rainha Maeve
Mergulhou de volta para o ventre da mãe Terra.
Nas distantes paragens do Éire,
A rainha-loba deixou seu rastro
Três mil anos antes do Avatar da Era de Peixes.
(Seria ela uma Avataressa,
a Grande Mãe do matriarcado gaélico?)

De sua lenda, a face que me assombra:
a conquista do Touro mágico
(depois de muita luta e derramamento de sangue),
com que ela confronta um rei soberano

e ambos destroem-se um ao outro.

(Há amizade possível entre o touro concreto e o imponderável?)

(O imponderável existe?)

Gael, gaélico
Maeve, mãe

Relevo em terracota da antiga Mesopotâmia que mostra Gilgamés matando o Touro dos Céus que Istar envia, na Tábua VI da Epopéia de Gilgamés, após ele rejeitar seus avanços amorosos.


terça-feira, 20 de setembro de 2022

blue starry night skies

oh, midnight skies,
i treasure how you make me think in unusual perspectives,
                how you make me whimsically be...
meus enigmas, eu me consumo em sua espiral vertiginosa:
eles apenas se me esgotam quando encontrados com a vertigem do outro.
mucho me gusta vir-a-ser quem estou vindo-a-ser,
mas tão, tão bom ser outras...
em especial aquela que vive um aqui-e-agora
que é muito mais sensação que sentido.

terça-feira, 13 de setembro de 2022

grieving

enquanto tantos planetas fazem suas retrospectivas
meu coração, circunspecto, medita.
há pouca ou nenhuma acolhida para um vir-a-ser
que, não sendo determinado pelos problemas de gênero,
inevitavelmente passa pelas violências supremacistas.

a raiva me é quase completamente alheia
- e não é como se eu não a solicitasse.
eu tento. venho com a vara,
cutuco a onça: é um filhote de gato.
deposito a coroa de espinhos sobre a fronte
de um Jesus Cristo que oferta a outra face.
internalizo afronta como auto-questionamento.

minha alma chora, chora,
mas voa livre como um pássaro
de penas rarefeitas. 

domingo, 11 de setembro de 2022

synesthesia: scent-oriented

a nuvem incógnita do seu perfume mistura-se
às notas esmeralda de jasmim, tangerina e baunilha
em uma noite fria de tantas palavras
e alguma sintonia

(memória)

cárcere solitário do meu ego contornado
pelos limites tensos de um árduo trabalho mental.
abaixo, muito abaixo da superfície
corre um rio turvo
em que mergulho a balança
e ela perde sua razão de ser.

(liberdade?)

nossos pés tocam as águas do esquecimento
e as palavras duras com que te convoco à lucidez
não são senão meus próprios sintomas
eueooutroooutroeeueooueutroueueo
confusão sígnico-sensorial.

não é tristeza
não é paixão
não é doce
nem amargo

o que é, o que é?

(uma imensa pergunta)

(na melhor das hipóteses, as consequências que trago comigo
serão apenas um breve enredar-me em mim mesma
a lamber minhas feridas)

sábado, 10 de setembro de 2022

bitterness

sabor de veneno na boca
espuma fina agregada à saliva espessa
acúmulo de horas, dias, anos, décadas
no corpo-testemunha de auroras e ocasos
e tudo o que cabe entre os dois mágicos instantes:
portais misteriosos em que a superposição dos pólos
lembra-nos da ambiguidade do existir.
na transição dourado-róseo-púrpura
(ou azul-pálido-cinza-amarelado)
a natureza dupla da matéria
penetrando minhas retinas
vibra o grito de horror que tudo perpassa

domingo, 4 de setembro de 2022

[02 a 04/09, going spinwards - a direção do ciclone]

No breu - um drama patriarcal

Pensei que o breu fosse um lugar escuro como a noite, em que nos são reveladas nossas esquinas sombrias, mas, ao procurar no Google, descobri que breu é uma resina dourada, cor de âmbar, utilizada na música para melhor manuseio do arco (gerar atrito?) e emissão do som.
Mais uma surpresa.
Mas é o tipo de surpresa sem consistência, essa que se torna uma informação curiosa a ser partilhada alhures em um momento qualquer de conversa jogada fora.
O breu preto é uma resina, também. Analgésico, bom para dores reumáticas, dores de cabeça e musculares. Antiinflamatório.
Em mim, o breu da noite produziu uma inflamação como um espinho no cérebro ou um corte de navalha no coração.
Fantasias nascidas nas esquinas sombrias de um desejo selvagem, irracional, mas nunca, nunca malévolo. Não tiro prazer de pisar no orgulho alheio, mas não mais recuo de forma a esmagar o meu próprio orgulho. Também não sou de me entregar tão fácil, e me ofende ser tirada do meu sossego em nome de um capricho volátil.
Tenho sentimentos. Muitos, sérios, circunspectos, profundos.
Revisitei o caso do vestido de Drummond para encontrar um mote e também contar o meu caso, de quando estreei meu vestido rosa e vermelho e mergulhei no breu em busca das esquinas escuras do meu desejo.
Derramei-me, derramei em mim o néctar abundante, o torpor anestesiante que me conduziu à náusea e à entrega.
(A entrega cobra seu preço.)
Encontrei com o encontro. Palavras e ideias, o toque delicado no enlace dos corpos, no abraço das mãos. Cuidado e delícia.
Um prazer fugaz. Mas parece que a presença é tudo o que importa, mesmo que em única ocorrência... É o que parece. Não tenho certeza.
Voltei ao caso do vestido de Drummond e ele me lembrou algo que a Jean Rhys já me havia ensinado.
O drama patriarcal dos (des)encontros é isso de que o meu outro dispõe tão amplamente: o gozo da indiferença, a aversão aos excessos da entrega.
Perturbam o nosso espírito até obterem o troféu de uma dádiva a ser desdenhada.
A graça é o desdém, afinal. Amargo desamor a envenenar os corpos do capitalismo tardio. Poucos se dispõem ao salto no escuro a que Eros nos convoca.
Quanto a mim, eu temo e tremo. Mas se Eros me convoca, eu vou.
Doeu, doeu. Depois do salto o poço era seco e raso. Me feri, mas já não me arrependo. Aprendi um pouco mais sobre as regras do jogo e, apesar dos pesares, guardo o momento único da ferroada da crescente em Escorpião como um presente. Morri e renasci. Entendi melhor a dinâmica da espiral dos meus vendavais internos.
O vestido está ali, dobrado, à espera da próxima aventura, talvez do próximo salto.
Que não mais terá seus dedos esgueirando-se a caminho da minha pele, mas essa memória está aqui, gravada, como tatuagem. Que não me dá coragem - antes, cautela.



terça-feira, 30 de agosto de 2022

image overflow

como se as imagens falassem:
a beleza: o espelho em que me vejo e vejo o outro
as primeiras taças: confusão diante de tantas ofertas
(são muitas ideias, todas tão atraentes)
a energia do louco: caminhante, é no caminhar que se faz o caminho
o mundo: domínio. fim ou início? todo dia, fim e início
(mas existe um grande ciclo que se encerra e outro que se inicia,
um grande ouroboros no meio dos ouroboros cotidianos)
a taça que transborda: são muitas emoções
(é nela que sirvo ao outro o néctar revigorante, desdenhado
- desdenhado pelo que ele tem de excessivo?)
nuvens: são muitos pensamentos
a lua: são muitas sombras
(a noite me revela minhas esquinas escuras)
a estrela: venha, sorte, minha estrela-guia
(ela apareceu duas vezes)
a copa revirada
me faz chorar o leite derramado
- spoiler: o leite era veneno
(mas venho chorando-o há semanas...)
o espectro da morte confirma os livramentos
o desejo obsessivo por uma ilusão daninha
(o apego àquela ilusão, tão antiga...)
mais nuvens, sempre muitas, densa névoa
a busca por águas calmas
o domínio material: pelo pai, pela mãe
(há muito, muito tempo eu construo o meu castelo.
não tive que construí-lo do zero,
mas tem também as minhas mãos e a minha energia nesse empreendimento)
a justiça - ela sempre está comigo,
eu sempre busco por ela
intensidade: na ação vigorosa
(uma novidade na minha vida tão pacata)
clarividência: necessidade de liberar a intuição
(a nuvem-névoa bloqueia a visão)
a delicada flor da coragem: coroação
(não preciso de muito mais do que um aceno de esperança)
a força represada: saber delinear limites
(porque não preciso carregar o mundo inteiro nas minhas costas)
a voz primeva, aquela que se revolta:
grita a partir da profundidade uterina
mas também sabe modalizar-se em sons maviosos...

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

torpor da sede

se entre o desespero e a esperança há a revolta
hoje revolto-me
como venho fazendo há tanto tempo:
todo esse ciclo saturnino
30 anos de um anseio não apenas implacável:
não atendido
desdenhado
e eu permaneço me questionando
o que raios eu estou fazendo de errado
e investigando, é claro,
porque não é possível que a culpa seja só minha

sábado, 27 de agosto de 2022

cirúrgico

a crescente em escorpião me ferroou
num momento de esplendor solar
como o bisturi que corta para curar

mas que me deixou sangrando:
depois de atiçar o fogo do meu desejo
me deixou às voltas com meu próprio incêndio
com meu próprio sangue, jorrando aos borbotões 

foi embora sem suturar
revirou a terra, ferveu a água, inquietou o ar
e apenas foi embora

me trouxe bons poemas, é claro
(exceto por esse, cheio de impaciência
e rimas óbvias)

mundo de sombras

espectros circulam por uma dimensão improvável:
milênios para que o acaso nos esculpisse
com o intricado engenho fractal que nos é peculiar

a geometria unitária é o momento zero:
o ponto no círculo é a síntese,
e a verborragia cotidiana é a análise
- mas é bom não analisar demais

ou um simples passeio noturno com os cães
vira um processo de desrealização cognitiva

(em busca do segredo do mero viver)

terça-feira, 23 de agosto de 2022

barren

olho ao redor e tudo é seco
como a nota olfativa de topo:
a areia desértica, árida,
a ressecar minhas narinas

olho além e farejo água
pingando, diligente, do poço do desejo
mas pinga na areia árida
por sua porosidade escorre
não fica nada, nada

o ar elétrico e seco rasga-se
em uma ou outra trovoada
alguns golpes e rajadas de vento
mas não chove
nada molha
não floresce ainda
ainda nada

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

do amor e do silêncio - ⚸

sempre quis sabê-lo e
não me atrevendo a trazê-lo à tona,
cuidava-o naquele canto da mente
que pulsava inflamado, inquieto.

seu nome nunca falhou em me chamar
como quem diz: olha eu aqui!
vem, vem saber o que eu tenho a dizer

saber, dizer

verbos muito, muito abstratos

para quem tanto pensa e analisa
como saber o amor com a superfície do corpo?

ensina-me a pedagogia do arrepio:
o êxtase do silêncio mental

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

limitless

once I felt I had no boundaries
and it cost me intense flows of an energy that I
always suspected was leaking
but I couldn't find where

now I feel the dense lines that contour
my waves and corners
from the softer to the roughest ones

(it increases solitude)
(but it's not as if I wasn't a loner before...)

terça-feira, 16 de agosto de 2022

pobres dos nossos corações que sangram

 "Se tens um coração de ferro, bom proveito. O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia." (José Saramago)

domingo, 14 de agosto de 2022

baby

embute uma terrível metáfora 
nas nossas formas de fazer laços
uma vez que sua natureza é, ainda que análoga,
consideravelmente diferente
daquele sentimento
que a árvore devota a seus frutos.

qual é a palavra que se dá
ao amor entre duas árvores maduras?

(não é baby, nem bebê, nem broto)

(ainda que a paixão nos deixe
indefesos e vulneráveis)

imperfect illusion

(per)feita: criada pelo eu, sobre si e o outro, em mínimos detalhes
- ilusão, generoso véu com que Maya oculta
a vertigem da estrutura fractal da matéria,
a serpente bioluminescente que navega as salgadas águas das células,
a ruptura e o desencontro incontornáveis
que resultam, mais ou menos hora,
do corajoso ato: o salto no escuro.

(I take, I take
the illusive leap of faith
)

"De novo ele me agita,
Eros, o deus que desata os membros,
doce-amargo, indomável,
sombrio animal." (Safo)

(em grego, o animal é a serpente)

mas do perfeito engenho universal
há algo que escapa, refugiando-se
no segundo mo(vi)mento em que o Cosmos se cria:
o metaverso da linguagem.

(nessa imperfeição está o risco,
a radicalidade do fazer ser ou não ser,
gesto que resiste à natural deriva:
irrupções de Caos e/ou Eros,
as duas tonalidades que podemos escolher
ao assumir nossa própria divindade:
o poder de destruir e/ou criar)

(É o Diabo, é o Diabo
todo este atrapalho
tão terrivelmente próprio aos meus instantes de escolha;
um meter constante dos pés pelas mãos,
essa bagunça enorme: luz e vísceras...)



temperança, refrigera meu espírito

traz o tempo e a esperança em seu nome,
processando a têmpera da ardência bruta dos afetos
com suas uranianas águas mágicas, glaciais, fluidas,
que não correm livres como os rios, não:
vertem-se de um cântaro a outro
- lemniscata da eternidade desdobrada - 
a moderar, com destreza, o (in)visível,
alquimia exigida pela dança universal.

o anjo-menina-mulher que mora aqui
o é à imagem e semelhança da arcana:
suas águas não são cósmicas nem míticas.
são uma coleção singular de gozos e lágrimas,
as más águas de uma já longa memória,
vertidas daqui pra lá, de lá pra cá,
no inexorável curso das horas...

A Temperança de Salvador Dalí (1970s)

"A Temperança limpa nossas percepções defeituosas ligando-nos, de um modo divino e humano ao mesmo tempo, ao mundo imutável além do alcance da foice do tempo." (Sallie Nichols, Jung e o tarô: uma jornada arquetípica, p. 255)





quarta-feira, 10 de agosto de 2022

just the same/but not exactly

o tempo foi passando e eu percebi
que é sobre mim mesma
a torrente
o trovão
a tempestade
furiosa
revolvendo-se sobre o eixo
eu no centro
tentando segurar a vertigem
(a náusea)
e, quando acalmados os ventos:
manter a vigília
a mente sã
o coração acelerado, embora,
palpitando de masoquista gozo
- oxitocina e adrenalina

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

escrever

a gente escreve boa poesia com as vísceras,
essas mesmas que nos são demandadas
para a bondade e a gentileza
em um mundo tão tão inóspito
para sensibilidades aguçadas e cultivadas.

é doloroso o vir-a-ser
quando experimentado com 
atenciosíssima perquirição 
de cada um dos seus delicados movimentos.

eles - os movimentos -
são o entrechoque dos átomos,
a matéria visível versus a matéria escura,
as ondulações da cauda do peixe beta
condenado a viver em um ínfimo aquário.

a natureza da totalidade é inenarrável
mas carrego-a comigo, a me tocar os nervos
incessantemente
até que participar do mundo
de forma mais ou menos funcional
torne-se uma verdadeira
missão impossível.

(escolho o embotamento
em nome de uma existência viável
- pelo menos por enquanto)

domingo, 7 de agosto de 2022

maleness (2)

porque meu corpo me convoca à justiça:

mais do que sei, sinto
o toque que repousa sobre a pele
- mas, antes dele,
o calor que irradia de uma proximidade anunciada.

como o sol que, num dia frio,
surpreende minhas costas num acolhedor
abraço-afago-surpresa
(às costas também se recebem boas surpresas,
não apenas traição).

mais do que sei, sinto
- e temo o que há a se saber sobre o sentir -,
e ressinto meus sentidos turvos
a colher os primeiros registros
of this so quite new a thing:
your body when it is against my body
.

porque meu corpo me convoca à justiça:
não sei mentir;
quero jogar, mas de forma honesta;
esse é o mundo que quero criar ao meu redor.

mais do que sei, sinto:
o corpo, testemunha dos encontros.

(trust your vision, trust your guts)
(it's so easy to laugh, it's so easy to hate
it takes guts to be gentle and kind
)



quarta-feira, 20 de julho de 2022

maleness

folgado
encostado
preguiçoso
cínico
egocêntrico
sádico
violento
frio
indiferente
manipulador
ressentido
invejoso
autocomiserado
mau

decepcionante

terça-feira, 19 de julho de 2022

i submit to love (again)

 and this time Love loves me with the sweetest tenderness.


Bather (1911), by Zinaida Serebryakova 


terça-feira, 12 de julho de 2022

"a minha voltou suja"

é nojo e revolta o que eu sinto,
e não há terapia que cure,
não há ansiolítico que acalme
- terapia é "ter a pia cheia de louça pra lavar", afinal.

vejam só, minhas senhoras, senhoritas,
minhas irmãs de lavra e luta,
de amor e dor,
de mágoa e ódio
- mas nunca desespero:

o meticuloso bandido
teve, na flagrada ocorrência,
o calculismo de limpar a cena do crime.
mas uma mãe, 
seu coração partido,
as mãos inertes
mas a voz de punhos fechados
não sei com que tom
desferiu o golpe que reverbera em mim:
"a minha voltou suja".

sábado, 2 de julho de 2022

o que os olhos veem

e o coração ressente
não com a bússola moral de quem paira acima do humano
mas com a compaixão pelo trágico, demasiado humano que habita
cada singularíssimo sintoma das filhas e dos filhos da terra:

uma cega descendo escadas,
um fruto que se rebela contra a árvore
- e o ímpeto da resposta horizontal, ainda que assimétrica.

(códigos para escamotear a dor do real que me invade,
que irrompeu, corrompeu minhas doces fantasias
de um mundo em harmonia: não há.)

terça-feira, 28 de junho de 2022

uncanny valley

...

once you used to like to behold the mirror,
the sweet taste of power in what you could see

...

now you just can't stand and bear your depiction,
the things you perceive when the mirror is me


Narciso (1597-1599) - Caravaggio

domingo, 26 de junho de 2022

"i just want to be a woman"

but what does it mean - to be a "woman"?

well, some parts of it, i painfully know.
some others, it's all about silence and oblivion.

memory - do we want to remember?


Hungarian gypsy girl, by Amrita Sher-Gil, done in 1932 during a summer vacation at the Hungarian village, Zebegery.


sábado, 25 de junho de 2022

love lures me with passion and sweetness

and then shreds me apart


Edvard Munch - Weeping nude (1913 - 1914)


sexta-feira, 24 de junho de 2022

i submit to love

but Love doesn't love me.

Edvard Munch - Weeping woman (1907 - 1909)


terça-feira, 21 de junho de 2022

quantitativo onomástico relativo provisório dos dias de Saturno

amor (96)
    beleza (19)
        café (9)
            cansaço (22)
                cicatriz (10)
                    desejo (47)
                        dormir (18)
                            estátua (4)
                                eu (304)
                                    lua (15)
medo (42)
    noite (57)
        pensar (40)
            Saturno (10)
                saudade (24)
                    sonho (57)
                        sono (36)
                            tempo (120)
                                vergonha (14)
                                    você (114)



segunda-feira, 20 de junho de 2022

it took me time, brain and blood

to look at people in the streets and
feel love pouring out
of my heart
que não, não é maior do que o mundo
é do meu tamanhozinho
- mas já me dá um enorme trabalho. 

domingo, 19 de junho de 2022

i live in the space between the scars and the sky

as estrelas vivem em meus átomos - do neutrino à molécula orgânica,
dos sistemas ao organismo, vertigem da dialética da matéria.
as memórias são cicatrizes: resquícios das marcas da vida.
as marcas violentas registram-se como traumas: 
feias cicatrizes, carecem ressignificação.
as belas cicatrizes são as tatuagens:
progressivamente mais estéticas,
ou deliberadamente feias
- mas, parece-me, elaboradas de maneira cada vez mais autônoma.

quarta-feira, 15 de junho de 2022

lost

sick of losing a minimum track of
where I finish
and the rest of the world begins

exaurida, sôfrega

                                            com Álvaro de Campos e Augusto dos Anjos

há qualquer coisa de fantástico
na sequência dos dias e suas oscilações:
a espiral dos afetos demoníacos que evolam
das nossas mucosas abertas, violentadas:
sentidos e purulência.

há qualquer coisa de bizarro
nessa existência frágil, equilibrada
sobre um fio de finíssima navalha:
tomba-se para os lados, ou parte-se ao meio.
não há salto triunfal na linha de chegada.


quarta-feira, 8 de junho de 2022

Amrita

ou: o trágico destino das borboletas

Ascende da terra mista o primeiro traço
De sua breve, intensa parábola.
As mãos cultivadas para a livre criação:
Nada a se preocupar além de apenas ser.

Cálida mistura de ser e poder: ilimitada,
Dão-lhe asas e ela vai, e voa,
Aqui e ali,
Mas do marrom e verde
Não se desprende.

Dos lascivos pousos, as entranhas
Não a eximem do natural efeito.

Afiança-lhe certa liberdade
O súdito fiel, mas desleal –

Não há impunidade, artista.
Guardo comigo, contudo:
O gesto decidido,
Erótico afã,
Terrestre-aérea alma.




sábado, 4 de junho de 2022

leda engana-se

e sua história acontece.
sua pequenina história: da submissão
- ante a qual qualquer autonomia encrespa-se -, 
mas também tudo o que viríamos a ser, nós,
repetindo o mesmo ato de violência primordial.

enganamo-nos todas
as que pensamos fincar pé em nossas
mais íntimas resoluções
de preservação de alguma dignidade.

(mas tão belo o balé,
tão brancas as penas,
tão macio o toque...)




terça-feira, 24 de maio de 2022

à deriva

Eu não quero mais evoluir. Não quero mais colocar à prova constantemente todos esses anos de análise, tanta boa resolução resultando em nada mais do que solidão. Ou uma vida totalmente na contramão do fluxo de um mundo que corre em direção ao abismo – mas o fluxo me arrasta.

Ecoam as palavras da analista: “mas você não está sozinha”. Não estou, decerto. Mas é um esforço amazônida sustentar a posição queer quando o que te rodeia são as expectativas do sempre-o-mesmo. Retifico: uma posição radicalmente queer. Porque existe o queer que continua reproduzindo as velhas estruturas de poder: o teatro é o mesmo, mas os atores se sentem mais livres para customizar os personagens. Estou cansada dessa mesma velha história. Não é assim que eu quero escrever a minha vida.

(Pode ser que eu esteja sendo apenas dura, apenas impaciente, apenas isso mesmo que eu sempre fui, a minha mesma velha história para além da qual eu não consigo me mover. Há quem prove a vida na prática e experimente o dia com todo o corpo. Eu experimento com a mente, deixando meu hibernante corpo em chamas com a flamejante dúvida: o que aconteceria se eu fosse para o mundo da prática?

Juro que estou tentando. Mas o cru da vida é decepcionante.)

Ir ao fundo do desconhecido para encontrar o novo exige uma coragem e um desprendimento incompatíveis com o velho anseio adormecido aqui, no meu coração, de ter um pouso em que eu possa descansar da mesma-velha-história. I wanna build something different, together.


No meio da solidão cósmica, a festa. Celebração dos nubentes. Velho vestido rendado com glitter, velho smoking de tecido de microfibra. Pater, Mater, a pródiga prole, e o Espírito Santo, pomba tão estúpida quanto nossas surradas esperanças.

Dançamos a vida do aqui e agora. Música alta, de perturbar os tímpanos. As luzes dos globos espelhados refletem seus raios neon no meu cabelo azul, que refulge seu artificial, contemporâneo, tardio, abismal brilho.

Penso no salão em meio a uma escura estrada, a vida acontecendo num aglomerado de vida, imensos montes e vales vazios ao redor. Como o planeta Terra, singularíssimo, pênsil relicário em meio às vastidões da incógnita cósmica.

 

quarta-feira, 18 de maio de 2022

estação Uruguaiana

churrasquinho, tattoo e cupuaçu
desembocando no caldo do caos urbano
caosurbano
causurbano

daria um bom causo,
mas hoje vai ser só esse poeminha.

quarta-feira, 11 de maio de 2022

dead end

como um par de mãos em meu pescoço,
mas sem carícia.

como o fim de uma jornada árdua:
fundo cego, beco sem saída.

desrazão de todo fim,
nova demanda pela fé cega
que anime um recomeçar.

segunda-feira, 9 de maio de 2022

cartografias

ando pelo centro da cidade e
nossos marcos são meus pontos-chave
de entrada na câmara escura do meu desejo:
mergulho.

quase não vejo: ouço
os rumores da minha memória
soterrada pelas distorções
de uma fantasia selvagem.

ecoam interrogações
que germinam por entre as frestas
do meu coração retalhado.

busco entre os despojos 
do meu eu anônimo, estrangeiro,
qualquer coisa como uma fé cega,
tênue fio de Ariadne que ainda me resta.

domingo, 8 de maio de 2022

de novo, um regresso ao solar

nomes então enigmáticos começaram a me contar
uma história que, não sendo só minha, não deixa de sê-lo
tão sentidamente
- arriscando o tropeço na sentimentalidade espúria.

"solar (ou palacete), casa de origem de uma família nobre".
herança maldita de uma nobreza fajuta,
palavra pervertida:
solar é o sol, 
deus dos mais imediatos,
verdadeiramente generoso
em seu natural esplendor.

o solar de minha nobre família
tinha seu tom celestial,
cobrindo um referente sombrio:
Augusto dos Anjos.

"Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de sua última quimera."
etc, etc.

do último prédio da rua sem saída
(umbigo do meu mundo),
seguindo em linha reta,
outras ideias:

"A praça! A praça é do povo
Como o céu é do condor"

"Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta."

"O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente."

claros enigmas sobre os quais venho me desdobrando
desde minhas remotas eras pessoais
até agora, e em frente, e além
- até quando?




quinta-feira, 5 de maio de 2022

estátua de mármore: o equívoco

na origem das serifas, o talhe em pedra.
na origem das estátuas de mármore, o esquecimento
como elemento principal de uma estética fria,
distante.

antes, bem antes,
em imemoriais tempos,
a estátua de mármore foi ricamente adornada
de metais e outras cores.

(com atenção, paciência, dedicação,
usando nossas sempre novas tecnologias,
é possível reconstituir algo dessa memória)

o trágico barroco David de Bernini, contudo,
nasce em voluptuoso movimento
- mas frio como as frias estátuas
de um passado tão glorioso quanto inventado.

terça-feira, 3 de maio de 2022

dócil

gole breve no café preto
desce aquecendo:
doce.
mascavo, não refinado,
transformado em luxo
pelo caos que nos governa.

desce o doce do café preto, mascavo,
enquanto penso, pensátil,
buscando o ponto zero do equilíbrio
dos pratos.

pesa-me: a negação da docilidade.
idem: a afirmação da doçura.

a coragem e seu traço ativo,
a cura em sua receptividade.

ser, ser e ser mais, aqui, agora,
e o não ser, mudo, escuro, futuro.

segunda-feira, 25 de abril de 2022

"You are obscured by thick fog"

Sua presença é como uma névoa que me abraça
- não a névoa ansiosa,
mas um torpor anestesiante
como se nunca houvesse havido paranóia a me corroer os nervos.


"Are you ready to let someone join your plant pot?",
Beware, 'cause "Emotions come and go".

terça-feira, 19 de abril de 2022

i had a dream

eu tive um sonho
enquanto te via fenecer
em que podia consertá-lo
como fazem os
artesãos de relógios
(eles ainda existem?).

antes de ser um relógio
você era um motor:
vigoroso e potente
em suas intensas sístoles e diástoles.
rosa vermelha que desabrocha
no centro de uma alma afável
e poderosa.

mas dentro desse motor
- de avião ou nave espacial,
nunca de tanque de guerra - 
havia, sim, um relógio
de intrincadas delicadezas
cujos mecanismos eu explorei
em seus mais sutis detalhes
mas não a tempo, não a tempo.

ah, o tempo...

hoje me dedico a folhear seus manuais de instruções.
assim transmutam-se meus sonhos,
e você, ainda vivendo neles.

terça-feira, 12 de abril de 2022

de joelhos

(no ponto fraco dos inflexíveis 
um toque
que humildemente os dobra
em angustiosa súplica)

Cosmos, Cosmos Magnânimo,
eu O vejo.
eu O ouço.
eu O sinto em mim,
eu de Nós sendo infinitesimal parte.

Cosmos Infinito,
eu O sei
nos oráculos quaisquer abertos,
nos vídeos do YouTube,
nas vozes e nos rostos e... e...

Cosmos Eterno,
em suas vertiginosas dobras fractais
encontre-nos um raio de luz,
uma centelha de esperança,
um pulsar da mais verdejante vida. 

segunda-feira, 11 de abril de 2022

oxytocin flows in my body

não mais como veneno
- a não ser que eu esteja enganada
quanto aos desastres que possam estar por vir.

(meu corpo ainda se lembra dos últimos

terça-feira, 5 de abril de 2022

vulcânica

cresce a lua decidida, ímpeto furioso
de uma vida nova que reclama sua novidade.

as velhas cascas do velho eu agarram-se à pele
segurando-a para trás, puxando-a mesmo
- mas não estão suficientemente maturadas e,
se arrancadas,
hão de verter vermelho sangue.

a impaciência, traço meu oposto, complementar,
comum ao eixo da ação-criação.

sábado, 2 de abril de 2022

o ponto do pulmão vazio

quando finda o verão, o enérgico outono
             se ergue, virgem impulso vermelho.

nos seus olhos meigos, o segredo do mero viver,
             cotidiano, fácil de eu me lembrar
             (e também esquecer).

no seu toque suave por sobre minha têmpora,
             o mistério da memória e do tempo:

não mais o frescor da brisa outonal
mas o calor das mãos do desejo.

quinta-feira, 31 de março de 2022

hope and despair

porque não posso ser reacionária, nem deixar de ser realista:
eis as duas opposing ideas que vivo a equilibrar nos meus pensamentos.

durmo e acordo cavando janelas nos muros da minha angústia
(que, sei, é partilhada. nisso já não me sinto mais solitária).
embrulha-me o estômago, sim, também, o estranhamento
de um dia a vida ter sido algo totalmente diferente
e hoje estarmos aqui, à beira do colapso, presenciando o mundo a se dissolver.

não mais me angustia saber-me de pé sobre mim mesma,
me, myself, in my shoes
(uma percepção nova, e dolorosa quando ela me ocorreu),
ainda que me custe meus dentes:
a tensão de decidir, a todo momento, para onde caminhar,
e caminhar, mesmo a contragosto
(agora caminho, mas sem deixar de reclamar). 

espero um dia poder abrir a porta da minha alma
e sair, percorrer o mundo do lado de fora,
abandonar-me por um tempo e ser outras, desdobrar-me por aí,
com mais imaginação verbal do que a que ainda retenho, por ora.

meu pensamento ainda não domina minhas palavras,
por isso escrevo pseudo-poesia.
tantos planos para tão pouca disciplina
(talvez eu viva para sempre indisciplinada).

domingo, 27 de março de 2022

silêncio

silêncio é o que escuto em meio aos ruídos do mundo.
ficar só com o invisível exclui a metade:
- uma metade apodrecida pela doença da ganância.

a beleza existe em relampejos breves, esparsos.
a alegria vem, efêmera como
os momentos em que meu corpo dá trégua das alergias:
defesas levantadas contra um real hostil.

silêncio para apreender a ilusão de que a metade visível se veste
e então poder decidir o quanto, realmente, quero participar do jogo.

(eu não quero)

quarta-feira, 23 de março de 2022

o corpo no outono

em dois momentos distintos:
aos 19, embaixo das nostálgicas cobertas,
aos 29, no frio apartamento, nós dois em pé.

então, formigamento e dormência:
inebriante enxurrada de hormônios e descobertas.

depois, gemidos e tremores:
redescoberta da minha pele sob seu gélido toque.

o primeiro vento outonal me acaricia
ativando memórias, três décadas de jornada:
sinto-o, sinto-as. erótico sopro de vida.

♂: órbitas

em torno de sua força centrípeta orbito
não mais com sede de uma redenção
mas com a curiosidade de quem,
por hábito,
investiga.

deixo-me atrair, perco mesmo o juízo.
falo de amor, sinto-o com orgânica fluidez:
foi assim que ocupei boa parte dos meus dias.

não nos prometo nada além do dia de hoje,
nada além da vida de agora:
ofereço meu precioso tempo, 
esse que agora, eu sei, se esgota.

para além, tenho eu a mim mesma,
até o derradeiro momento da travessia.

enquanto isso, derramo-me como me gusta.


...

três horas de silêncio: meditação
para ver se tomo consciência
da energia que me é vampirizada
pelos dispositivos eletrônicos
- mas não só.

nascem e morrem os dias.
meu corpo cada vez mais maturado,
as memórias se reorganizam,
distribuindo-se por ele todo
- não mais só na cabeça,
não mais só no coração.

o cansaço ancestral persiste,
mas resisto. assumo-me
como antes não poderia
porque a névoa ansiosa
me aterrava e confundia.

belo mundo em que a pressão interna cede:
abrem-se novos espaços
para a alegria
para a auto-aceitação
para o descanso.

o que há em mim ainda é, sobretudo, cansaço,
mas vejo novas luzes por entre novas frestas:
a casca de um velho eu está a ponto de romper-se.

quinta-feira, 10 de março de 2022

ardência

 "no fundo do peito, esse fruto
apodrecendo
a cada dentada"

quarta-feira, 9 de março de 2022

arrasta-me

piso os grãos ancestrais
com o êxtase de quem, depois de longo exílio,
reencontra-se com aquilo que,
não lhe sendo estranho,
é quase completamente novo.

deito-me ao comprido na areia.
fecho os olhos, abro os olhos,
fecho-os, abro-os,
fecho, abro, fecho, abro
com a aflição de quem tem sede
de saber a verdade do mundo
com o corpo.

pressiono entre os dedos os pequenos grãos
e olho-os com o pasmo essencial
de quem ansiava por poder nascer, novamente,
para a eterna novidade do mundo. 

corro para o mar, iridescente.
leio o sol em seus reflexos
na delicada, bravia superfície.
a pele coberta de filtro solar e maresia
arrepia de calor: enlevo da brisa marinha.

sem tempo para temer, lanço-me.
brinco em meio às ondas
com uma alegria pueril
flagrada, em espanto,
existindo, ainda, no fundo da minha alma.

arrastam-me as vagas.
circundam-me as algas,
as pessoas, de tantos tipos e cores,
os micro e macro plásticos:
perversa e inexorável presença humana
que perdeu o respeito pela vida
da qual, inconsciente, inconsequente,
faz parte.

entristece-me saber-nos no ocaso 
de uma forma de vida cruel e bela
- que poderia ser mais bela do que cruel,
mas isso é a vida: é guerra, é guerra.

entrego meu corpo alegre às ondas,
ao mar e seus caprichos violentos,
tombo diante da sua força
- mas respiro. não me deixo (mais) afogar.

aterra-me sabê-lo, com o corpo,
um imponderavelmente imenso
ser vivo:
matricial útero que me embala
no vai-e-vem dos ancestrais ciclos...

(quanto tempo de alegria ainda me resta?)

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Caeiro I
Caeiro II

sexta-feira, 4 de março de 2022

Medeia contemporânea

se a quebra da lealdade gerava, antes, o furor da vingança
- não que ela ainda não ressoe, flamejante, no corpo da neossacerdotisa -, 
com muito mais compostura e classe Medeia se faz entender:
"os incomodados que se mudem".

(Afinal, o que ela deseja não é vingança, mas justiça.)

o problema das sacerdotisas de Hécate

sentir sem comedimentos.

quinta-feira, 3 de março de 2022

uma noite, uma vida

reconheço sua silhueta esguia: é noite.
envolto em trevas e ruído
- a cidade ao redor emite seus gritos - 
você beija a minha testa,
o universo começa a cantar.

sua presença atravessa os meus sentidos.
na última vez em que nunca mais te vi
era fim de tarde: minha mente rodava.
o coração na mão, apertado,
o desejo contrariado, a ingenuidade.

conduzimos um ao outro,
mãos dadas com insegurança,
estranheza, assombro,
o (in)familiar que nos governa
e não se desata, não se desata.

(mistério)

palavras, palavras, palavras, palavras.
pródiga fonte que jorra de nossas cordas
tangidas por ideias afiadas, afinadas.
"você vai achar que eu sou maluco"
- não se preocupe.

primeiro, porque
somos todos malucos.
segundo, porque
estou ocupada demais
me embriagando da sua presença
- essa que nunca mais tive,
essa que pensei que nunca mais teria.

os deuses sabem o que fazem lá
em suas intocáveis esferas.
eles sabem do veneno que nos intoxica
um ao outro, quando sinto
my body when it is with your body:
so quite new a thing.

nós, pequenos deuses, sabemos bem
o que fazemos em nossas particulares esferas:
o que brota de nossas fontes de energia
quando tocamos um ao outro
com os dedos, com os lábios, com os dentes,
com as mãos, os pés, o nariz, a língua:
alegria, alegria.

depois, tudo o que resta
é silêncio
e uma vaga espécie de promessa.

(mas talvez tudo se acabe no próximo segundo)

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

♂&♀ em suas travessias

sob o signo de Saturno os amantes cósmicos se encontram:
a aridez da divina cabra ensina sobre
os obstáculos a transpor
os desafios a assumir
o trabalho de construção dele,
ele mesmo, esse ente magnífico, assustador, indefinível,
o Amor.

no signo de Urano os amantes cósmicos ingressam
rumo ao imponderável disruptivo.
mãos dadas: uma decidida, outra reticente,
uma firme, outra trêmula...
um coração transbordando coragem,
fazendo de sua ferida aberta a chave para a regeneração
- o outro, mistério.

domingo, 27 de fevereiro de 2022

queer love

amar o corpo e o que evola de seus poros:
trânsitos, passagens, diferentes tipos de substâncias,
a natureza dupla da luz - onda e partícula.

amar o meu corpo como nunca dantes navegado:
décadas de angústia, espera e auto-flagelo
convertidas em um súbito momento de alegria.

amar o seu corpo como antes e como nunca:
reencontrando-nos nas suas marcas, nos seus ângulos,
nos nossos toques, no que o encontro tem de nós.

(alguns nós permanecem atados)

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

carne viva

ando por aí em carne viva
com a resiliência de uma erva daninha.

minha consciência vaga no abismo
- a casquinha da crosta terrestre é nada além de
um enorme fio de navalha
em cima do qual sobrevivemos, todos,
enquanto contemplamos as vastidões universais

- vertigem - 

até que os músculos e nervos
se dissolvam em massa amorfa,
de volta ao estado primeiro,
poeira cósmica sem autoconsciência:
a reconquista da paz.


até lá: é guerra, é guerra


e a saudade da inocência.


domingo, 6 de fevereiro de 2022

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

o lamento da sereia cósmica

[notas para um desenho futuro]

os nós que ela desata perpassam sua pele, 
braços costurados como uma boneca feita de retalhos:
como se os retalhos que a cobrissem fossem ela mesma, mas não são.

sua aparência é a de um arremedo de sereia,
um monstro frankensteiniano, toda perfurada e coberta de camadas de medo.

tiradas essas camadas, restam suas delicadas carnes cósmicas,
e a cauda com as diáfanas nadadeiras:

perfuradas, sangrando pus infeccionado,
retalhadas: mas vivas,
com uma quente vida vermelha pulsando:
sua alma é uma rosa de inúmeras pétalas.

enquanto desata os nós, enquanto rompe as costuras,
abrindo espaço para sua desejada regeneração,
a sereia canta.

clariceana

eu quero viver a espessa imanência do agora.

da minha morte futura não sei, propriamente. 
mas os dias passam, e eu aprendi a divisar seus efeitos.
vejo-me, vejo-os envelhecendo. eu vejo.
o que eu temia,
o que Ana da Grécia temia
- os saturninos efeitos -, 
eu os tenho tragicamente entranhados
em minhas retinas ainda não tão fatigadas.

meu corpo é a testemunha mais imediata.
mas da lâmina ceifadora do deus do Tempo,
nada, nada, nada escapa.

eu quero viver a espessa imanência do agora.
deixar para trás os infantis medos de que o mundo não é pra mim,
de que eu sou inadequada,
emocional demais,
incapaz para aquilo que me chama com ardor
- desde sempre, memórias tão remotas -,
e todas as outras vozes que ecoam aqui dentro
enquanto (finjo que) tento
(enquanto não me atrevo a)
encarar a face nefasta, espessa, imanente
do agora.

nascer para a eterna novidade do mundo exige uma coragem
incompatível com a carga de medos infantis tão bem costurados nas fibras tênues do meu psiquismo.

com a paciência da desatadora de nós, lá vou eu,
em cada sonho, em cada sessão, em cada página,
em cada toque de cada letra deste teclado,
desbravar o inóspito infinito do fundo da minha alma
- onde tanta tralha foi depositada
por julgarem ser "um espaço vazio"
quando na verdade é um oceano imenso,
profundo, abissal,
crivado de flora e fauna delicadas e complexas,
em que mergulho toda noite
e volto encharcada, pesada, à superfície,
tentando dar algum relato dessa solidão infinita que é a experiência de existir.

(desatar nós, fazer laços)

domingo, 30 de janeiro de 2022

sábado, 29 de janeiro de 2022

o cabo de guerra


aterram-me as cores desse misterioso pôr do sol
- misterioso porque profundamente estrangeiro, extra-terrestre.

o cabo de guerra se configura a partir de duas forças opostas, complementares.
em nossa guerra atual, o impulso estrangeiro rumo ao misterioso, centrífugo,
está vencendo, destruindo-nos de dentro para fora,
como uma angustiante erupção.

a força centrípeta, acolhedora
- mas aterradora em sua neurose de controle -,
é arrastada pela vulcânica potência do desbravamento.
seu corpo materno, retalhado pelos aríetes,
perde a possibilidade de restaurar-se.

assim contemplamos os pores-do-sol estrangeiros:
às custas da nossa própria existência.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

pathways - not so open anymore

se a escolha é um triunfo do poder pessoal,
todo aquele que não a exercita está meramente submetido
sujeito
às intempéries e influxos do tempo-espaço em que se encontra.

muitos séculos de filosofia já se dedicaram ao problema do livre arbítrio.
eu, que tenho me permitido, agora, fazer usos mais agudos
do meu misterioso - para mim - poder pessoal,
percebo melhor o que foram minhas escolhas
mais ou menos conscientes.

às vezes desejo simplesmente me abandonar aos influxos.
toda uma vida nadando contra a corrente
para recuperar um tesouro perdido:
o dom imerecido do amor
- cansam-me os nervos tesos,
permanentemente tensionados pelos problemas de gênero
desde que adentrei o mundo sexuado na prática,
não mais nos devaneios da minha libido infantil.

tesão é manter-se teso,
mas o meu gozo se encontra no abandono,
um salto confiante no lago escuro
do desejo do outro.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

enumerações

à maneira de Osman Lins


1:
a cama, a cadeira, a poltrona - as estantes

2:
a coruja, o pensador angolano, os artefatos do Amazonas, a matrioska

3:
a testa direita, a mão direita, a perna esquerda - o raciocínio

4:
Vincent van Gogh, Ernest Hemingway, William Faulkner, J.D. Salinger

5:
Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Jorge Amado

6:
o amor, o aprendizado, a revolução - o luto


a saudade
a luta

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

O amor é um trabalho silencioso

Consuma-se em pequenos gestos,
Em percepções aguçadas
De necessidades alheias
- Ou próprias - 
Que passariam despercebidas
Por alguém mais apressado
Ou mais indiferente

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

"A ausência é absoluta, mas a presença tem seus graus."

Se vida imita a arte, a teoria literária se aplica à vida facilmente.
(Salvas as devidas distinções entre o real e o ficcional.)

o buraco na alma

hoje meu coração não é mais um buraco negro
que é cheio por densidade e atrai e engolfa tudo.
hoje ele é uma ferida aberta
pela qual o sangue jorra com tanta pressão
que aumenta as lacerações das bordas da ferida
abrindo e rasgando e fazendo doer enquanto pulsa.

há um limite tolerável para as feridas da alma,
que conseguimos recuperar aos poucos,
com a paciência que uma cicatrização exige.
mas se a agressão passa dos limites,
talvez a alma não suporte a si mesma, ferida,
e, não resistindo,
se entregue ao descanso definitivo.

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Challenge the archetypes

 "Pay attention to the archetypes you've been given. Change the plot."

Curiosamente, um saber baseado em arquétipos me diz para desafiá-los.
Me faz pensar que mesmo as rupturas a que nos propomos, também elas já foram mapeadas pelos psiconautas.


Criação é resistência, e resistência é ruptura.

Criar em um mundo em que tudo o que é sólido desmancha no ar exige uma nuance de caos,
Um pendor para o desbravamento
- Não de novas terras, novos terrenos, mas do fundo da alma humana, infinita
Como um lótus que se desdobra em inúmeras pétalas...

"Viagem ao fundo do desconhecido para encontrar o novo."

Até que o organismo feneça
- Mas a vida, ela perdura.


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pensamento
propensão
pênsil
pendor
peso
pesar

sob o signo da balança

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segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Mergulho na alma do poeta

"Num gesto que recria a feitura do homem
a mão no braço do poeta reintegra-o
à mesa de bar ao copo vazio à lente quebrada
ao conforto de um calor que transita
dos calos ao braço do braço aos olhos e destes
                                            ao próprio universo
                                                 reintegrado
            para além das partículas de vidro
                                              grudadas ao olho."

O gesto que reintegra o poeta ao universo - o poeta entregue ao desconsolo de sua angústia -
Essa angústia que o atinge como um raio - ele, que sugou até a última gota de sua garrafa -
Esse gesto
é um gesto de amor:
o conforto do calor do corpo do outro.

domingo, 16 de janeiro de 2022

"l(a leaf falls)oneliness"

Tivesse eu uma memória não apenas melhor do que essa que eu tenho,
Mas uma tão radicalmente acurada e potente que eu pudesse
Revisitar todas as nossas conversas e encontros
E pensar e repensar tudo o que você me disse e revelou e mostrou,
Tivesse eu essa capacidade,
O existir me pareceria um pouco menos inóspito e solitário.

sábado, 15 de janeiro de 2022

"The more you know, the less you need to say"

De 24 de agosto de 2021

A cura para o medo da morte

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(silêncio)




sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

"Is thinking your drug of choice?"

Tendo algum tipo particular de fé quando aposto na interconexão entre o ser humano e o cosmos
- O que é uma hipótese bem plausível, visto que somos poeira estelar - 
Não posso deixar de pensar que sim, pensar é como um vício.
"Amar é pensar", lê-se no poema aí na barra lateral.
Hoje já não concordo tanto mais com Caeiro nesse sentido,
Porque amar tornou-se, para mim, uma forma de agir.
Mas o tema do amor me obseda como 

o sol que ilumina
ao céu do meio-dia
o centro irradiador do meu ser, e também
minha forma de pensar, me expressar
sentir, lembrar
e agir, partindo pro ataque

Então penso, sinto, me deixo aquecer e me motivo a agir pela ideia do Amor.

However, I would say that sleeping is also my drug of choice,
No sentido compulsivo e incontrolável que "drug" evoca.
Não tendendo propriamente a comportamentos compulsivos,
Devo admitir que permaneço pensando sobre o amor
Nas longas horas a que me entrego à suspensão da consciência
Nos doces, solitários braços do sono, irmão da morte.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

não se negocia com Saturno

daria todos os meus livros + um dedo
queimaria tudo em uma grande fogueira cósmica mágica
esparzindo águas de cheiro com ervas
mandrágora, meimendro, beladona, whatever
para invocar só mais duas horas da sua doce,
firme, vertiginosa, inigualável, intensa

presença.




terça-feira, 11 de janeiro de 2022

o vazio inexplicável

"Amigo é coisa pra se guardar
Debaixo de sete chaves
Dentro do coração
Assim falava a canção que na América ouvi
Mas quem cantava chorou
Ao ver o seu amigo partir
Mas quem ficou, no pensamento voou
Com seu canto que o outro lembrou
E quem voou, no pensamento ficou
Com a lembrança que o outro cantou
Amigo é coisa para se guardar
No lado esquerdo do peito
Mesmo que o tempo e a distância digam 'não'
Mesmo esquecendo a canção
O que importa é ouvir
A voz que vem do coração
Pois seja o que vier (seja o que vier)
Venha o que vier (venha o que vier)
Qualquer dia, amigo, eu volto
A te encontrar
Qualquer dia, amigo, a gente vai se encontrar
Seja o que vier (seja o que vier)
Venha o que vier (venha o que vier)
Qualquer dia, amigo, eu volto
A te encontrar
Qualquer dia, amigo, a gente vai se encontrar"

Rest in power, my friend.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Dias de Saturno

A oração ao tempo de Caetano, em toda sua baiana malemolência, despe o melancólico deus de suas sombrias vestes. É um bom contraponto para o tom de tudo o que aqui se lê e observa.
A influência de Saturno está impregnada em tudo o que já fui, sou e ainda serei - em suas nuances mais obscuras, no mais das vezes.
Me pergunto sobre seus efeitos há muito, muito tempo. Poderia escavar um rosário de memórias - não sem alguma dificuldade, certamente. Me atenho a dois momentos significativos.
A (talvez não tão) famigerada música que deu título a este espaço virtual, em que persisto por eu mesma  nunca ter essencialmente mudado, ou sentido a necessidade dessa mudança de tom: talvez aos 16 ou 17, ponto nevrálgico da minha dor saturnina.
O encontro, aos 24 ou 25, com o romance de Osman Lins e seu melancólico encadeamento de ausências: inscrevi em meu próprio corpo a pungente percepção de que ele passa, como tudo há de passar ("O corpo é uma história: a do seu próprio curso.").
Durante o mestrado, não foram poucos os questionamentos mais existenciais do que literários que lancei para Gilvan, meu velho orientador, ele próprio um mensageiro de Saturno, a meu ver. Queria entender, principalmente, o que mudava e o que permanecia com a passagem do tempo: talvez vencido pela insistência, me deu uma resposta direta para algo que custou a ele muitos anos, páginas e experiências.
As respostas diretas praticamente nunca vinham. No constante desdobrar de contrapontos, meu velho me ensinou a pensar: para honrá-lo, não posso chamar essa habilidade de virtude. Ele me olharia com desdém.

Aos 30, com o retorno de Saturno, meu aniversário do deus do Tempo, o que antes era uma angústia, agora é percepção nítida, lúcida. Uma dor sublimada continua sendo dor. Aprender a ler o mundo é aprender a ver em cada pessoa, em cada rua, em cada nome, seu percurso: o que muda e o que permanece.

Mas tudo, tudo há de passar...