terça-feira, 24 de maio de 2022

à deriva

Eu não quero mais evoluir. Não quero mais colocar à prova constantemente todos esses anos de análise, tanta boa resolução resultando em nada mais do que solidão. Ou uma vida totalmente na contramão do fluxo de um mundo que corre em direção ao abismo – mas o fluxo me arrasta.

Ecoam as palavras da analista: “mas você não está sozinha”. Não estou, decerto. Mas é um esforço amazônida sustentar a posição queer quando o que te rodeia são as expectativas do sempre-o-mesmo. Retifico: uma posição radicalmente queer. Porque existe o queer que continua reproduzindo as velhas estruturas de poder: o teatro é o mesmo, mas os atores se sentem mais livres para customizar os personagens. Estou cansada dessa mesma velha história. Não é assim que eu quero escrever a minha vida.

(Pode ser que eu esteja sendo apenas dura, apenas impaciente, apenas isso mesmo que eu sempre fui, a minha mesma velha história para além da qual eu não consigo me mover. Há quem prove a vida na prática e experimente o dia com todo o corpo. Eu experimento com a mente, deixando meu hibernante corpo em chamas com a flamejante dúvida: o que aconteceria se eu fosse para o mundo da prática?

Juro que estou tentando. Mas o cru da vida é decepcionante.)

Ir ao fundo do desconhecido para encontrar o novo exige uma coragem e um desprendimento incompatíveis com o velho anseio adormecido aqui, no meu coração, de ter um pouso em que eu possa descansar da mesma-velha-história. I wanna build something different, together.


No meio da solidão cósmica, a festa. Celebração dos nubentes. Velho vestido rendado com glitter, velho smoking de tecido de microfibra. Pater, Mater, a pródiga prole, e o Espírito Santo, pomba tão estúpida quanto nossas surradas esperanças.

Dançamos a vida do aqui e agora. Música alta, de perturbar os tímpanos. As luzes dos globos espelhados refletem seus raios neon no meu cabelo azul, que refulge seu artificial, contemporâneo, tardio, abismal brilho.

Penso no salão em meio a uma escura estrada, a vida acontecendo num aglomerado de vida, imensos montes e vales vazios ao redor. Como o planeta Terra, singularíssimo, pênsil relicário em meio às vastidões da incógnita cósmica.

 

quarta-feira, 18 de maio de 2022

estação Uruguaiana

churrasquinho, tattoo e cupuaçu
desembocando no caldo do caos urbano
caosurbano
causurbano

daria um bom causo,
mas hoje vai ser só esse poeminha.

quarta-feira, 11 de maio de 2022

dead end

como um par de mãos em meu pescoço,
mas sem carícia.

como o fim de uma jornada árdua:
fundo cego, beco sem saída.

desrazão de todo fim,
nova demanda pela fé cega
que anime um recomeçar.

segunda-feira, 9 de maio de 2022

cartografias

ando pelo centro da cidade e
nossos marcos são meus pontos-chave
de entrada na câmara escura do meu desejo:
mergulho.

quase não vejo: ouço
os rumores da minha memória
soterrada pelas distorções
de uma fantasia selvagem.

ecoam interrogações
que germinam por entre as frestas
do meu coração retalhado.

busco entre os despojos 
do meu eu anônimo, estrangeiro,
qualquer coisa como uma fé cega,
tênue fio de Ariadne que ainda me resta.

domingo, 8 de maio de 2022

de novo, um regresso ao solar

nomes então enigmáticos começaram a me contar
uma história que, não sendo só minha, não deixa de sê-lo
tão sentidamente
- arriscando o tropeço na sentimentalidade espúria.

"solar (ou palacete), casa de origem de uma família nobre".
herança maldita de uma nobreza fajuta,
palavra pervertida:
solar é o sol, 
deus dos mais imediatos,
verdadeiramente generoso
em seu natural esplendor.

o solar de minha nobre família
tinha seu tom celestial,
cobrindo um referente sombrio:
Augusto dos Anjos.

"Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de sua última quimera."
etc, etc.

do último prédio da rua sem saída
(umbigo do meu mundo),
seguindo em linha reta,
outras ideias:

"A praça! A praça é do povo
Como o céu é do condor"

"Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta."

"O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente."

claros enigmas sobre os quais venho me desdobrando
desde minhas remotas eras pessoais
até agora, e em frente, e além
- até quando?




quinta-feira, 5 de maio de 2022

estátua de mármore: o equívoco

na origem das serifas, o talhe em pedra.
na origem das estátuas de mármore, o esquecimento
como elemento principal de uma estética fria,
distante.

antes, bem antes,
em imemoriais tempos,
a estátua de mármore foi ricamente adornada
de metais e outras cores.

(com atenção, paciência, dedicação,
usando nossas sempre novas tecnologias,
é possível reconstituir algo dessa memória)

o trágico barroco David de Bernini, contudo,
nasce em voluptuoso movimento
- mas frio como as frias estátuas
de um passado tão glorioso quanto inventado.

terça-feira, 3 de maio de 2022

dócil

gole breve no café preto
desce aquecendo:
doce.
mascavo, não refinado,
transformado em luxo
pelo caos que nos governa.

desce o doce do café preto, mascavo,
enquanto penso, pensátil,
buscando o ponto zero do equilíbrio
dos pratos.

pesa-me: a negação da docilidade.
idem: a afirmação da doçura.

a coragem e seu traço ativo,
a cura em sua receptividade.

ser, ser e ser mais, aqui, agora,
e o não ser, mudo, escuro, futuro.