sexta-feira, 19 de abril de 2024

temperos

o dela tem pimenta
o do meu bem é o curry doce
o meu, as ervas de provença
com a presença marcante do alecrim
e o êxtase do manjericão

quinta-feira, 18 de abril de 2024

o que se canta sobre a sereia?

ouvi-lo cantar é um espinho que

estava parado, quieto,
sem ninguém mexer com ele
talvez até cicatrizado?
calcificado nas bordas, pelo menos
já não sangrava, só estava lá, quietinho

e então algo se mexe
e eu me dou conta
da profundidade em que ele se infiltrou
na minha carne

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esteróides androgênicos

bondoso ≠ pacífico ≠ atlântico

na praia da paciência
em frente à casa da felicidade 
junto à cauda da Jubarte
a sereia da água doce
em seus tons rosa-quartzo
lê o palimpsesto:
"só Deus pode me julgar"
sob
"felicidade não é sobre ter tudo pra você"
(happiness is not about getting all your(s))

diga-me com quem andas

e a natureza relacional do ser humano.
ánthropos-,
não andro-,
nem gino-.

à parte as interseccionalidades,
há as escolhas éticas e morais.
daí que

sexta-feira, 12 de abril de 2024

consortes

minhas irmãs,
onde estão vocês?
com quem eu compartilho,
em semelhança de minúcias,
o meu destino pequenino?

quinta-feira, 11 de abril de 2024

no fim, sempre se casam com as princesas

não com as bruxas
obviamente

alguns casos são de divã
outros, de guilhotina

terça-feira, 9 de abril de 2024

gritos e sussurros

da minha pele em pânico
pela monumental mudança
que a roda viva instaura
(na minha vida - não,
ou sim, é claro,
mas nunca do jeito que eu esperava que seria
nunca é, afinal) 

quarta-feira, 27 de março de 2024

crônicas da misericordilândia

chove em nossa terra. 21ºC, uma manhã fria no alto da colina, a chapa quente dentro dos portões e portas da escola. sobe o vapor barato do desleixo.
o nome do nosso sistema de governo é a autocracia fundamentalista burguesa. antes de toda e qualquer coisa: eu. eu em segundo, eu em terceiro e, se sobrar alguma energia, talvez, quem sabe?, dependendo da maré de hoje... ah, hoje não porque amanhã é recesso.
as nuances são misteriosas: quem é que manda, afinal? eu ainda não entendi bem, por isso escrevo. se você souber, por favor, me escreva.
sendo professora da misericordilândia, confesso: estou exausta. mas... e se não resistir? e desocupar? entregar tudo pra quem? em vão? o que será? Criolo tem sido tão bem sucedido em me ajudar, por isso vivo convocando o meu Buda. até o Profeta eu saquei, das catacumbas da memória, pra vir em meu socorro.
professor, profissão de profeta. quando a profecia é sombria para o poder instituído, cegam-nos e jogam-nos no labirinto das sombras.
acontece que eu sou amiga do vale da sombra da morte e, por isso, já não temo mais mal algum.

sexta-feira, 15 de março de 2024

os seus filhos gostam

quem diria!
Jorge Maravilha,
prenhe de razão,
sabia que as crianças precisavam de
menos raciocínio lógico
e
mais produção literária

<3

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

a dobradinha da tia Sônia

    Houve em dois dias, pelo menos, de que eu consigo me lembrar. O primeiro foi feijoada; o segundo, dobradinha. Houve também um Natal, com rabanadas - não sei se o mesmo em que, aos dezenove, percebi que acontece de as famílias serem casas fraturadas em sua medula.
    Enquanto lavava a louça, é claro: é no trabalho doméstico que nos irmanamos, as mulheres da família. Tentamos escrever histórias novas, prometendo aulas de inglês para as primas, mas a herança mais forte ainda está muito próxima em termos geracionais.
    Eu adoro dobradinha e feijoada. Gosto muito da ideia da família reunida, mas só no campo da idealização. Pode ser que haja famílias que caminhem bem sobre as próprias pernas: a minha, não. Retraímo-nos em um núcleo fundado na exploração do trabalho doméstico das mulheres e na depredação de sua autoestima - como é de nossa praxe dita civilizacional. E eu ainda tomo como falha pessoal a minha dificuldade de expandir meu passo pelo mundo...
    A vizinha berrou o dia inteiro com as duas meninas. Meu coração treme, nervoso. Meu cérebro se exaure imediatamente, derrotado, angustiado com a repetição do trauma. Tenho trinta e dois anos, mas meu corpo se lembra de muita coisa passada. Meu corpo é mais sábio que eu, e eu ainda não aprendi a escutá-lo.
    O que é feito do amor nesses contextos de violência e abuso? Eu não consigo entendê-lo bem, ainda. bell hooks diz que eles não coexistem, amor e violência. Mas na casa fraturada reuníamo-nos, vez em quando, ao redor do fogão de lenha com a panela fumegando cuidado. As mulheres... Algumas de nossas faces são as da guardiã violada, Medusa que grita para nos petrificar de horror.
    Além dos gritos e do choro desesperado de criança, de vez em quando também sobe, da casa da vizinha, um cheiro bom de comida boa...