domingo, 30 de abril de 2023

dos dias que passam

há coisas que retemos
- e eu não me furto em fazê-lo com frequência - 
mas há aquelas para as quais
não há salvação
- e essa é uma ideia que me fere de morte.

um mundo estável era tudo o que eu mais queria
sem saber que a saúde está no movimento,
e que tudo muda o tempo todo no mundo,
e que nada será como antes amanhã.

um mundo estável, sim,
e radicalmente amoroso
- e eu pensava que poderia criá-lo
só com a força da minha obstinação,
sem saber que abrir caminho com a testa
contra a pedra dura
é mais do que masoquismo:
é burrice.

há coisas que retemos
- uma lembrança de dias enevoados
em que dividíamos uma descoberta pueril
do mundo externo 
atentando aos detalhes que faziam dele algo belo,
tão diferente do que tínhamos em nossos abrigos,
ninhos partidos, cheios de insegurança
e dor -

e há coisas que deixamos passar,
porque não é com a testa que abrimos caminho:
é com as águas moles do mar bravio
ou as águas fluidas do rio turbulento
que passam lavando as pedras das nossas mágoas

e algo se parte, mesmo,
e não há salvação
além de seguir em frente
- porque a sorte é que
existe vida possível
depois da insalubridade
que pensávamos ser amor.

sábado, 22 de abril de 2023

"As aparências enganam

aos que odeiam
e aos que amam..."

[07 de abril de 2009]

As figuras poéticas nada me dizem sobre o amor. O nada me diz tudo sobre o amor, e isso basta. É o que o amor é, afinal: o vasto deserto de nada, vazio, incógnito, frio e escuro. Mais um caminho estranho de perdição. E isso pode até ser uma metáfora para definir o que eu penso sobre o amor; mas isso não importa. Sobre essa dor, nada mais importa a mim, além de minhas próprias percepções, das certezas dolorosas às quais eu cheguei após me lançar voluntariamente à tentativa frustrada. Todo o restante são só belezas puras. A poesia não contém a verdade sobre o amor - não uma verdade universal, ao menos. Não a minha verdade. Deixa, que, apesar de mentirosa, a poesia é bela e alenta o coração. Ela tem uma nobre finalidade.

Mas deixe a verdade do Amor quieta, calada, adormecida em suas cruéis proporções. A verdade não merece ser cantada. Deixa, que a ilusão e a mentira são mais confortáveis de se escutar.


"...Os corações cortam lenha, e depois
se preparam pra outro inverno.
Mas o verão que os unira
ainda vive e transpira ali:
nos corpos juntos, na lareira,
na reticente primavera,
no insistente perfume
de alguma coisa chamada amor..." (Tunai)

"oh love
he tells me
i don't know
can't understand
never think
don't know how
only that
there is intense connection
strong binding
abiding warmth
oh love
i come to you who know
the way
oh love
i kneel down
and press my face
against the bosom of memory
where i first yearned
and knew then
how to let my hunger speak
" (bell hooks)

sexta-feira, 7 de abril de 2023

recado

ô, menino,
isso tudo é muito mais sobre mim
do que sobre você
(você sobre mim
eu sob você
você sob mim
eu sobre você)
(tu sob mim
eu sobre ti
tu sobre mim
eu sob ti)
(you on me 
me on you
you in me)
(meus fluidos mentirosos
seus lábios egoístas
seus fluidos abundantes
meus lábios sedentos)

...

chorei e ressenti
não o previsto
- meu coração
delicadamente esfolado
pelas suas mãos -,
mas o que de fato foi:
seu psiquismo auto-absorvido
cortando, com um sorriso,
minhas tentativas de laço.

não creio mais na paixão
que um dia, a todos, já iludiu:
creio no que sinto e sei
quando vejo seus olhos
verde-profundos
se movendo, vívidos,
no rosto emoldurado
por riscos, pelos
e minha mão suave
sobre a sua têmpora esquerda.

não lamento o que sou
nem a solidão da incompreensão:
minha arte de amar é
um feitiço sutil,
longínquo, tão antigo
quanto o metabolismo das plantas
em interação com a terra,
a água
e o ar.

porém, estamos todos esquecidos
- eu, inclusive,
mas há tempos já que me dedico
a escavar os escombros da Memória -
e o amor não apenas
não é mais óbvio
como também é detratado
como fraqueza e ingenuidade.

ó, deuses que há,
o tempo passa tão rápido
e nós aprendemos tão devagar...



domingo, 2 de abril de 2023

l(a leaf falls)oneliness

 "Não sei por que você se foi
Quantas saudades eu senti
E de tristezas vou viver
E aquele adeus, não pude dar
Você marcou em minha vida
Viveu, morreu na minha história
Chego a ter medo do futuro
E da solidão, que em minha porta bate...
E eu gostava tanto de você,
Gostava tanto de você..."

A corrente fresca anuncia o outono - que já havia se insinuado, mas sem conseguir vencer o opressivo calor tropical potencializado pelo burnout global a caminho do qual rumamos, cegos, surdos e mudos.
Gosto do sutil arrepio que me recorda o mais íntimo da construção da minha solitude - eu, o papel e a caneta, e o café quentinho descendo pelo peito.
Gozo com a dor desse estado de abandono e frustração, tão tão familiar - mas não mais o mesmo, felizmente.
A tristeza é pela desilusão, que convida a dançar a dança da solidão,
Mas eu já transmutei a imensidão da solidão na quietude da solitude.
O que tem de "só", na raiz de ambas, é a brisa fria que me morde os pés...