domingo, 17 de dezembro de 2023

tomei vários drinks

com a grande pedra de gelo que você me deu.
confesso, foi a mais gelada de todas.
quando ela bateu bem no centro do meu peito
meu coração enrijeceu, petrificou.
eu quis morrer. falo sério.
então peguei a pedra e fui quebrando aos poucos,
acrescentando limão, água tônica e gin.
enquanto bebia, pensava
pensava
e pensava.
corri aos cadernos e encontrei
as palavras do dia em que 
tomei um drink com o gelo que outro me deu,
esse outro que é você repetido à exaustão
de um desejo completamente desprovido de autonomia.

chorei de angústia enquanto pensava,
até perceber que quem morreu, simbolicamente,
foi você.
o luto persiste, persistirá,
como o fazem os sonhos mortos,
as ilusões perdidas,
lembranças de um eu que só existe como fantasma.

"você já viu alguém mudar completamente?"
eu nunca vi, por mais que o tenha desejado
desde o mais fundo do meu coração gelado.

o que resta é um dia após o outro,
e renascer reinventando a si
sem pensar demais no depois de depois de amanhã.

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de 17 jan. 2023

fiz uma gin tônica com o gelo que você me deu

E enquanto sorvia o frescor da bebida
Pensei mil coisas
Sobre ansiedade, espera, paciência, conciliação
O que eu queria para mim - ou não
O que é aceitável ou não em mim, no outro
Revivi tantas situações dolorosas
Em que a impotência me atou as mãos
E a frustração se derramou no meu peito
Como o balde d'água com desinfetante que derrubei hoje
Nessa água escorregadia fui aos poucos
Inevitável, inapelavelmente
Cha   fur   dan   do
Até que me vi entregue, ridícula
Caída no chão
Minha roupa ensopada colada no corpo
O desinfetante irritando a minha pele
Mas havia nesse momento
Um amigo gentil
Que me ofereceu o mínimo, tão raro
De não me fazer me sentir pior comigo mesma
Do que eu já estava sentindo.
Sequei a bagunça com a dignidade que ainda me restava.
Quem dera o ridículo do derramamento e da chafurda
Nas más águas do ressentimento
Fossem acidentes tão simples de se resolver...




sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

cigana

perdida em solo estrangeiro
em que cores demarcam
histórias e territórios,
um onírico acerto de contas:
a agulha invisível do destino
perfura a pele
e o vermelho brota

rósea, mística aliança
firmada em outra dimensão

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

uma nova esfera

dos abismos plutonianos,
onde vibram os registros akáshicos,
uma pulsão maligna expele
um tipo desconhecido, até então,
de tristeza

não mais a filha da minha alma partida,
mas um sombrio filho de Omulu
que nos observa enquanto soam
os tiques taques
do relógio do juízo final 
  

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

rascunhos

Essa é uma história que eu não vou ter tempo de maturar, porque a cada dia o mundo se dissolve diante dos nossos olhos. Ia dizê-los "negacionistas", mas consigo ver a todos nós dando-nos conta do destino que nos aguarda logo ali, na próxima esquina em chamas.

Trinta anos atrás eu andava pelo mundo sobre duas pequenas perninhas ainda se acostumando com o próprio peso. Não entendia nada para muito além da quentura do colo da minha mãe ou da minha avó. O sabor das papas, a tela de luzes coloridas brilhando suas narrativas de colonização do imaginário.

Nove anos atrás eu vivia no fundo de uma depressão sem fundo, que hoje eu revisito com uma angústia mais lúcida, mas que ainda é a mesma angústia. Metia os pés pelas mãos achando que tudo era culpa minha, mas fazia mesmo assim o que eu pensava que queria, sem saber se era aquilo mesmo, ou não. Tudo um grande ponto de interrogação, e eu cavando com desespero um sistema de valores em um mundo que - eu não sabia - já estava se dissolvendo.

Hoje o meu corpo maduro como uma fruta madura ainda se lembra do amargor do seu verdor, doçura impregnada de ressentimento e desesperança. É possível pedir que não entreguemos os pontos quando a atmosfera não arde ao redor da nossa pele.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

rascunhos

"Eu nunca confundi amor com violência", digo, resoluta, compartilhando uma revelação tão íntima quanto iluminada. Um raio de pretensa clareza que me acertou durante as infinitas, constantes divagações, essas que entremeiam qualquer atividade banal - sempre uma tarefa hercúlea, porque exige a domesticação dos meus nervos permanentemente tesos e seus pensamentos difusos.

Eu sempre soube que havia algo desencontrado, um fio desencapado, pronto para descarregar ressentimento... De quê? Como eu poderia saber que não era eu o erro? Como não tomar para mim - o autoafogamento no poço do eu - aquela raiva que faiscava (faísca, ainda) no ar, que espreitava a primeira palavra mais implicada para nela fazer sentir suas reverberações destrutivas, a força de sua mágoa?

Penso que nunca confundi amor com violência porque conseguia perceber sua presença ausente, uma densidade sufocante... Tão diferente da leve maciez do afago, a dureza normativa. Um não poder respirar com a alma. Havia afago, até, mas tão misturado no caldo espesso das frustrações cotidianas que se dissolvia; seus efeitos, mitigados. Carinho não vem em forma de tapa, nunca. Nem concreto, nem abstrato.

O amor restou principalmente nos gestos sacrificiais, no que se faz a contragosto. Como dizer, enfim, "você não é obrigado a me amar"?, que amor não é - não devia ser - uma obrigação, agora que sou adulta, criada, educada, funcionando, apesar de não exatamente funcional... Agora que não preciso mais de você?

Uma vida poupada em indolentes e vazias horas de sono, nos profundíssimos cansaços, que hoje entendo virem desse irracional estado de alerta, em que tudo parece que vai, a qualquer momento, explodir. Tudo tão anterior a essa expressão hoje corrente, "regulação emocional". É triste que demoremos tanto a entender, e que esquecer seja tão fácil.

(Eu ainda preciso, mas não vou implorar. O amor não pode ser incondicional - por essa brecha perigosa esgueira-se a violência reprimida, essa que eu me recuso a continuar a aceitar.)

domingo, 19 de novembro de 2023

o que se chama de amor

    Debaixo da galinha d'angola de barro pintado à mão ficava a papelada: cartões, cupons fiscais, bilhetes. Ao lado, o celular - com a bateria viciada. Tirou do carregador: "Minha filha, a vó precisa conversar com você, só com você. Sei que você tá ocupada, mas seu tio tá muito irritado, fiz uma comidinha deliciosa, preciso de um veterinário para olhar a Lulu, foi muito difícil levantar da cama hoje, tem dia que a coisa pega a gente feio, mas eu levanto porque a minha fé em Deus, só eu sei, o vídeo do padre Flávio me ajuda tanto, assiste pra você ver como é bonito." "Dou um pulinho aí no domingo, viu?" Domingo é dia de bater ponto, senão o trem desanda.
    "Como é bom quando você vem, você me fortalece, me enche de vida, a gente fica mais alegre - eu preciso de você e você também precisa de mim, a gente precisa uns dos outros, é muito ruim ficar sozinha, viu? Você pode vir assistir um filme, passa cada coisa mais linda na televisão, ontem assisti ao programa do Serginho Groisman, preciso comprar aquele colírio..." "Hyabak?" "Isso, minha vista fica muito ressecada pelo celular, minhas irmãs não estão falando comigo..." "Por quê?" "Eu não quis receber o Rogério. Mas vamos falar de outra coisa. Deixa eu te mostrar a receita de frango, você não importa de eu ficar te mandando vídeos de receita, né? Seu tio detesta que eu fique repetindo a mesma coisa, mas fazer o quê? É o meu jeito, né? Leio sempre a mensagem que você escreveu no espelho: tenha paciência com você mesma. É muito importante a gente estar juntos, ficar sozinha é muito ruim, essa semana seu tio me levou no médico, fiquei muito cismada, seu tio me ligou, ele é muito ansioso, coitado, mas tá cheio de problemas também, você quer uma manga? Um licorzinho de pequi? Sua mãe chega de viagem amanhã. Pega lá perto do meu celular o resultado do exame, fiquei muito preocupada, tenho todos esses problemas na família, né? Mas graças a Deus eu tô viva, tô vivendo pra ver tanta coisa bonita, eu sou a primeira dos meus irmãos e uma das poucas vivas, Deus me deu a oportunidade de estar aqui e ver vocês crescerem, o Leonardo, a Ingrid..."
    Debaixo da galinha d'angola, o envelope. "O médico disse que é coisa da idade, eu não vou fazer cirurgia não, o Caruso disse pra eu não fazer cirurgia, ele me mandou um vídeo tão bonito, vou te mandar pra você ver. Ele é um homem tão alinhado, muito sério, disse que eu sou muito repetitiva, o implante dentário não está me deixando falar direito, eu não gostei do serviço, viu? Não estou satisfeita, não mesmo, mas não vou denunciar, vou conversar com o João, só denuncio se não resolver com ele, sua mãe não pode ir lá comigo essa semana, você pode? Já falei com o seu tio, mas ele tá tão irritado, só fala comigo no solavanco, eu não mereço isso não, viu? Eu devo ser uma merda mesmo, porque sua tia também só me trata de qualquer jeito, mas eu tenho culpa de ser quem eu sou? Eu vim lá dos Ferreiros, perto de Itaguaí, o meu pai foi peão, minha mãe, solidão, meus irmãos perderam-se na vida..."


[da oficina com o Rafael Gallo, experiência transformadora, como todas aquelas às quais damos a devida atenção] 

domingo, 12 de novembro de 2023

o que o sangue murmura

a microexplosão infecciosa
nos meus lábios:
hoje digo "não quero",
hoje conto piadas bobas,
hoje solto o que corre
                no fundo do meu coração
porque nada mais importa
como antes.
hoje tudo é um grande lamento
uma tentativa de enlaçamento
onde tudo o que era sólido
se desmancha em um ar pútrido.

(algo ainda importa?)

domingo, 5 de novembro de 2023

pretending

todos somos poetas
ao passo que fingimos:
fingere, modelar o barro,
put your finger on what it is
to make sure nobody discovers
that it's only earth
imagination
and tears

todos somos poetas
ao passo que pretendemos
que, a partir da nossa palavra,
o outro nos aceite e ame
- e para isso lançamos mão
da pior das afrontas
que é a auto-negação


segunda-feira, 23 de outubro de 2023

poeminha do meu bem

rosas são vermelhas
violetas são violentas
crisântemos têm várias cores
sakuras podem ser rosas ou brancas

o amor é brutal
mas você faz tudo parecer tão delicado
                                                 e cheio de vida...

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Moon days

there's this Moon phase
- full, blue, in Pisces, conjunct Saturn -
claiming to ground my aerial emotions

and I'm willing to let it
peace down my heart
so exhausted of being constantly
on the verge of
being split off in two

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

cozinhando desespero

quando as unhas voltam a sorrir
nos dedos onicofagizados
é que sei que o desespero
está atingindo o bom ponto
de cozimento:
o sono já marinou o cérebro
deixando-o pesadamente hidratado
de pânicos semi-conscientes

e nada de o prato ficar pronto

domingo, 3 de setembro de 2023

do domingo passado

um poema

sobre o desejo de tê-lo
aninhado nos meus braços pensos,
indolentes, ou cruzados ao peito,
ou trazidos ao corpo, como num
abraço solitário em mim,
ou à maneira de travesseiro
- desconforto, meu apêndice -,
lembrança permanente de que
te quero envolvido por eles
com algum lamento pela
inevitável súplica
("fique", eu te pedi, sim,
sem saber muito bem o que fazer
a partir de então...).

sobre os sonhos intranquilos
nessa noite de ausência
em que tanto desejei meu corpo
contra a sua pele nevada,
sua voz de riacho calmo
deslizando pelos meus ouvidos
nutrindo o árido solo
do meu coração em pedaços...

sobre o desejo, sobretudo,
essa fome incômoda e sem trégua
que a vida me impõe e exige
e os sonhos me revelam
em suas faces mais inconfessas;
esse vazio permanente,
obscuro, confuso,
demanda excruciante,
plena de fantasia e dor,
lúcida em seus fins,
perdida em seus meios...

quarta-feira, 30 de agosto de 2023

a trégua

seus beijinhos
de passarinho
são como uma bonita tarde de sol
em meio aos dias chuvosos

(meus beijos famintos
são como uma assombrosa
noite fria de lua cheia)

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Chapter 58

Elizabeth was too much embarrassed to say a word. After a short pause, her companion added, “You are too generous to trifle with me. If your feelings are still what they were last April, tell me so at once. My affections and wishes are unchanged, but one word from you will silence me on this subject for ever.”

Elizabeth, feeling all the more than common awkwardness and anxiety of his situation, now forced herself to speak; and immediately, though not very fluently, gave him to understand that her sentiments had undergone so material a change, since the period to which he alluded, as to make her receive with gratitude and pleasure his present assurances. The happiness which this reply produced, was such as he had probably never felt before; and he expressed himself on the occasion as sensibly and as warmly as a man violently in love can be supposed to do. Had Elizabeth been able to encounter his eye, she might have seen how well the expression of heartfelt delight, diffused over his face, became him; but, though she could not look, she could listen, and he told her of feelings, which, in proving of what importance she was to him, made his affection every moment more valuable.

They walked on, without knowing in what direction. There was too much to be thought, and felt, and said, for attention to any other objects. She soon learnt that they were indebted for their present good understanding to the efforts of his aunt, who did call on him in her return through London, and there relate her journey to Longbourn, its motive, and the substance of her conversation with Elizabeth; dwelling emphatically on every expression of the latter which, in her ladyship’s apprehension, peculiarly denoted her perverseness and assurance; in the belief that such a relation must assist her endeavours to obtain that promise from her nephew which she had refused to give. But, unluckily for her ladyship, its effect had been exactly contrariwise. “It taught me to hope,” said he, “as I had scarcely ever allowed myself to hope before. I knew enough of your disposition to be certain that, had you been absolutely, irrevocably decided against me, you would have acknowledged it to Lady Catherine, frankly and openly.”

(Jane Austen, Pride and Prejudice [1813])


[feelings I thought didn't exist anymore...]

quarta-feira, 9 de agosto de 2023

mundo de sombras

caminhamos pelo vale da sombra da morte,
e o que querem de nós é temor.
mas o medo de amar é o medo de ser livre...
medo, medo, medo:
é ele o abismo que separa
esse arremedo de ser humano que somos
de todo o sobre-humano que todos podemos ser
- porque somos forças cósmicas,
distintas, sim, mas nem tanto,
das infinitas vastidões universais.

(desperto do meu sono inquieto com
o metal das máquinas pós-apocalípticas,
espectros sônicos a perturbar
o que deveria ser meu reencontro diário com
o essencial estado de latência
- o mesmo em que cada árvore repousa
dentro de cada semente.)

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

poliamorosa

sou sempre eu e sempre minha, como a lua:
mas tenho, também, as fases de ser dele,
e as fases de ser sua. 

sexta-feira, 4 de agosto de 2023

Jojo

epítome da elegância:
apontam para a perfeição
sua pelagem brilhante,
mais densa que o céu noturno;
as íris da cor da terra,
que faíscam, serenas,
ao sol da sesta;
seus modos de deitar-se
como musa de Velázquez;
seu gesto de aninhar-se
buscando o calor de um afago;
o olhar dengoso e manhoso,
doce como o mel de Oxum


terça-feira, 1 de agosto de 2023

escreve-se

...e, ainda assim,
a ferida está aberta,
a sangria não estanca,
a dor é forte
(demais pra mim)

...por um sem-número de motivos
quando eu queria apenas um:
a verdade transparente
(mas a literatura é opaca,
uma conjuntura complicada que abarca
a ideologia
e a realidade)

...e os detratores pisam
na solidão intrínseca do ato
- como se eu fosse louca,
como se eu não soubesse
com todas as células do meu corpo
a verdade do que eu digo

e por falar em loucura,
entrego pro Álvaro
isso que não sei mais como dizer:

"Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?"


(nosso sentimento não é de brinquedo...)

domingo, 30 de julho de 2023

guardei de você

uma expressão facial inédita,
bem diferente quando comparada
ao meu antigo repertório:
um misto de estranhamento e diversão,
sem a mínima sombra de terror

sábado, 29 de julho de 2023

Oxum/Ogum

01 par mínimo.

nas minhas procuras Google, descubro que:
1. "certa vez Ogum se apaixonou por Oxum. os orixás fizeram de tudo para chamá-lo de volta, mas Oxum reteve-o com seus encantos de dança e canto";
2. "Ogum foi chamado para uma batalha, sem data para voltar".

do livro de Reginaldo Prandi:
1. "Ogum é castigado por incesto a viver nas estradas" ("Que prisão poderia ser mais forte que o mel de Oxum?");
2. "Ogum reconquista o amor de Oxum" ("Oxum Apará está sempre com Ogum");
3. "Ogum conquista para os homens o poder das mulheres" ("Iansã, no entanto, ainda é a rainha do culto dos egunguns");
4. "Oxumarê é morto por Xangô" ("Oxum era mulher de Xangô, mas vivia enrabichada por Oxumarê");
5. "Oxum dança para Ogum na floresta e o traz de volta à forja"
("Era Oxum a bela e jovem voluntária.
Os outros orixás escarneceram dela,
tão jovem, tão bela, tão frágil.
Ela seria escorraçada por Ogum
e até temiam por ela, pois Ogum era violento,
poderia machucá-la, até matá-la.
Mas Oxum insistiu, disse que tinha poderes
de que os demais nem suspeitavam.
[...]
Oxum salvara a humanidade com sua dança de amor.")

[...]
"Oxum seduz Iansã" ("Oxum era muito decidida e muito independente.")





sexta-feira, 28 de julho de 2023

dias de Frigga

faço minha celebração pessoal e íntima
agora que as últimas feiras me lembram
nosso circuito pela costa do ou(t)ro:
desde o abraço do mar
(Odoyá, minhas mães),
o círculo em que pretendia
te enlaçar - bruxaria intuitiva -
(a coleção de pequenos momentos
só nossos - ou só meus),
minhas incursões pela cidade
ancestral e sombria,
até enfim te tomar pelo braço,
conhecer onde pisam os teus passos,
cartografia de um desejo inaudito
- inesperado em seu início,
misterioso em seus fins...

quinta-feira, 27 de julho de 2023

arquivos

misturar os seus nos meus
permitir e promover
infiltração:
suas ideias
suas músicas
seus livros

sua presença (tímida)
pouco ao alcance das mãos
- intensa nos meus sonhos
sua cabeça aninhada no meu peito
paz inundando o meu coração

segunda-feira, 24 de julho de 2023

domingo, 23 de julho de 2023

segunda-feira, 17 de julho de 2023

no seu pescoço

guardei no meu vestido
nossos vestígios
- segunda experimentação
em que malbec
não é só mais um perfume...

domingo, 16 de julho de 2023

salvador

me alimentaria
todos os dias
de seu corpo
feito de
cuscuz com manteiga
batata yacon
e banana-da-terra

segunda-feira, 3 de julho de 2023

croniquinha lírico-existencial-espiritual

desde que entendi a força do som reverberando no espaço, me tornei muito mais sensível a ele - ou consciente da minha sensibilidade sensorial. 

o reino dos pensamentos é um refúgio caótico para quem está permanentemente tentando coligir os relances em um todo coerente: às vezes nada faz sentido, mesmo. e está tudo bem. é importante apenas sentir, mas quando o sentimento só faz doer, não resta nada além de correr pra dentro, onde só há pensamentos.

(pra dentro: a antessala dos pensamentos. é caótica, mas é refúgio. o abismo que ainda há, por trás, é bem fundo...)

(agora que eu já desenvolvi um sistema de pensamento robusto, parece mais fácil me permitir abrir mão dele às vezes...)

o piano sombrio invadindo a tarde me paralisou de forma encantatória. a força do som reverberando no espaço de forma maviosa é meditação para todas as células do meu corpo.

me lembrei de Gurov e Ana Siergueiévna, minhas companhias de um ansioso domingo à noite. também Gurov esperou, ao som do piano, aflito, por uma resposta cósmica.

tentar entender o cosmos é um erro de principiante. refugiar-me nos pensamentos é minha insubmissão, mas às vezes o salto de fé é a única coisa a ser feita. curvar-me não é coisa de que eu goste (alô ⚸♑, ♄♒), mas eu me rendo a você, Grande Mistério.


(veja, no entanto, que eu comecei declarando ser a partir do entendimento que eu posso, então, liberar a sensibilidade. Grande Mistério, eu estou cansada de todos esses pensamentos...)

sexta-feira, 30 de junho de 2023

dor em abismo

as dores da humanidade são as minhas dores
- sinto-as no meu coração amargurado e desiludido.
oscilo, é claro. numa velocidade
que faria qualquer criança espoleta
ir correndo chorar de medo no colo da mãe.

as dores da humanidade são as minhas dores.
vejo-nos nos espelhos da diferença
e percebo-nos tão semelhantemente
frios, gananciosos, mesquinhos,
egoístas, amargurados, magoados.

as dores da humanidade são as minhas dores
e também seu imenso lamento
transmutado em imagens, palavras, sons,
ou pensamentos tão fortes que atravessam,
como um uivo, as noites de lua cheia.

mas meu coração chora as dores das nossas dores:
nossa incapacidade de dar as mãos
e remodelarmo-nos
a partir dos nossos farrapos.


segunda-feira, 26 de junho de 2023

doe eyes

em mitologia
prefiro a harpia
águia tropical gigantesca
pura rapinagem aérea brasileira
tão monstruosamente real
que parece até mitológica

tenho certeza de que ela se afigura muito ameaçadora
para pequenos antílopes 
de temperamento nervoso e assustado

mas esse é só o nível das aparências

(nem parnasa, nem tão fã de bilac
meu humor é mais Augusto dos Anjos)

domingo, 18 de junho de 2023

the king of nothing

incompleteness screams
bleeding inside the deepest of my guts
while i weep and bend over myself
a gesture of full submission
to the void that is
the most solid part of me

wish i could recreate it
so freely
absence into presence
by means of a simple
rearrangement

Ailill mac Máta
i summon you
out of this excruciating pain
felt in the innermost core
of my three hearts

terça-feira, 13 de junho de 2023

onde?

pra onde você está indo
com tanta, tanta pressa
que prefere ir sozinho
para ir mais rápido
chegar primeiro
- onde, José
Bernardo
Miguel
Giselle
Samara
...
?

terça-feira, 6 de junho de 2023

quintíptico carioca

certo rio de janeiro é

um torso grego

em que me espalho
primeiro com medo
descosturando camadas
de tecidos ansiosos
que abafam meus histéricos
anseios
de engolir a cidade
com a boca faminta
pelo que é novantigo
notívago
um desejo frio
arrepio angustiado
ante o tanto que há
a versaberfazer
tão denso e concentrado
um atentado
contra os meus frágeis nervos

um obelisco de mármore

ao redor do qual orbito
irresistível magnetismo
opressivo campo gravitacional
que me esmaga na densidade
de sua massa erigida
no umbigo do novomundo

um cenário utópico

em que minhas fantasias aprendem a
se perder
muito, muito tempo depois
(tempo até demais)
de conseguirem se encontrar:
no espelho das vidraças
consigo mesmas
nas esquinas da ilusão
umas com as outras

uma cidade pós-apocalíptica

onde as formigas circulam
dia-e-noite, dia-a-dia
nos labirintos de alvenaria
com suas luzes infinitas
que disputam com as estrelas
estrelestroboscópicas
starlink vermelhibranco
a refletir a luz solar
como há éons faz
a lua

uma imensa sedução

aterradora visão
de suas baías e enseadas
cravejadas de berloques
de tantas décadas
séculos
resumidos na minha fissura
pela gigantesca e delicada
perna de cimento e metal

quinta-feira, 25 de maio de 2023

"I do believe in fairies!"

- Eu odeio literatura.
- Sempre que você fala isso, uma fadinha da literatura morre.
- Isso não é verdade.
- É verdade! Eu não morro porque eu sou uma fadona da literatura. Mas as fadinhas morrem, sim.

sábado, 20 de maio de 2023

Lacradoras do mundo, uni-vos!

para minhas amigas de luta e lida

        "Você não está fechando o diálogo com esse lacre", diz a analista. De fato. A acusação de "lacração" vem de muitas partes: todas elas se incomodam com a nossa vontade de problematizar verdades postas, ou mesmo fomentar espírito crítico e senso de auto-aprimoramento. No geral, as pessoas querem de nós aquiescência, em especial das vozes dissonantes que, f(emin)inas, deveriam ser brandas e gentis, e não bagunçar o coro dos contentes... Mas o aparente contentamento de uns é o evidente descontentamento de outras, haja vista essa nossa sociedade, em que a hierarquia e a exploração formam o cerne mais rígido de nossa organização como corpo coletivo.
        A acusação chateia principalmente quando vem daqueles que temos perto dos nossos afetos mais caros, porque nos faz duvidar de nós mesmas a partir de um referencial tão sensível... Como se já não viéssemos lutando tanto, e não só por nós mesmas, mas por nós todos! Desde muito antes de nos fazermos ser ouvidas, travamos essa batalha interna para acreditar e credibilizar nossas impressões sobre o mundo que nos rodeia. Estar na posição subalterna é um peso a mais para fazer a travessia da incerteza imobilizadora para a certeza dinâmica. Num mundo em que convicções são cooptadas como mercadoria, e as identidades atomizadas tentam se impor com violência (que é a linguagem predominante, própria dos dominantes, e também resposta legítima, mas não ideal, dos dominados), caminhar com passo firme rumo ao novo é um desafio histórico, em diversas acepções desse adjetivo.
        O lacre não deveria ser um fecho, mas acaba se tornando: como um desejo de "basta", mas sem a abertura radical e amorosa própria do pensamento crítico. Ao contrário do que talvez se conceba, pensar é ato que se ensina, sim, e é um ensino-aprendizagem tão delicado quanto transformador para ambas as partes. Mas quem tem coragem de ensinar abdicando de uma posição hierárquica de poder? Há muito, ainda, que caminharmos - juntas, sim, mas sozinhas, também, num processo árduo de desconstrução da nossa fome de poder, porque estamos famintas por tanto não-poder...
        Lacradoras do mundo todo, uni-vos! Para renovarmos nossa capacidade de fazer laços que protejam nossos corações em seu corajoso desejo de abertura. Para aprendermos o movimento preciso, como um passo de misteriosa dança, de tocar as almas de outros seres, nossos irmãos, sem feri-las em tão ousado gesto. Para descobrirmos que o mundo novo já existe em nós como semente que anseia por sua germinação e desdobramento - em novos, doces, suculentos frutos.

domingo, 14 de maio de 2023

eu te daria um mundo dos sonhos


num delírio de onipotência
próprio dos sonhadores
penso em você
- com cabeça, coração e estômago -
e desejo profundamente
poder te dar um mundo
cheio de bem querer.

nele, os dias podem ser feitos
de tardes iluminadas
com cervejinha, tira-gosto
e músicas para embalar
as alegrias do corpo
e do espírito.

ou, também, de manhãs calmas
em que a família se senta à mesa
sem pesares ou pendências
para compartilhar a graça
do pão nosso de cada dia.

ou, ainda, de noites de sossego com
boas novelas passando na TV
- com enredos que acreditam mais
na capacidade de o ser humano
ser melhor do que tem
demonstrado ser...

nas horas contemplativas,
rolos e novelos de lãs e linhas
tecidas, ponto a ponto,
no cuidadoso,
atento,
minucioso
trabalho do amor.

ao dormir, a paz de poder descansar
sobre uma consciência tranquila
diante da missão cumprida.

eu te daria um mundo dos sonhos
mas o real é árido e desafiador
- ainda que, veja,
o sonho já exista
um pouco
nas brechas do real...

então te ofereço o que tenho:
minha gratidão, abraços mil, e o convite
de irmos, juntas,
atrás do sonho-real possível.

<3

quarta-feira, 10 de maio de 2023

hey, jude

don't make it worse
than what it already is.
take a single word
and make something with it:
describe in details
your thoughts and feelings.
map them out
- first, to yourself,
then, to the ones you love
and finally to those
that will read it and think
"oh, it suits me so well..." -
and maybe you'll see nothing
but a bunch of useless words
- but "useless" is the best we can have
in a world so addicted to
productivity...

domingo, 30 de abril de 2023

dos dias que passam

há coisas que retemos
- e eu não me furto em fazê-lo com frequência - 
mas há aquelas para as quais
não há salvação
- e essa é uma ideia que me fere de morte.

um mundo estável era tudo o que eu mais queria
sem saber que a saúde está no movimento,
e que tudo muda o tempo todo no mundo,
e que nada será como antes amanhã.

um mundo estável, sim,
e radicalmente amoroso
- e eu pensava que poderia criá-lo
só com a força da minha obstinação,
sem saber que abrir caminho com a testa
contra a pedra dura
é mais do que masoquismo:
é burrice.

há coisas que retemos
- uma lembrança de dias enevoados
em que dividíamos uma descoberta pueril
do mundo externo 
atentando aos detalhes que faziam dele algo belo,
tão diferente do que tínhamos em nossos abrigos,
ninhos partidos, cheios de insegurança
e dor -

e há coisas que deixamos passar,
porque não é com a testa que abrimos caminho:
é com as águas moles do mar bravio
ou as águas fluidas do rio turbulento
que passam lavando as pedras das nossas mágoas

e algo se parte, mesmo,
e não há salvação
além de seguir em frente
- porque a sorte é que
existe vida possível
depois da insalubridade
que pensávamos ser amor.

sábado, 22 de abril de 2023

"As aparências enganam

aos que odeiam
e aos que amam..."

[07 de abril de 2009]

As figuras poéticas nada me dizem sobre o amor. O nada me diz tudo sobre o amor, e isso basta. É o que o amor é, afinal: o vasto deserto de nada, vazio, incógnito, frio e escuro. Mais um caminho estranho de perdição. E isso pode até ser uma metáfora para definir o que eu penso sobre o amor; mas isso não importa. Sobre essa dor, nada mais importa a mim, além de minhas próprias percepções, das certezas dolorosas às quais eu cheguei após me lançar voluntariamente à tentativa frustrada. Todo o restante são só belezas puras. A poesia não contém a verdade sobre o amor - não uma verdade universal, ao menos. Não a minha verdade. Deixa, que, apesar de mentirosa, a poesia é bela e alenta o coração. Ela tem uma nobre finalidade.

Mas deixe a verdade do Amor quieta, calada, adormecida em suas cruéis proporções. A verdade não merece ser cantada. Deixa, que a ilusão e a mentira são mais confortáveis de se escutar.


"...Os corações cortam lenha, e depois
se preparam pra outro inverno.
Mas o verão que os unira
ainda vive e transpira ali:
nos corpos juntos, na lareira,
na reticente primavera,
no insistente perfume
de alguma coisa chamada amor..." (Tunai)

"oh love
he tells me
i don't know
can't understand
never think
don't know how
only that
there is intense connection
strong binding
abiding warmth
oh love
i come to you who know
the way
oh love
i kneel down
and press my face
against the bosom of memory
where i first yearned
and knew then
how to let my hunger speak
" (bell hooks)

sexta-feira, 7 de abril de 2023

recado

ô, menino,
isso tudo é muito mais sobre mim
do que sobre você
(você sobre mim
eu sob você
você sob mim
eu sobre você)
(tu sob mim
eu sobre ti
tu sobre mim
eu sob ti)
(you on me 
me on you
you in me)
(meus fluidos mentirosos
seus lábios egoístas
seus fluidos abundantes
meus lábios sedentos)

...

chorei e ressenti
não o previsto
- meu coração
delicadamente esfolado
pelas suas mãos -,
mas o que de fato foi:
seu psiquismo auto-absorvido
cortando, com um sorriso,
minhas tentativas de laço.

não creio mais na paixão
que um dia, a todos, já iludiu:
creio no que sinto e sei
quando vejo seus olhos
verde-profundos
se movendo, vívidos,
no rosto emoldurado
por riscos, pelos
e minha mão suave
sobre a sua têmpora esquerda.

não lamento o que sou
nem a solidão da incompreensão:
minha arte de amar é
um feitiço sutil,
longínquo, tão antigo
quanto o metabolismo das plantas
em interação com a terra,
a água
e o ar.

porém, estamos todos esquecidos
- eu, inclusive,
mas há tempos já que me dedico
a escavar os escombros da Memória -
e o amor não apenas
não é mais óbvio
como também é detratado
como fraqueza e ingenuidade.

ó, deuses que há,
o tempo passa tão rápido
e nós aprendemos tão devagar...



domingo, 2 de abril de 2023

l(a leaf falls)oneliness

 "Não sei por que você se foi
Quantas saudades eu senti
E de tristezas vou viver
E aquele adeus, não pude dar
Você marcou em minha vida
Viveu, morreu na minha história
Chego a ter medo do futuro
E da solidão, que em minha porta bate...
E eu gostava tanto de você,
Gostava tanto de você..."

A corrente fresca anuncia o outono - que já havia se insinuado, mas sem conseguir vencer o opressivo calor tropical potencializado pelo burnout global a caminho do qual rumamos, cegos, surdos e mudos.
Gosto do sutil arrepio que me recorda o mais íntimo da construção da minha solitude - eu, o papel e a caneta, e o café quentinho descendo pelo peito.
Gozo com a dor desse estado de abandono e frustração, tão tão familiar - mas não mais o mesmo, felizmente.
A tristeza é pela desilusão, que convida a dançar a dança da solidão,
Mas eu já transmutei a imensidão da solidão na quietude da solitude.
O que tem de "só", na raiz de ambas, é a brisa fria que me morde os pés...


quarta-feira, 15 de março de 2023

i liked you so much

and still i can't outline precisely 
which of the multiple layers and faces of you
are the ones you offered me to know
- stingy and shy, but even so, you gave me something
(crumbs, i gotta admit)
something that i liked and kinda miss
(but it's okay anyway
they were only crumbs...
whateva)
.
.
.

sexta-feira, 10 de março de 2023

relances urbanos

como no dia em que, indo pro pilates,
minhas roupas de ginástica foram flagradas pelo olhar da noviça,
meus olhos capturam seu braço rabiscado ao volante, cruzando a Rio Branco
- meu coração dá um leve sobressalto.
me sinto irrigada por um conforto desesperançoso
de sabê-lo real, inteiramente fora de mim.

(entendam: eu até poderia viver de outra forma,
mas a paixão faz parte da minha estética de ser.)

[...]

minhas doces e intensas consortes:
à que não mais está aqui, gratidão por sua radicalidade amorosa;
à que ainda está, gratidão por sua honestidade brutal.

em um mundo em que os afetos se desfizeram,
viraram areia fina, deserto onde tudo é tão certo
como dois e dois são cinco,
a solitude é real por fora,
mas trago-as comigo, por dentro,
tangendo belas melodias
nas cordas presas entre o coração e o pensamento.
 

sábado, 4 de março de 2023

comentários a Persephone, the wanderer, por Louise Glück

1. got absolutely shocked when I first read that "Persephone is having sex in hell". Probably I blushed severely, but I was reading it on my own;
2. the quantity of layers in the whole poem is a delicious vertigo;
3. "She is lying in the bed of Hades. / What is in her mind?"
"Oh, Hades's d**k is a teeny-tiny one..."
(As a virgin, she couldn't know this, of course, 
But this is my oh so intimate and personal revenge...);
4. "[...] You do not live; / you are not allowed to die." - ouch, Louise, no need for this.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Do caderno holográfico da sereia cósmica (1)

    Minha não-história com todos vocês vem introduzida pela negatividade própria do Eros, esse mesmo que está em agonia na sociedade do desempenho (Byung-Chul Han).
    Esta é uma sociedade adoecida de egoísmo, because it takes two to tango, and it seems that people don't even know how to dance in couples anymore.
    Somos desejadas como objetos, ou como parideiras/cuidadoras, ou damas de companhia. Nunca em nossa exuberante e extraordinária (Cássia Eller) singularidade.
    Até porque o Eu muito adequado à sociedade do desempenho não quer por perto ninguém que:
    1. o desafie a Ser-Mais (Paulo Freire), porque ele já está gastando toda a sua energia se adequando, ou se rebelando de forma auto-destrutiva quanto a isso, ou às vezes os dois, mas nada para além disso;
    2. demande a generosidade da partilha, a negociação do poder (bell hooks): exatamente porque a sua ontológica é egoísta.
    Me aborreço muito, é claro. But I have no real interest in taking part into this sad game. Quando encontrei "sad" como sinônimo de "lamentável", que era o adjetivo em português em que eu estava pensando, me dei conta de que:
    a. This scenario is the big sadness - what I constantly feel is just a yearning (bell hooks) for connection while living inside this great existential shit;
    b. Benjamin pensa em se matar quando se dá conta de que i. seus amores (i.e. suas fantasias amorosas) deram errado e ii. seus escritos não se tornaram socialmente relevantes. Porém, ele desiste da ideia para ver o que viria depois. Depois, veio o nazismo;
    c. O sistema de valores que considera o amor uma doença (Lacan, Stendhal) não é o mesmo que o entende como promoção do crescimento espiritual de pessoas que voluntariamente se dispõem a construir um laço (bell hooks) - o que é verdadeiramente revolucionário, indeed. Até porque adoecer é casual como cair - fall in love. Amor não é isso em essência, apesar de sua aparência mais comumente aceita ser essa (e é por isso que, na cama, não existe A Pabllo Vittar, mas O Phabullo...).

sábado, 25 de fevereiro de 2023

great hopes, low expectations

ESCREVA UMA ÁRVORE, PLANTE UM FILHO, TENHA UM LIVRO

    No vaso de plástico há um pé de boldo, dois brotinhos de cerejeira e um abacateiro querendo vencer distâncias.
    O pé de boldo nunca cessa de me encantar com seu incrível poder de regeneração, seu vigor e resistência, sua fertilidade permanente, mesmo nos pontos mais duros de seu caule principal.
    Os brotinhos de cerejeira são os meus sonhos cor-de-rosa: lindas ideias em visível potencial, mas sem grandes esperanças de realmente virem a florescer. Devem morrer por sufocamento: ficarei observando para presenciar seus primeiros indícios de degeneração, e só então decidir o que fazer com eles - os brotos, é claro.
    O abacateiro chegou a um estágio muito interessante e inesperado: ele já tem folhas grandes, muito semelhantes às da árvore quando adulta. Me parece até viável que ele venha a cumprir seu destino: estou disposta a encontrar-lhe um lugar mais digno de seu grandioso futuro, mais do que o vaso de plástico da área de serviço de um apartamento antigo do bairro São Mateus.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

por que o capitalismo não é uma religião, por Byung-Chul Han

"Tanto a desculpa quanto a gratificação pressupõem a instância do outro. A falta de ligação com o outro é a condição transcendental de possibilidade para a crise de gratificação e a crise de culpa. Essas crises deixam claro que, em contraposição à suposição muito difundida (p. ex., por Walter Benjamin), o capitalismo não é uma religião, pois cada religião opera com culpa e desculpa. O capitalismo só é inculpador. Não dispõe qualquer possibilidade de expiação, que pudesse livrar os culpados de sua culpa. A impossibilidade de desculpa e expiação é responsável também pela depressão do sujeito de desempenho. Junto com a Síndrome de Burnout, a depressão representa um fracasso sem salvação e insanável no poder, isto é, uma insolvência psíquica. Insolvência significa, literalmente, a impossibilidade de liquidar a dívida e a culpa (solvere)." (BYUNG-CHUL, 2017, p. 25)

também diz ele que o eros vence a depressão - mas quem está disposto a fazer esse movimento? sozinha não dá, porque

"O eros é precisamente uma relação com o outro, que se radica para além do desempenho e do poder. Seu verbo modal negativo é não-poder-poder. A negatividade da alteridade, a saber, a atopia do outro, que se subtrai de todo e qualquer poder, é constitutiva para a experiência erótica [...]." (idem, p. 25)

Gilvan olhou desconfiado, certa feita, para essa "negatividade" constitutiva da experiência erótica, me fazendo pensar na diferença entre o pensador europeu (o Byung-Chul) e a pensadora feminista negra (bell hooks, é claro). Porque bell fala sobre o amor na perspectiva da falta: sabê-lo pelo avesso, como ausência.

(Uma das mais bonitas dialéticas, a da presença-ausência...)

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[de 16/02]

não poder poder me parece que é o verbo modal do Eros
segundo a exausta lógica do Byung-Chul Han.
se eu estiver enganada (não estava!), mesmo assim
vale o raciocínio.
não poder poder é uma poda
da constante expansiva
    da sociedade do desempenho.
abaixo o poder, o que exaure e oprime.
viva o poder que afirma a vida (bell hooks)
    - mas esse, não sei se sequer entra
    nos anais europeus da história da filosofia.
não entrando, não sei como infundi-lo
    na lida cotidiana.
me parece que todos avançam movidos por
    sei lá que bizarra força
que está longe de ser meu ideal de movimento:
um deslizar macio, sem atrito,
uma afinação sustentável de metabolismos
    guiada pela ideia simples
de harmonizar uma totalidade.

(quem aposta na crise é porque sabe,
com a dor dos nervos tesos ao limite do suportável,
de sua inevitabilidade.
afrouxados pelo desgaste,
    cedem,
mas seus dolorosos, brilhantes produtos
resplandecem, mudos, nas minhas prateleiras
esperando por meu coração de carne
para infundir-lhes renovada vida.)

complicada como um bonsai

[de 19/01]

essa constante enxurrada seca de palavras
é uma tentativa desesperada
de aplicar ferramenta tão maravilhosa
- a linguagem - 
para traduzir os erráticos, desproporcionais
padrões do meu pensamento-emoção
- porque o que em mim sente está pensando.

o bonsai é uma estrutura raquítica
artificialmente criada
(como um poema sucinto)
para abrigar no conforto de um lar exíguo
o mistério da vida.

sábado, 4 de fevereiro de 2023

you say you love me

and this is beautiful and nice, but
have you taken a good look at these words
"I love you"
?
besides being an abstract noun
- and this is the privileged morphological classification -
love is a fucking verb.

(consider this a weird kind of English class)

so I ask you, my dear friend,
given that love, being a verb,
implies action:

how do you love me?
when do you love me?

(the usage of interrogative pronouns and auxiliaries make my argument
unmistakable
- or at least this is what I hope)



segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

the more I talk about it / the less I do control

I won't talk shit about this until I sense myself totally metamorphosed.

sábado, 28 de janeiro de 2023

o doce amor não existe (pra mim)

tantas vezes sonhei embarcar nas asas de um sonho bom
mas a fantasia do doce voo se provou
doce ilusão
mordida suculenta em morango apodrecido
de dentro pra fora.

percebo-me isolada, e que bom que há as palavras
para nomear e dar contorno a essa angústia fina
que corre meu cérebro como uma fisgada permanente
imune à dipirona 1g.

o coração bate porque a vida me é alheia.
dizia o Pessoa que, se pensasse, ele pararia.
sei essa sensação com todos os meus neurônios
    neste exato momento.

pensava que a lua nova era a da esperança
e a minguante, a da melancolia.
há tempos não me sentia no fundo de uma depressão sem fundo
- sem o exagero, como separar o sofrimento agudo
da corriqueira apatia racionalizadora?

quando tudo parece um imenso beco sem saída,
corro para dentro: durmo.
melhor seria deitar no colo da terra
e esvaziar a caixa de Pandora dos pensamentos
lançando-os sem pena, sem apego, ao Cosmos azul imenso.

(psicanalista de férias = insalubridade emocional)

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

rose, the queen of flowers

o que existe depois da sentimentalidade espúria
é o amor que sobrevive ao horror
- os reais acontecimentos
vividos em sua integridade e plenitude.
é o amor o mais maduro possível,
num estágio de eterno presente:
à prova do tempo,
des- ou re-encantado,
doce-amargo, mas nunca podre
(Perséfone junto a Hades).

Preciado confronta a sexualidade com a heterogênese,
a produção de diferença:
o amor que ama aquilo que é des-idêntico a si
(não é: está sendo,
combinação do estacionário com o fluido,
vida sempre-viva, mas sempre mudando).

(Saturno/Cronos é o corte que institui essa vida
estacionária, idêntica a si mesma: esquizogênese.
Mas como assim?
esquizo = to split, dividir
a foice, o punhal, a tesoura: o corte
...)

[o segredo dos seus olhos
é que eles também dão morada
ao espírito que habita
o coração da floresta
- mas nossos corações são vermelhos]

 

sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

O que existe depois da sentimentalidade espúria?

 O drama é uma forma racional de amplificar esses sentimentos que brotam tão mirrados do meu coração, incapazes de formar uma corrente líquida: são tão densos quanto o ar.
Falo muito sobre a névoa, que é a única forma possível para as minhas tão aéreas emoções: capazes de furacões, mas não de tempestades.
O orgulho negativo é aquele de que eu quase me gabo não ter em algumas das minhas faces - não em todas. Acho que sei distingui-las, mas não vou fazer isso agora.
Fato é que eu tenho um orgulho positivo das minhas capacidades de amar - que não recebem validação com tanta frequência quanto, vim a compreender, eu necessito. Mas quem tem que saber do meu valor sou eu, primeira e principalmente. Que aprendizado difícil. A indiferença dói como um dedo enfiado numa ferida que nunca consegue se curar.
O amor é esse processo tenebroso, que dá seus frutos podres, às vezes até mesmo envenenados. Assimilar sua realidade integral é aceitá-los todos, do verde ao maduro, em todos os seus estágios; envenenados ou caramelados.
Mesmo os que vêm caramelados podem estar podres, ou envenenados. O verde tem um travor que, encontrada a nuance, pode revelar qualquer coisa de sei lá o quê. Foda-se a metáfora.

O que existe depois da sentimentalidade espúria é uma racionalidade tão plana que eu não sei bem o que fazer - talvez meditar e tentar ignorá-la pelo menos por um ou dois minutos, enquanto não encontro seus olhos d'água.

Os de dentro, é claro. Os de fora não se furtam em minar vez ou outra.

(batcaverna style)

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

freestyle, quase um plágio

Menta, a ninfa do rio Cócito,
guarda no macio verdor de suas folhas
o hálito gelado do 9º Círculo do Inferno
morada de todos os traidores
inclusive Lúcifer, o anjo de luz, decaído.
Também Aqueronte, Erídano, Estige,
Lete e Flegetonte
compõem a bacia hidrográfica do Tártaro/Hades,
o mundo das sombras.

Sobre os rios:

Aqueronte - infortúnio, afluente do Estige, fluía pelo lago Averno, às vezes sinédoque para o próprio Hades;
Lete - também uma náiade, filha de Eris, senhora da discórdia, esquecimento, oposto da Aleteia, a verdade;
Estige - ninfa filha de Tétis, invulnerabilidade, lugar de promessas inquebrantáveis e votos sagrados, onde Aquiles recebeu seu dom;
Erídano - constelação vizinha a Órion, o motivo pelo qual vim parar nesse fio de pensamento sobre os rios infernais;
Flegetonte - rio de fogo, onde estão os violentos, afogados no rio de sangue fervente, é também um rio de cura, para que as almas afogadas passassem mais tempo sob tortura em suas águas - "me ferindo e me curando a ferida", já diria a Rita Lee; 
Cócito - o rio das lamentações, onde Menta ficou chorando depois que Hades a rejeitou para se casar com Perséfone.

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

pensando-com, dias atrás

ciúme é um bicho de metal
que morde o peito por dentro, arrancando pedacinhos
com o veneno do sadismo escorrendo no canto da boca
baba de uma fome irracional e selvagem
(não, não: é humana e ideológica,
mas tirar-lhe os véus não é mitigar-lhe a dor)

domingo, 1 de janeiro de 2023

Sem anistia

o nosso presidente legítimo cita um trecho do relatório da transição
que apresenta a radiografia do desmonte do Estado e das políticas públicas
diz que é o povo brasileiro quem vai pagar essa conta
(a conta do orçamento secreto,
e entre as sugestões de medidas para revogação e revisão
consta a Revisão de Atos que Impuseram Sigilo Indevido de 100 Anos
              em Documentos de Acesso Público)
ao que o povo responde, prontamente:
sem anistia.

apanhamos, sim, mas não vamos mais apanhar calados.