terça-feira, 29 de novembro de 2022

ternura é só uma das faces

a primeira, com que eu inauguro o contato.

pense na esfera como o que é: um poliedro de infinitos lados,
e a singularidade do ser humano como essa esfera:
imperfeita, um geóide, à imagem e semelhança da Mãe Terra.
na irregularidade de sua superfície destacam-se algumas planícies,
os vastos oceanos e suas profundezas encobertas,
os desertos de areia, e sal, e gelo,
as cadeias de montanhas, rochosas e ásperas.

pense no encontro como uma conjunção planetária:
a partir de certo momento, os campos gravitacionais começam a interagir.
o primeiro segundo, meu mais agudo ângulo, é a ternura
(ainda que pensem, ainda que queiram enxergar a loucura).

o de vocês, ó grande outro uraniano, é o frio calculismo.

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

poemeto do desgosto

até quando
a desumanização como preço?

entre sabiás e bem-te-vis

na asa da fantasia, embarco.

uma memória tão leve quanto
a sensação de olhar pra um dia em grão
ou delirar em uma noite insone.

o bem-te-vi sou eu, ainda que
uma versão noturna,
presença inconfundível
nas travessias da loucura
- mas sou normal, eu sou.
só não quero ser comum.

o sabiá é você: pena-flecha
a me atravessar sem dó,
com tanta graça
que me enlevou, inequívoco.

isso é o que me sopra a brisa da intuição,
mas ela nunca me conduz o pouso à razão,
e os sonhos estão quase todos mortos... 



domingo, 20 de novembro de 2022

domingo em três tempos

o pensamento:

All the loneliness you make me go through,
You deserve it all back to you. And you're gonna have it.
(Let me feel anger, just let me, let me, let me...)

Then, Cornel West:
"How do you channel that rage into love and justice rather than hatred and revenge?, 'cause the rage sooner or later is gonna bubble up."

In my case, it took thirty-fucking-one years to start bubbling up.


o amor:

"Love is a form of death. You'll never be able to get on the edge of that abyss to make the leap, to know what love is unless you're willing to take that risk." (Cornel West)

"Every attempt of expression of love, even if it doesn't work, is still worth it." (Cornel West)

a luta:

"My fear is fighting against my faith." (bell hooks)

"If you're struggling in some way where you can't find any joy, it's time to step back, reevaluate and consider: is there a struggle that can restore to me that sense of joy?" (bell hooks echoing Paulo Freire)




sábado, 19 de novembro de 2022

ancoragem no acaso

mordi a isca enganchada a oeste do pensamento,
no mesmo lado onde está o coração concreto,
em que se fala em profecias, pertencimento
e viver grandes momentos
(com o perdão pela quebra de paralelismo).

meu eu desdobrado é esse espectro que flutua
e navega e mergulha as águas frias e fundas do intelecto.
não apenas pensamentos, elas também são emoções,
e desse caldo espesso e misterioso ressinto
a - no muito mais das vezes - solitária travessia.

não somos bondosos nem puros, disse a outra,
voz incógnita no turbilhão de conteúdos.
mas o gancho me atraiu precisamente com a ideia
de uma nova ética, radical e simples:
a alma existe, importa e necessita de amor.

o que será do amor sem a coragem da bondade?
o que será do amor sem a pureza da intenção?
amor é ação respeitosa, que promove o crescimento
e não se mistura com abuso, violência, negligência.

"há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer,
nem há desembarque onde se esqueça."
pudera eu, poeta, me esquecer,
fingir que não foram assim
essas últimas três décadas
de navegar meu oceano dentro
e caminhar o deserto fora,
sem porto para um repouso,
sem fundo para descer a âncora,
sem água que mitigue a sede:
"solidão é lava que cobre tudo,
o amargor em minha boca sorri seus dentes de chumbo"...

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

como 2 e 2

quem não conseguiu fazer sua alquimia interior
não vai poder crescer junto comigo.
(this is the spell I cast to myself)

vejam, os anos têm sido impiedosos para nós,
os que crescemos na sociedade pós-industrial.
olhamos ao redor, e antes fosse tudo deserto:
há lixo por toda parte,
ar e água não são mais potáveis,
a terra está contaminada
e o fogo criminoso consome
nossas últimas reservas de vida natural.
na terra brasilis o povo trouxe a primavera nos dentes
mas, de tanto rangê-los, talvez fiquemos banguelas.
ninguém tem nervos de aço, ainda que alguns se proclamem
"anti-frágeis".
ontem completaram-se 100 anos daquele que sabia
que somos feitos de carne, e sangramos
.
não adianta, meu pretenso amigo, trazer tatuadas
inscrições inspiradoras na sua carcaça bela e triste,
se sua terceira dimensão é um poço envenenado.

ou reflorestamos a nascente dos nossos corações,
ou sucumbimos junto ao sistema do poder colonial.
a primavera não vai recuar.

(inexata, dolorosa, mística
matemática humana)

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

2D

como a Terra plana:
um mito pobre, de alienados.

largura: a dos quadris.
altura: alongada pelo salto alto
finalizando pernas nuas.

nada do que corre por dentro importa,
tão afogado está em seu próprio espelho d'água.

(minha terceira dimensão é um mar infinito
que você não é capaz de navegar:
marinheiro de piscina)

terça-feira, 8 de novembro de 2022

full moon, you see me standing alone

entregaria todos os meus vícios
dos mais inofensivos aos mais auto-destrutivos
- entre eles, um continuum insuspeito - 
ao gelado fluxo das águas profundas,
aquelas que não veem o Sol da consciência desperta.
entrego. entrego tudo isso que me rouba de mim,
que me detém em minhas investidas,
que amarra meus pés nos tapetes das etiquetas
e me põe presa nos muros da auto-dúvida
(que é diferente de auto-questionamento,
como o ego é diferente da auto-estima).
entregaria, porque sei que a magia existe,
mas ela depende da feiticeira para se manifestar.
ponho nestas palavras corriqueiras
- minha magia, minha perdição, meu alento - 
a intenção de que a lua cheia carregue
minhas feridas, meus vícios, minhas dores
para debaixo da terra quente e úmida
e que a nossa feiticeira-mãe, maior,
esteja comigo, conosco, todas nós,
em nossos processos de regeneração.

domingo, 6 de novembro de 2022

[...]

secam-me as palavras no fluxo dos dias
secos, depois das lágrimas de alívio:
a aurora de uma linha temporal em que é possível
sonhar com o futuro.
reticente, penso. aqui dentro, silêncio.
por fora, o trabalho da voz e das mãos
navegando o fluxo seco dos dias.
o que se omite é tudo que não são essas palavras:
o fluxo dos meus dias, em que tudo ocorre,
em que muito analiso, piso em falso,
sorrio e sinto raiva,
mais digo do que faço: as tantas coisas que preciso fazer.
a insatisfação crônica que também me obseda,
as unhas roídas de aflição contínua, ancestral,
desde quando... desde há muito, muito tempo.

muitas palavras do lado de fora.
falo muito mais do que costumava,
costumava calar: o que torna tudo tão mais fácil
e mais sofrido, o gozo masoquista.
apanhar não é bom, não.
é um constante atentado contra a minha dignidade,
essa que, hoje sei, vale ouro: mas só pra mim.
a quem mais ela deveria importar? a todo mundo.
mas isso é utopia, e a revolução não acontece
no nível individual.

amo as palavras do lado de dentro,
essas que brotam do meu misterioso âmago,
do mesmo lugar de onde vêm as imagens do meu desejo.
essas que adoro, amo mesmo, o gozo íntimo
de ter uma vida interior tão intensa
quanto vertiginosa:
olhar para dentro é um maravilhoso conforto.
será meu entorpecente favorito
esse encontro com Hipnos, irmão de Tânatos,
filhos de Nyx, a Noite, e Érebo,
as trevas infernais,
a sombra crepuscular.

sei o preço que paguei e pago por minhas escolhas.
selei meu destino comigo mesma há muito tempo.
duvidar de si mesmo é a pior prisão
mas sigo, pés descalços sobre aguda linha,
a tentar escapar, com delicadeza e cautela,
dos muros do cárcere infinito.

o mundo é deserto e solitário.
o amor vem em lampejos,
tudo é seco e árido,
mas às vezes chove e a grama viceja
e é bonito de ver que a Natureza se renova
mesmo que eu não:
vivo de arrastar correntes
como um espectro triste,
flutuando a milímetros do chão.

o mundo é fascinante e imenso,
mas minhas escolhas me prendem a este chão
de tacos envernizados
rodeado por muros brancos
sobre eles, um teto todo meu,
dentro deles, eu, meus livros, 
meu museu de mim mesma,
my song of myself.

[...]