domingo, 6 de novembro de 2022

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secam-me as palavras no fluxo dos dias
secos, depois das lágrimas de alívio:
a aurora de uma linha temporal em que é possível
sonhar com o futuro.
reticente, penso. aqui dentro, silêncio.
por fora, o trabalho da voz e das mãos
navegando o fluxo seco dos dias.
o que se omite é tudo que não são essas palavras:
o fluxo dos meus dias, em que tudo ocorre,
em que muito analiso, piso em falso,
sorrio e sinto raiva,
mais digo do que faço: as tantas coisas que preciso fazer.
a insatisfação crônica que também me obseda,
as unhas roídas de aflição contínua, ancestral,
desde quando... desde há muito, muito tempo.

muitas palavras do lado de fora.
falo muito mais do que costumava,
costumava calar: o que torna tudo tão mais fácil
e mais sofrido, o gozo masoquista.
apanhar não é bom, não.
é um constante atentado contra a minha dignidade,
essa que, hoje sei, vale ouro: mas só pra mim.
a quem mais ela deveria importar? a todo mundo.
mas isso é utopia, e a revolução não acontece
no nível individual.

amo as palavras do lado de dentro,
essas que brotam do meu misterioso âmago,
do mesmo lugar de onde vêm as imagens do meu desejo.
essas que adoro, amo mesmo, o gozo íntimo
de ter uma vida interior tão intensa
quanto vertiginosa:
olhar para dentro é um maravilhoso conforto.
será meu entorpecente favorito
esse encontro com Hipnos, irmão de Tânatos,
filhos de Nyx, a Noite, e Érebo,
as trevas infernais,
a sombra crepuscular.

sei o preço que paguei e pago por minhas escolhas.
selei meu destino comigo mesma há muito tempo.
duvidar de si mesmo é a pior prisão
mas sigo, pés descalços sobre aguda linha,
a tentar escapar, com delicadeza e cautela,
dos muros do cárcere infinito.

o mundo é deserto e solitário.
o amor vem em lampejos,
tudo é seco e árido,
mas às vezes chove e a grama viceja
e é bonito de ver que a Natureza se renova
mesmo que eu não:
vivo de arrastar correntes
como um espectro triste,
flutuando a milímetros do chão.

o mundo é fascinante e imenso,
mas minhas escolhas me prendem a este chão
de tacos envernizados
rodeado por muros brancos
sobre eles, um teto todo meu,
dentro deles, eu, meus livros, 
meu museu de mim mesma,
my song of myself.

[...]

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