quinta-feira, 31 de março de 2022

hope and despair

porque não posso ser reacionária, nem deixar de ser realista:
eis as duas opposing ideas que vivo a equilibrar nos meus pensamentos.

durmo e acordo cavando janelas nos muros da minha angústia
(que, sei, é partilhada. nisso já não me sinto mais solitária).
embrulha-me o estômago, sim, também, o estranhamento
de um dia a vida ter sido algo totalmente diferente
e hoje estarmos aqui, à beira do colapso, presenciando o mundo a se dissolver.

não mais me angustia saber-me de pé sobre mim mesma,
me, myself, in my shoes
(uma percepção nova, e dolorosa quando ela me ocorreu),
ainda que me custe meus dentes:
a tensão de decidir, a todo momento, para onde caminhar,
e caminhar, mesmo a contragosto
(agora caminho, mas sem deixar de reclamar). 

espero um dia poder abrir a porta da minha alma
e sair, percorrer o mundo do lado de fora,
abandonar-me por um tempo e ser outras, desdobrar-me por aí,
com mais imaginação verbal do que a que ainda retenho, por ora.

meu pensamento ainda não domina minhas palavras,
por isso escrevo pseudo-poesia.
tantos planos para tão pouca disciplina
(talvez eu viva para sempre indisciplinada).

domingo, 27 de março de 2022

silêncio

silêncio é o que escuto em meio aos ruídos do mundo.
ficar só com o invisível exclui a metade:
- uma metade apodrecida pela doença da ganância.

a beleza existe em relampejos breves, esparsos.
a alegria vem, efêmera como
os momentos em que meu corpo dá trégua das alergias:
defesas levantadas contra um real hostil.

silêncio para apreender a ilusão de que a metade visível se veste
e então poder decidir o quanto, realmente, quero participar do jogo.

(eu não quero)

quarta-feira, 23 de março de 2022

o corpo no outono

em dois momentos distintos:
aos 19, embaixo das nostálgicas cobertas,
aos 29, no frio apartamento, nós dois em pé.

então, formigamento e dormência:
inebriante enxurrada de hormônios e descobertas.

depois, gemidos e tremores:
redescoberta da minha pele sob seu gélido toque.

o primeiro vento outonal me acaricia
ativando memórias, três décadas de jornada:
sinto-o, sinto-as. erótico sopro de vida.

♂: órbitas

em torno de sua força centrípeta orbito
não mais com sede de uma redenção
mas com a curiosidade de quem,
por hábito,
investiga.

deixo-me atrair, perco mesmo o juízo.
falo de amor, sinto-o com orgânica fluidez:
foi assim que ocupei boa parte dos meus dias.

não nos prometo nada além do dia de hoje,
nada além da vida de agora:
ofereço meu precioso tempo, 
esse que agora, eu sei, se esgota.

para além, tenho eu a mim mesma,
até o derradeiro momento da travessia.

enquanto isso, derramo-me como me gusta.


...

três horas de silêncio: meditação
para ver se tomo consciência
da energia que me é vampirizada
pelos dispositivos eletrônicos
- mas não só.

nascem e morrem os dias.
meu corpo cada vez mais maturado,
as memórias se reorganizam,
distribuindo-se por ele todo
- não mais só na cabeça,
não mais só no coração.

o cansaço ancestral persiste,
mas resisto. assumo-me
como antes não poderia
porque a névoa ansiosa
me aterrava e confundia.

belo mundo em que a pressão interna cede:
abrem-se novos espaços
para a alegria
para a auto-aceitação
para o descanso.

o que há em mim ainda é, sobretudo, cansaço,
mas vejo novas luzes por entre novas frestas:
a casca de um velho eu está a ponto de romper-se.

quinta-feira, 10 de março de 2022

ardência

 "no fundo do peito, esse fruto
apodrecendo
a cada dentada"

quarta-feira, 9 de março de 2022

arrasta-me

piso os grãos ancestrais
com o êxtase de quem, depois de longo exílio,
reencontra-se com aquilo que,
não lhe sendo estranho,
é quase completamente novo.

deito-me ao comprido na areia.
fecho os olhos, abro os olhos,
fecho-os, abro-os,
fecho, abro, fecho, abro
com a aflição de quem tem sede
de saber a verdade do mundo
com o corpo.

pressiono entre os dedos os pequenos grãos
e olho-os com o pasmo essencial
de quem ansiava por poder nascer, novamente,
para a eterna novidade do mundo. 

corro para o mar, iridescente.
leio o sol em seus reflexos
na delicada, bravia superfície.
a pele coberta de filtro solar e maresia
arrepia de calor: enlevo da brisa marinha.

sem tempo para temer, lanço-me.
brinco em meio às ondas
com uma alegria pueril
flagrada, em espanto,
existindo, ainda, no fundo da minha alma.

arrastam-me as vagas.
circundam-me as algas,
as pessoas, de tantos tipos e cores,
os micro e macro plásticos:
perversa e inexorável presença humana
que perdeu o respeito pela vida
da qual, inconsciente, inconsequente,
faz parte.

entristece-me saber-nos no ocaso 
de uma forma de vida cruel e bela
- que poderia ser mais bela do que cruel,
mas isso é a vida: é guerra, é guerra.

entrego meu corpo alegre às ondas,
ao mar e seus caprichos violentos,
tombo diante da sua força
- mas respiro. não me deixo (mais) afogar.

aterra-me sabê-lo, com o corpo,
um imponderavelmente imenso
ser vivo:
matricial útero que me embala
no vai-e-vem dos ancestrais ciclos...

(quanto tempo de alegria ainda me resta?)

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Caeiro I
Caeiro II

sexta-feira, 4 de março de 2022

Medeia contemporânea

se a quebra da lealdade gerava, antes, o furor da vingança
- não que ela ainda não ressoe, flamejante, no corpo da neossacerdotisa -, 
com muito mais compostura e classe Medeia se faz entender:
"os incomodados que se mudem".

(Afinal, o que ela deseja não é vingança, mas justiça.)

o problema das sacerdotisas de Hécate

sentir sem comedimentos.

quinta-feira, 3 de março de 2022

uma noite, uma vida

reconheço sua silhueta esguia: é noite.
envolto em trevas e ruído
- a cidade ao redor emite seus gritos - 
você beija a minha testa,
o universo começa a cantar.

sua presença atravessa os meus sentidos.
na última vez em que nunca mais te vi
era fim de tarde: minha mente rodava.
o coração na mão, apertado,
o desejo contrariado, a ingenuidade.

conduzimos um ao outro,
mãos dadas com insegurança,
estranheza, assombro,
o (in)familiar que nos governa
e não se desata, não se desata.

(mistério)

palavras, palavras, palavras, palavras.
pródiga fonte que jorra de nossas cordas
tangidas por ideias afiadas, afinadas.
"você vai achar que eu sou maluco"
- não se preocupe.

primeiro, porque
somos todos malucos.
segundo, porque
estou ocupada demais
me embriagando da sua presença
- essa que nunca mais tive,
essa que pensei que nunca mais teria.

os deuses sabem o que fazem lá
em suas intocáveis esferas.
eles sabem do veneno que nos intoxica
um ao outro, quando sinto
my body when it is with your body:
so quite new a thing.

nós, pequenos deuses, sabemos bem
o que fazemos em nossas particulares esferas:
o que brota de nossas fontes de energia
quando tocamos um ao outro
com os dedos, com os lábios, com os dentes,
com as mãos, os pés, o nariz, a língua:
alegria, alegria.

depois, tudo o que resta
é silêncio
e uma vaga espécie de promessa.

(mas talvez tudo se acabe no próximo segundo)