quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Em meio ao labirinto... II

 ... A minha alma renasceu.


Minha cabeça sempre foi um labirinto giratório e enevoado.

Agora que eu consegui reduzir um pouco a vertigem da rotação e espantei um pouco da névoa (em gestos aflitos de mãos ao ar, com seus dedos roídos)

Percebi que o mundo inteiro é um imenso labirinto.

(Os signos do mal-estar.)

__________________________

em 01/01/2021, descobri o porquê do meu fugere urbem:



(http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/terraroxa/article/view/24854/18220).


sábado, 26 de dezembro de 2020

Feliz Natal II

[A autoria não é minha - ela vem indicada ao fim do texto.]


jesus jacobino


Meu reino não é deste mundo.

JESUS


A história é um pesadelo do qual quero acordar.

JAMES JOYCE


Eis que o reino de Deus está dentro de vocês.

LUCAS, 17,21


Jesus, reformador ou revolucionário?

Essas categorias são muito modernas, filhas das Revoluções francesa, russa, mexicana, chinesa e cubana, talvez as únicas, até agora, dignas desse nome.

A tomada do poder pelas classes oprimidas raras vezes (alguma?) ocorreu na história.

A doutrina de Jesus, porém, tomou o poder no Império Romano, sem disparar um tiro, quer dizer, sem disparar uma flecha nem levantar uma espada.

Isso é um fato.

Como é fato que foi a burguesia quem inaugurou a idade das revoluções, com essa Revolução Francesa, que Lênin e Trótski, pais da russa, chamavam A Grande Revolução.

Nela, a atuação mais radical foi a do Partido Jacobino, liderado por Robespierre, dito o Incorruptível, oposto aos girondinos, de tendência moderada (1793-4).

Durante a breve ditadura dos jacobinos, milhares de cabeças rolaram na guilhotina, condenadas pela sumária justiça revolucionária (revoluções não costumam primar pela gentileza nem pelas boas maneiras).

Robespierre e os jacobinos queriam a pureza máxima do ideal revolucionário: democratização, republicanismo, secularização, em uma palavra, o racionalismo da burguesia iluminista, moldando a sociedade à imagem dos seus interesses e à semelhança dos seus negócios.

Robespierre pode parecer o paralelo mais inadequado para Jesus. Nenhum símile entre quem salvou a adúltera de apedrejamento, contra as leis de Moisés, e o advogado que, 1790 anos depois, condenou à morte, implacável, seus próprios companheiros de partido e de militância, com o rosto de pedra de um rei assírio. Uma coisa, porém, Jesus e Robespierre têm em comum. Eles querem o exagero, a pureza de um princípio.

Nisso, são revolucionários. Apenas os métodos diferem.

Erro pensar que Jesus veio abrandar os rigores farisaicos da religião de Israel. Ele veio para tornar mais agudas as exigências dessa fé.

Um dos pontos essenciais de sua doutrina é a interiorização dos ritos

Daí, sua hostilidade constante contra o exibicionismo da piedade dos fariseus.

Jesus os detesta porque mandam tocar trombeta na hora em que vão depositar esmolas no templo, para que todos saibam como eles respeitam a Lei.

Os fariseus lhe devolvem o rancor na mesma medida, classe ideologicamente dominante (o poder romano era inteligente demais para mexer na religião dos seus incontáveis súditos, pontuais pagadores de impostos, que importa que não adorem?). Influências essênias, contato com João, o Batista, Jesus acelera ao máximo essa tendência de interiorização dos ritos judaicos, que já tinha começado com os profetas, no século VII a.C.

O dentro e o fora começam a desaparecer: exterior e interior tendem a se encontrar num ponto infinito.

Jesus está inventando a alma: o supersigno que todos somos “dentro”. Essa, talvez, foi a sua revolução, a mais imperceptível de todas.

Jesus ocupa um lugar muito especial na lista dos Cromwells, Robespierres, Dantons, Zapatas, Villas, Lênins, Trótskis, Maos, Castros, Guevaras, Ho-Chi-Mihns, Samoras Machel.

Talvez seja inadequado aplicar à irradiação da doutrina de Jesus o qualitativo de “revolução”, uma categoria política essencialmente moderna, afinal, com implicações não apenas ideológicas, mas, sobretudo, econômicas, administrativas, sociais e pedagógicas. E bélicas. Uma categoria essencialmente laica.

A saga de Jesus só faz sentido no interior de um mundo de intensidade religiosa máxima, como o judaísmo antigo, onde as motivações da fé comandavam todos os aspectos da vida. Uma existência inimaginavelmente mais rica do que esta jângal sem grandeza que é a vida das grandes massas nas megalópoles abortadas pela Revolução Industrial.

Só um energúmeno iria pedir a um profeta da Galileia, na época de Augusto, programas concretos de reforma agrária, projetos de participação nos lucros da empresa ou altas estratégias de tomada do poder através da organização militar das massas.

Ninguém, porém, que conheça os evangelhos pode deixar de ver o caráter violentamente utópico, negador (utopias são negações da ordem vigente: o imaginário é subversivo), prospectivo, des-regrado(r) da pregação de Jesus. Nem vamos sublinhar o teor popular de sua doutrina.

Impossível superar esta bem-aventurança:


Felizes os pobres,

porque deles é o reino.


A contradição (binária) pobre x rico, a mais elementar de todas, Jesus viu. E fulminou, brilhante:


Mais fácil

passar um camelo

pelo buraco de uma agulha

do que um rico

entrar no reino dos céus.


O profeta era radical:


Não se pode servir

a dois senhores:

a Deus e a Mammon.


Mammon, a divindade cananeia, cultuada pelos comerciantes, que propiciava bons negócios e fortuna em dinheiro.

Com Mammon, Jesus não queria parte.

Mais que populismo, esse pauperismo de Jesus parece ter raízes na tradição judaica.

Jesus apresenta traços ebionitas.

Ebio, em hebraico, é “pobre”.

Os ebion constituíram uma seita judaica, uma habhurah, anterior a Jesus, que se transformou numa das centenas de seitas judaico-cristãs que proliferaram por todo o Mediterrâneo, depois da morte do profeta.

Seu credo fundamental consistia em afirmar a santidade essencial da pobreza, da penúria de bens, da frugalidade, uma doutrina contra o ter.

O tema ebionista foi modulado muitas vezes na história do cristianismo, sempre com implicações subversivas e utópicas: Francisco de Assis, um dos seus momentos mais altos. Concílio Vaticano II. Igreja dos pobres, no Terceiro Mundo. A essencial subversividade (“negatividade”) da doutrina de Jesus revela-se, porém, na própria realidade que ele anunciava, uníssono com os profetas de Israel: o iminente advento de um Reino. O Reino de Deus.

Um momento de atenção na palavra “reino”, vocábulo político, com implicações de poder, autoridade e mando.

Jesus não inventou a expressão nem o tema. Já está lá em Abdias, o mais antigo dos profetas (século VII a.C.).

O Reino de Deus era a restauração da autonomia nacional do povo hebreu. Sobre isso, a autoridade romana não se equivocou, ao pregar o profeta na crux, exemplar suplício com que os latinos advertiam os rebeldes sobre os preços em dor da sua insurreição. Esse, o suporte material, socioeconômico-político, da pregação, por Jesus, de um (novo) Reino, um (outro) poder.

Nessa tradução/translação do material para o ideológico, Jesus forneceu um padrão utópico para todos os séculos por vir.

As duas grandes Revoluções, a Francesa e a Russa, estão carregadas de traços messiânicos de extração evangélica.

Ambas prometeram a justiça, a fraternidade, a igualdade, enfim, a per-feição, o ideograma da coisa-acabada projetada sobre o torvelinho das metamorfoses.

Natural que seja assim. Afinal, as utopias são nostálgicas, saudades de uma shangrilá/passárgada, estado de excelência que lá se quedou no passado, Idade de Ouro, comunidade de bens na horda primitiva, antes do pecado original da divisão da sociedade em classes, plenitude primitiva, paleolítica, intrauterina, antes do pesadelo chamado história.

Apokatástasis pánton, locução grega, registrada nos Atos dos Apóstolos, expressa a esperança de Jesus e da Igreja primitiva (das Igrejas). “Restauração de todas as coisas”, mas também “integral subversão de tudo”: apocatástase.

A revolução é o apocalipse, o Juízo Final de uma ordem e de uma classe social: o cristianismo primitivo cresceu à sombra da expectativa da segunda vinda, quando Jesus, vitorioso sobre a morte, voltaria, apocalipticamente, para julgar, ele que foi julgado e condenado pelas autoridades: o retorno do reprimido, a vendeta, o acerto de contas entre os miseráveis da terra e seus prósperos opressores e exploradores.

Nenhuma das religiões da terra foi construída em torno de um mito tão forte, tão fundo, tão básico.

A única exceção, quem sabe, seria o budismo.

Afinal, budismo e cristianismo têm um lugar para dialogar no tema da dor. E na nota da solidariedade. Da sim-patia, da compaixão.

Por aí, o budismo e o cristianismo, também, podem conversar, ainda, com o comunismo, cujas metas e mitos guardam tantos parentescos com as vivências mais fundamentais de um príncipe do Nepal chamado Buda e de um “rabi” hebreu, filho de um carpinteiro, chamado Jesus.

A força política da ideia de Jesus, porém, está no estabelecimento de um ultralimite.

Amar os inimigos? Vender tudo e dar aos pobres? Ser “prudente como as serpentes e simples como as pombas”?

O programa de vida proposto por Jesus é, rigorosamente, impossível. Nenhuma das Igrejas que vieram depois invocando seu nome e cultuando sua doutrina o realizou. 

Religião saída de Jesus não poderia ter produzido Cruzadas, inquisição, pogrons e as guerras de religião entre católicos e protestantes, que ensanguentaram a Europa nos séculos XVI e XVII.

O programa de Jesus era uma utopia.

Curioso que, na frondosa bibliografia sobre os socialismos utópicos, nunca apareça a doutrina de Jesus como uma das mais radicais.


LEMINSKI, Paulo. Vida: Cruz e Souza, Bashô, Jesus e Trótski – 4 biografias. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 216-221.

Feliz Natal I

[A autoria não é minha - ela vem indicada ao fim do texto.]

"Acho que, de todas as provocações que fiz a sociedade, nenhuma delas é mais grave pra mim que a que eu vou fazer agora.

Porque, com a necessidade de criar estratégias para que se dialogue politicamente com evangélicos, eu preciso voltar alguns passos atrás para explicar pra você, que não é da igreja, o que se passa dentro. Mas não tratar você como uma criança. Te dizer algumas verdades, algumas delas, que os crentes não suportariam ouvir. 

Fico entre a cruz e a espada.

Mas Jesus não é Deus.

Jesus foi "tornado" Deus no Concílio de Nicéia, no ano de 346 D.C. Ou seja, o jovem, negro, marginal, morto pelo Império, odiado pelos religiosos do seu povo, virou Deus, 400 anos depois, fruto de delírios e disputas de poder.

Jesus foi um judeu marginal. 

Morto como um marginal. Odiado e excluído do meio do seu ambiente religioso. Vou repetir: odiado, e excluído dentre os religiosos de seu tempo.

Morto como um excluído, um indigente. Um gentio. Um incircunciso, a morte dos incircuncisos. 

É importante dizer uma última vez: 

odiado e excluído pelos seus. 

Nenhum dos judeus seguidores de Jesus consideravam que ele fosse Deus. Isso não é possível, na teologia do "movimento de Jesus", original, apesar dos esforços teológicos posteriores.

Jesus não é Deus.

Mas há ainda duas outras coisas, que, como disse, são as mais graves que já escrevi, mas que você precisa saber.

Jesus não nasceu como obra e graça do Espírito Santo. 

Ele era filho de alguém. Alguém com dois braços, duas pernas, sangue nas veias, junto com Maria. 

Sabe-se lá quem foi o pai de Jesus. 

Quem sabe José acolheu Maria grávida e assumiu o filho, por pena. Uma jovem, dos seus 17 anos, largada grávida na madrugada, José, com seus 65 anos, já com outros filhos, uma família que morava junto com ele, de aproximadamente 40 pessoas num tipo de vila, ele levou Maria pra dentro da sua família.

Casou, na forma da lei. Ela, com 17, podia casar. Com 13, naquela sociedade, você já era maior de idade.

Jesus nasceu ali, nesse contexto. 

Teve 4 ou 5 irmãos, negados pela Igreja Católica, mas citados na Bíblia.

Jesus era um menino sem pai biológico, crescendo de maneira confusa, buscando a transcendência, a ludicidade, não se encaixando no que havia ali. 

Com certeza, seria fora da curva.

Com romanos pendurando corpos na entrada de cada cidade e aldeia judaica, para mostrar quem mandava ali, Jesus passou por toda a infância por corpos pendurados, e mortos, apodrecendo no sol.

Assim como crianças no morro, assim como eu, passei por corpos apodrecendo na esquina, mortos pelo BOPE.

Jesus tinha em si elementos, fios soltos o suficiente, para se tornar um hippie que pregava a ruptura com o cerimonialismo, o legalismo, o moralismo. 

Por isso foi amigo de putas.

Suas escolhas, quando adulto, foram para um outro lado.

Optou pelos marginais, mendigos, leprosos, putas, mulheres, ladrões, todos aqueles que aquela sociedade também excluía. 

Tem razão os estudiosos judeus em ferirem a imagem dele. 

Porque ele, primeiro, questionou esses judeus e seu sistema.

Era um jovem sem controle. 

Cavou a própria morte. 

Os religiosos não o queriam, o governador não o queria, e ele passou a ser visto como uma ameaça a Cesar, na medida em que começou a ser chamado de 'rei', 'rei dos judeus', dos judeus marginais, do povo, os não-eruditos.

Feiticeiro. Dizia curar pessoas. Amigo de prostitutas. Falso profeta. 

Jesus foi o responsável pela própria morte. E no fundo, sabia.

Mas os marginais continuaram com ele. E esses marginais não conseguindo voltar para o sistema, projetaram nele a experiência de liberdade.

Então vem a terceira coisa.

Jesus não ressuscitou.

Quando morto pelos policiais romanos, seus seguidores disseram 'Jesus Vive', tanto quanto nós, na Maré, dissemos 'Marielle Vive'. Mas nós sabemos que essas pessoas não vivem. Seus IDEAIS vivem. É licença poética. Nada mais.

Ocorre que Jesus pregava a transcendência, Marielle não.

Então, é natural que dele saísse uma experiência mística e dela, política.

Jesus morreu. E ficou morto. Provavelmente eram dele os restos mortais, em Talpiot, encontrados por volta do ano 2000. Yehoshua ben Yossef. Jesus, filho de José. Ao lado dos restos mortais de Yaco'ov ben Yossef, Tiago, seu irmão, líder da comunidade em Jerusalém. Lembre-se, todos os que seguiam Jesus eram exclusivamente judeus. 

As comunidades primitivas do chamado "movimento de Jesus", eram compostas por pessoas que queriam se desligar do sistema e criar uma fraternidade. Com erros e acertos. Os primeiros hippies, os primeiros comunistas. 

Deu merda. 

Porque alguns foram mortos. Outros se espalharam para África. E um deles, pra Europa.

E esse um, foi o que empoderou o Império Romano,

e deste processo, nasceu a Besta.

A Igreja Católica Apostólica Romana.

E dela, o mal do mundo.

Esse um, Paulo, seu nome original, Saul, Sholomo, foi judeu erudito, falava aramaico, latim e grego, foi aluno de Gamaliel, este, discípulo do venerável Rabbi Hillel.

Paulo inseriu os gentios nessa história. E disse que Jesus era uma esperança não apenas para os judeus, mas para todos os povos. Sim, deu merda.

A Igreja Etíope seguiu seu rumo, mais próxima da experiência original, sem oprimir ninguém. 

A Europa, porém, tornou o marginal em poderoso. E no nome dele, derramou sangue. O Império precisava de uma nova religião para oxigenar seu poder no povo. Criou a própria, juntando elementos diversos num único monstro teológico. O catolicismo.

E os protestantes até que tentaram, saindo disso mil anos depois, criando seus próprios sistemas. Mas geraram mais sangue, pois legitimaram o capitalismo, e os Estados Unidos.

E destes, saíram os evangélicos.

Um misto de milênios de idolatrias, misticismo, ódio, e desejo por poder e dinheiro. 

Qualquer teólogo sério sabe que o que estou dizendo é verdade, mas causa escândalo dentro da igreja.

Mas é.

E apenas partindo desse ponto, podemos criar condições para entender com o que estamos lidando. 

E um movimento de contra-sistema sempre existiu.

O Jesus que acredito, por exemplo, quer o fim, e a destruição da igreja. 

O Jesus que acredito quer a aniquilação dos pastores, poderes, igrejas, dogmas. É como dizer que a vontade de Deus hoje é que a igreja seja destruída.

E é nisso, inclusive, que acredito.

Para que nasça outra possibilidade, outra experiência de liberdade. Para todos. Com os marginais deste tempo. Para eles, com eles, através deles.

Deus é Um. 

Ele não veio como homem. 

No fundo, Jesus é um estado da alma, um estado POLÍTICO da alma. Onde há um marginal, ali há um Jesus. Jesus é todo aquele que está contra o sistema. Que visita o preso, que visita o doente, que alimenta o faminto, que abraça o marginal. Jesus deveria ser sinônimo de marginal. Mas ele é; esses crentes que estão neo-enfeitiçados.

E é importante escrever isso. Pra você saber com quem você está falando. Ao dizer que defendo Bíblia, ou Deus, ou as coisas que você diz sobre mim, se feche. Você não sabe metade do que eu penso, e o quanto andei, pra pisar no seu chão, e no deles. Você, nem eles, podem me aprisionar. 

O resumo das minhas utopias estão nessa pessoa, nesse Jesus, que entregou sua vida para ser morto, pendurado pelos romanos. Não em Marx. E também, não no poder religioso. Morreu a morte que ele, quando criança, viu nas entradas das cidades. 

Mas acho que, de tudo que escrevi, esse texto é o que talvez me dará mais problemas. Nem Dória, nem Maiara e Maraisa, nem quem me ameaçou de morte. Isso tudo é lixo, e tudo que falei sobre eles foi lixo. Isso aqui, é a coisa mais dura que escrevi.”


FRANÇA, Anderson. 

25/08/2020

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

No palácio da memória

Primeiramente, temos de partir do princípio de que é um palácio arruinado, suspenso fragilmente sobre um poço profundo onde rugem águas negras, turbulentas, que correm como um rio subterrâneo. 

É um palácio cheio de portas trancadas, cujas chaves eu escondi de mim mesma e esqueci onde as coloquei e não sei se quero encontrá-las ainda também. Pressinto dores excruciantes por trás dessas portas.

Percorro automaticamente seus caminhos mais familiares, em redor dos quais espalhei objetos belos, coloridos, vibrantes e alegres para me distrair do que a estrutura geral tem de lúgubre.

Pedaços se desprendem, vez ou outra, e caem no poço. Luto contra esse desprendimento (alheio a mim), e vivo na ansiedade de descer ou não às profundezas para verificar o quanto de "mim mesma" é recuperável. No geral, o desânimo me vence.

O devaneio é o modus operandi da sobrevivência. Sempre foi. Até quando?

sábado, 12 de dezembro de 2020

Ideias sobre o tempo

 Minhas paixões individualíssimas sempre foram engatilhadas pelas ideias.

Sou capaz de me apaixonar facilmente por quem me instiga a mente – eis o funcionamento do maquinário do meu coração. Simples assim.

Já levantei mil hipóteses desesperadas ao longo das minhas quase três décadas de existência. E a conclusão é tão simples quanto essa que acabo de enunciar.

Meu maior medo é o de estagnar: água parada apodrece, como um charco pantanoso (que eu conheço menos da experiência factual do que da experiência ideal).

Sei também que a vida floresce à beira d'água, como anunciam as histórias das grandes civilizações antigas. 


Sobre o tempo, o tempo é um rio que passa. E nós somos canoa em água funda: passa, a água bole um pouco, e depois, mais nada.


(Como me esquecer dele, que ativou a minha mente e instigou o meu coração para o mistério das temporalidades? Eis o efeito arrebatador de uma paixão ideal: ela jamais se perde, vira inscrição simbólica e sagrada na madeira da canoa.)

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

cárcere botânico

Pequena flor colhida numa aurora tardia 

Introjetada no meu corpo feito tatuagem

Que é pra me dar coragem quando a noite vem.

Vem a noite, insone, em que eu velo 

Por quem eu fui, sou e desejo ser.

Na costela esquerda, protegida, mora, aqui,

A minha bruta flor do querer. 

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Elogio dos contrastes

 A forma orgânica na mídia digital é tão estranha quanto a forma orgânica presa no mármore,

No que elas têm de assombroso em sua representação visual, tão detalhada, banquete para uma imaginação próspera,

E também em sua intangibilidade, o frustrado oposto exato do maravilhamento imaginário.

Pigmaleão, na mitologia grega, foi um rei da ilha de Chipre, que, segundo Ovídio, poeta romano contemporâneo de Augusto, também era escultor e se apaixonou por uma estátua que esculpira ao tentar reproduzir a mulher ideal. Ele havia decidido viver em celibato na ilha por não concordar com a atitude libertina das mulheres dali, conhecidas como cortesãs.



"Yo tengo tantos hermanos / Que no los puedo contar...

 ...En el valle en la montaña

En la pampa y en el mar

Cada cual con sus trabajos

Con sus sueños cada cual

Con la esperanza delante

Con los recuerdos detrás

Yo tengo tantos hermanos

Que no los puedo contar


Gente de mano caliente

Por eso de la amistad

Con um lloro para llorarlo

Con un rezo para rezar

Con un horizonte abierto

Que siempre esta más allá

Y esa fuerza pa buscarlo

Con tezón y voluntad

Cuando parece más cerca

Es cuando se aleja más

Yo tengo tantos hermanos

Que no los puedo contar


Y asi seguimos andando

Curtidos de soledad

Nos perdemos por el mundo

Nos volvemos a encontrar

Y asi nos reconocemos

Por el lejano mirar

Por las coplas que mordemos

Semillas de imensidad

Y así seguimos andando

Curtidos de soledad

Y en nosotros nuestros muertos

Pa que nadie quede atrás

Yo tengo tantos hermanos

Que no los puedo contar

Y una hermana muy hermosa

Que se llama libertad"



segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Sobre flechas

Começada a temporada sagitariana, a reflexão sobre o amor vem sob o símbolo da sagitta, a seta, a flecha do cupido, que inflama e envenena.

"De tanto levar

frechada do teu olhar

meu peito até

parece, sabe o quê?

Táubua de tiro ao álvaro

não tem mais onde furar."

Mas o cupido não precisa ser tão insistente assim. Basta uma flechada só pra fazer o estrago. Os tiros posteriores são só a reiteração do alvo que se deseja. 

The first shot is the decisive one.

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

How it smells and tastes

It tastes smoothly, round like some tasteful chaotic and loving hell.

Dazzles my mind and softens my heart.

Just like your surreptitious presence.




sábado, 7 de novembro de 2020

papo de passarinho

passarim, me diz,

o que é que eu faço com essa angústia que me maltrata o coração?

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

"O que é que eu vou fazer com essa tal liberdade?"

De tanto insistirem comigo que eu sou livre,

Me acostumei com a ideia da liberdade

(Se o medo de amar é o medo de ser livre,

Amar é ser livre, e a liberdade é uma das faces do Amor).

Agora é impossível que eu aceite qualquer processo que não envolva minha progressiva libertação das amarras das quais vim progressivamente tomando consciência.

Me disseram que eu sou livre, e esse presente, que é também uma sentença, já é parte irrenunciável de quem eu sou.

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

O segredo do oráculo

 Há quem veja oráculos até nas areias do deserto. Minhas leituras de Borges não foram em vão, no fim das contas - aquela miscelânea louca de símbolos em ruínas.

O oráculo é maravilhoso porque ele responde tudo e nada ao mesmo tempo. Boa parte da resposta depende da cadeia de interpretação simbólica (subjetiva, ideologicamente tendenciosa) sugerida pelo mago oracular; a outra parte vem através de atribuições arbitrárias de sentido a certos arquétipos "permanentes" da alma humana, cristalizados em certa linha discursiva ideologicamente construída: o percurso figurativo associado ao percurso temático. Essa associação é arbitrária (portanto, subjetiva e ideologicamente tendenciosa) e não deve ser lida de forma descontextualizada.

Por que o oráculo funciona? Porque ele lida, ao mesmo tempo, com muitas variáveis pseudo-homogeneizantes da alma humana. Todas elas são fissuradas pela possibilidade, pelo talvez, pela sua antítese, as quais preenchemos com os desejos mais íntimos da nossa subjetividade - na medida em que não lidamos com o ser e a alteridade ao mesmo tempo, via de regra.

Abrir o oráculo ou não é indiferente, por um lado: nada muda o curso dos acontecimentos, cada segundo engendra o próximo na angústia das nossas escolhas e não há magia externa a isso. Quando pedimos ajuda ao oráculo, pedimos a ele que nos ajude a concentrar nossa atenção sobre o jogo de forças de que somos compostos.

Esse jogo de forças é preexistente e independente do oráculo, e pode desprezar seu reducionismo discursivo e seu aspecto charlatanesco: usar do poder simbólico para transformar a angústia alheia em dinheiro não me parece algo de todo honesto. A não ser que você seja um oráculo totalmente destituído de interesses pessoais - mas se somos todos seres humanos, quem está sob total controle dos seus desejos egoístas?

Porque o oráculo honesto talvez possa ser um canal de tradução dos jogos de força que atravessam os indivíduos: se nada muda o curso dos acontecimentos, a decisão subjetiva de abrir um oráculo faz parte desse mesmo jogo de forças inevitável.

Por que a linguagem simbólica não é científica? Qual é a verdadeira relação da linguagem simbólica com a psicanálise? Porque a relação causa-efeito não é tão direta quanto se suspeita comumente ao falarmos das paixões edipianas.

O que a alma humana tem de mutável ou de constante?

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Quem não se mostra

 Não é visto

Mas também não vê


E, como Saramago já assinalou muito bem, são vários os tipos de cegueira.

Também diz o ditado que "O pior cego é aquele que não quer ver";

"Em terra de cego, quem tem olho é rei";

"Pensar é estar doente dos olhos".

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

A última década

 2010-2020, minha passagem dos 19 aos 29.


Aos 19 eu havia acabado de entrar na graduação, saído do Ensino Médio, ávida por saber cada vez mais sobre Literatura.

Hoje, às vésperas dos 29, eu estou no doutorado, ainda ávida por saber cada vez mais sobre Literatura, sabendo muito menos sobre Literatura do que eu gostaria (e que eu achei que saberia automaticamente - as doces ilusões), mas talvez agora madura o suficiente pra empreender o mais profundo da jornada.

Os últimos 10 anos foram um longo cozimento do que será, de fato, a minha vida a partir de agora. Ainda sinto o mesmo ancestral cansaço, mas agora eu tenho mais calma, apesar de o caos exterior estar se acirrando diariamente.

Mas eu estou começando a entender várias coisas. Várias, tantas, cada segundo é um despertar diferente pra tudo o que estava aqui, adormecido, em latência, na última década toda.

Que eu seja capaz de trilhar com coragem. 

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Romanticism detoxification

 Minhas reclamações solitárias datam de desde sempre.

Mas a desintoxicação do romantismo, se acirra a solidão, 

Também desvela sua parte intensamente desejada:

Aquela em que eu, descobrindo a maravilha da minha própria companhia,

Não perco meu tempo inteiro ecoando somente vozes alheias.

(ME DEIXEM EM PAZ, se vocês não querem saber o que eu tenho a dizer.)

Por que escrevo

Porque é onde minha voz encontra eco.

Eco se enamora de Narciso, mas Narciso é enamorado tão-somente de si mesmo.

Minha voz não ecoa nos meus enamoramentos

Ela ecoa em si mesma, nas palavras que eu escrevo

E que são importantes principalmente para mim mesma.

Eu sempre soube que a minha existência era de uma solidão imensa

O amor, a dor e a solidão - meus motes universais.

Mas há uma satisfação imensa nessa solidão imensa

Que é a de ter vida própria - eu e minhas palavras.

Não preciso que me escutem agora:

Vou fazer com que Narciso se escute através do meu eco.

Mas vou investigar mais sobre a esperta ninfa que enganou Hera

E, amaldiçoada, desintegrou-se em solidão

Até restarem apenas fragmentos de sua voz

(Tão poderosa que, mesmo amaldiçoada, nunca deixou de ecoar.)

terça-feira, 22 de setembro de 2020

Processo ensino-aprendizagem

 Tudo está em constante movimento.

"Nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia

Tudo passa, tudo sempre passará..."

Tentar agarrar a areia do tempo com nossas mãos humanas

É a luta mais vã,

Mais vã do que lutar com as palavras.


O Deus Pai Todo-Poderoso não nos ensina isso,

E tenta ao máximo nos dissuadir dessa ideia

Para não deceparmos seu superestimado reinado.


As pessoas que te amam

Te libertam

Ou te aprisionam?

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Cosmic love

"... And I heard your heart beating

You were in the darkness too

So I'll stay in the darkness with you..." (Florence and the machine)


Eu estive e estou no escuro junto com você

Mas vou te manter vivo dentro de mim

Por todo o tempo que me for possível. 

terça-feira, 15 de setembro de 2020

Vênus e Adônis


Mitologia grega, vol. 1 - Junito de Souza Brandão [p. 218-220]

[...]

Ares não foi, no entanto, o único amor extraconjugal de Afrodite. Sua paixão por Adônis ficou famosa. O mito, todavia, começa bem mais longe. 

Téias, rei da Síria, tinha uma filha, Mirra ou Esmirna, que, desejando competir em beleza com a deusa do amor, foi por esta terrivelmente castigada, concebendo uma paixão incestuosa pelo próprio pai. Com auxílio de sua aia, Hipólita, conseguiu enganar Téias, unindo-se com ele durante doze noites consecutivas. Na derradeira noite, o rei percebeu o engodo e perseguiu a filha com a intenção de matá-la. Mirra colocou-se sob a proteção dos deuses, que a transformaram na árvore que tem seu nome. Meses depois, a casca da "mirra" começou a inchar e no décimo mês se abriu, nascendo Adônis. Tocada pela beleza da criança, Afrodite recolheu-a e a confiou secretamente a Perséfone. Esta, encantada com o menino, negou-se a devolvê-lo à esposa de Hefesto. A luta entre as duas deusas foi arbitrada por Zeus e ficou estipulado que Adônis passaria um terço do ano com Perséfone, outro com Afrodite e os restantes quatro meses onde quisesse. Mas, na verdade, o lindíssimo filho de Mirra sempre passou oito meses do ano com a deusa do amor... Mais tarde, não se sabe bem o motivo, a colérica Ártemis lançou contra Adônis adolescente a fúria de um javali, que, no decurso de uma caçada, o matou. A pedido de Afrodite, foi o seu grande amor transformado por Zeus em anêmona, flor da primavera, e o mesmo Zeus consentiu que o belo jovem ressurgisse quatro meses por ano e vivesse ao lado de Afrodite. Efetivamente, passados os quatro meses primaveris, a flor anêmona fenece e morre. O mito, evidentemente, prende-se aos ritos simbólicos da vegetação, como demonstra a luta pela criança entre Afrodite (a "vida" da planta) e Perséfone ("a morte" da mesma nas entranhas da terra), bem como o sentido ritual dos Jardins de Adônis, de que se falará mais abaixo. Há uma variante do mito que faz de Adônis filho não de Téias, mas do rei de Chipre, o qual era de origem fenícia, Cíniras, casado com Cencréia. Esta ofendera gravemente Afrodite, dizendo que sua filha Mirra era mais bela que a deusa, que despertou na rival uma paixão violenta pelo pai. Apavorada com o caráter incestuoso de sua paixão, Mirra quis enforcar-se, mas a aia Hipólita interveio e facilitou a satisfação do amor criminoso. Consumado o incesto, a filha e amante de Cíniras refugiou-se na floresta, mas Afrodite, compadecida com o sofrimento da jovem princesa, metamorfoseou-a na árvore da mirra. Foi o próprio rei quem abriu a casca da árvore para de lá retirar o filho e neto ou, segundo outros, teria sido um javali que, com seus dentes poderosos, despedaçara a mirra, para fazer nascer a criança. Nesta variante há duas causas para a morte do lindíssimo Adônis: ou a cólera do deus Ares, enciumado com a predileção de Afrodite pelo jovem oriental ou a vingança de Apolo contra a deusa, que lhe teria cegado o filho Erimanto, por tê-la visto nua, enquanto se banhava. 

De qualquer forma, a morte de Adônis, deus oriental da vegetação, do ciclo da semente, que morre e ressuscita, daí sua katábasis [descida ao mundo inferior] para junto de Perséfone e a consequente anábasis [movimento de saída do mundo dos mortos] em busca de Afrodite, era solenemente comemorada no Ocidente e no Oriente. Na Grécia da época helenística deitava-se Adônis morto num leito de prata, coberto de púrpura. As oferendas sagradas eram frutas, rosas, anêmonas, perfumes e folhagens, apresentados em cestas de prata. Gritavam, soluçavam e descabelavam-se as mulheres. No dia seguinte, atiravam-no ao mar com todas as oferendas. Ecoavam, dessa feita, cantos alegres, uma vez que Adônis, com as chuvas da próxima estação, deveria ressuscitar. 

O mitologema da morte prematura de Adônis, quer se deva a Ártemis, Apolo ou Ares, está sempre ligado ao nascimento e à cor de determinadas flores. A anêmona prende-se, como se viu, à metamorfose do deus naquela flor; a rosa, de início branca, tornou-se vermelha, porque Afrodite, no afã de salvar o amante das presas do javali, pisou num espinho e seu sangue deu à rosa um novo colorido. O poeta grego da época alexandrina, Bíon (fins do século IV a.C.), relata que de cada gota de sangue de Adônis nascia uma anêmona, de cada lágrima de Afrodite, uma rosa.

Pois bem, foi exatamente para perpetuar a memória de seu grande amor oriental, que Afrodite instituiu na Síria uma festa fúnebre, que as mulheres celebravam anualmente, na entrada da primavera. Para simbolizar "o tão pouco" que viveu Adônis, plantavam-se mudas de roseiras em vasos e caixotes e regavam-nas com água morna, para que crescessem mais depressa. Tal artifício fazia que as roseiras rapidamente se desenvolvessem e dessem flores, as quais, no entanto, rapidamente feneciam. Eram os célebres Jardins de Adônis, cuja desventura era solenemente celebrada com grandes procissões e lamentações rituais pelas mulheres da Síria. Muitos séculos depois, Ricardo Reis, o gigantesco Fernando Pessoa, perseguido pela brevidade da vida e pela lembrança do puluis et umbra sumus (somos pó e sombra) de Horácio, recordou os Jardins de Adônis:

As rosas amo dos jardins de Adônis, 

Essas volucres amo, Lídia, rosas, 

Que em o dia em que nascem, 

Em esse dia morrem. 

A luz para elas é eterna, porque 

Nascem nascido já o sol, e acabam 

Antes que Apolo deixe 

O seu curso visível. 

Assim façamos nossa vida um dia, 

Inscientes, Lídia, voluntariamente 

Que há noite antes e após 

O pouco que duramos.

[PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1977, p. 239]




domingo, 23 de agosto de 2020

Os ciclos intermináveis

Quando é que vai cessar 

Quando é que eu vou ter pelo menos uma trégua 

Ínfima que seja 

Dessa dor infinita que me devasta e exaure todos os dias?

("Cárcere infinito – porque és infinito não se pode fugir de ti!")


Quem vai sair do lado de lá de tanto sofrimento?

Valerá a pena ter o que eu terei do lado de lá desse açoitar interminável da vida?


EXISTE LADO DE LÁ DO SOFRER??

quinta-feira, 16 de julho de 2020

Preciso de novas cores!



De como eu adquiri novas cores e mantive velhos hábitos - ou, também, retratos da ação do tempo.


sábado, 11 de julho de 2020

Always on the verge

The inner labyrinth goes round and round, now and then
Sempre à beira de despencar no abismo do desconhecido
A vertigem constante do ser ou não ser
Elevada aos mesmos exponenciais índices
Com que a peste se espalha pelo corpo coletivo da humanidade

E eu correndo o risco de não descobrir,
Enfim, o que raios eu quero fazer do que foi feito de mim.

(Cada ser tornado em não ser
Fere de morte o meu sincero coração.)

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Plantas medicinais

Na primeira vez que escrevi sobre você, me suspeitava apaixonada
Hoje, na segunda vez que escrevo sobre você, sei que te amo
Um amor estranho e nativo, como esses que a gente não percebe que surgiu
Mas que, quando olhei ao redor, estava aqui:
Singelo e natural como uma flor do campo
Com sua candura e inocência
(Camomila e macela, essas flores que trazem guarida pra alma)
Reminiscências solares,
Olhos claros e limpos que me olham cheios de compreensão

Quando eu te leio meus olhos ávidos e trágicos encontram feridas ao que o meu amor tem possessivo, ciumento e enlouquecido
(O exato oposto da sua singeleza aluada)
(Porque eu sou essa estrela escura e triste)
Depois de as suas palavras fazerem um nó na minha garganta
E a sua ausência abrir buracos no meu coração frio
E a saudade de você ser brevemente preenchida pelo papel linho 180g/m²
E as memórias, as memórias...

Me emociona me saber tocada pelas suas mãos, as mãos que produziram: 
suas palavras, o corpo das palavras e os delicados detalhes circunstanciais
Me fere me lembrar tocada pelas suas mãos macias
E sabê-las indefinidamente distantes
Quase/talvez indefinidamente perdidas
Pela divisão de rumos e águas
Em que o meu curso não mais encontra o seu

I miss you
I miss you
I miss you
.
.
.

quarta-feira, 24 de junho de 2020

A denúncia dos ultrajes

Não desejo continuar guardando tudo aquilo que me foi dito e feito, permanecer confrontando e remoendo os ultrajes tão-somente comigo mesma nas minhas noites insones.
STOP SHAMING ME.
E quando eu iniciar as denúncias, réu após réu, vou galgar os degraus da minha tão desejada paz interior.
À custa de alguma guerra, essa que eu sempre evitei, e que tem se tornado cada vez mais urgente e inadiável.
AOS RESPONSÁVEIS, AS RESPONSABILIDADES! 

terça-feira, 23 de junho de 2020

Sonhos

Na noite passada, pela primeira vez, sonhei com o claustro pandêmico.
Nos sonhos anteriores, acordei atarantada com a livre mobilidade experimentada pelos espaços do sonho, confundidos com o real. No processo de despertar, a confusão pela transgressão não intencional.
Mas ontem estive no alto de um prédio em uma capital distante, observando a vida dos vizinhos também enclausurados.
O desejo de olhar o mundo do alto, o desejo de ver pessoas e suas experiências factuais, não apenas imaginadas pela minha mente exaurida, aprisionada entre as paredes brancas e frias do apartamento.
(Ou reportadas pelas performances digitais, diante das quais tenho sentido um cansaço imenso, imensurável, com simultânea e sofrível dependência por me ver sem opções e com dificuldades de amplificar o claustro recolhendo-me só à minha própria mente.)
Quantos traumas podem se somar a um testemunho da existência?
Se me fosse dado saber, talvez eu já tivesse enlouquecido de antemão.
Terei que enlouquecer um dia por vez, feliz ou infelizmente,
Até que eu desista de viver essa sucessão de tragédias,
Ou que a vida se me afigure menos trágica do que ela tem se mostrado até então.
(As esperanças são exíguas, contudo – ainda que não totalmente inexistentes, admito.)

segunda-feira, 22 de junho de 2020

A vida assombrada por demônios

As vozes internas são muitas, múltiplas, inúmeras, infinitas
Se sobrepõem, se atravessam, ecoam umas nas outras, moto contínuo do inferno psíquico
O que dessas vozes é:
Intuição?
Instinto?
Emoções?
Sentimentos?
A minha ancestralidade falando através de mim?
(Não sei, nunca soube discernir, e em tempos como esses os ruídos internos atingem níveis enlouquecedores)
A vida psíquica é um andar descalço em cima do fio de aguda navalha
Os pés, constantemente lacerados, sem que sejam necessários passos incautos ou bruscos
Cada movimento abre um novo talho sangrento por onde jorra o quente sangue do trauma de existir
Enquanto os demônios berram dentro dos meus ouvidos
Esmigalhando meu coração entre seus dedos impiedosos
E o que me resta é um trapo, farrapo do que um dia eu acreditei que poderia ser eu inscrita numa existência sem dor.

sábado, 6 de junho de 2020

[bell hooks] Ensinando a transgredir

Capítulo 3: Abraçar a mudança - O ensino num mundo multicultural

p. 63: "O multiculturalismo obriga os educadores a reconhecer as estreitas fronteiras que moldaram o modo como o conhecimento é partilhado na sala de aula. Obriga todos nós a reconhecer nossa cumplicidade na aceitação e perpetuação de todos os tipos de parcialidade e preconceito. Os alunos estão ansiosos para derrubar os obstáculos ao saber. Estão dispostos a se render ao maravilhamento de aprender e reaprender novas maneiras de conhecer que vão contra a corrente. Quando nós, como educadores, deixamos que nossa pedagogia seja radicalmente transformada pelo reconhecimento da multiculturalidade do mundo, podemos dar aos alunos a educação que eles desejam e merecem. Podemos ensinar de um jeito que transforma a consciência, criando um clima de livre expressão que é a essência de uma educação em artes liberais verdadeiramente libertadora."

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Antes dessa citação, há uma parte do mesmo capítulo em que se discute a necessidade de se ter compaixão pelos alunos, uma vez que ensinar o pensamento crítico pode trazer dores quando reconhecemos traços retrógrados em pessoas que fazem parte do nosso circuito de afetos. Me lembrou de uma aluna que tive, nos idos de 2017. Aos 17, segundo ano do Ensino Médio, ela estava casada com um professor da escola. A partir de certo momento, ela se tornou hostil em relação a mim, e deixou de frequentar as minhas aulas. Eu não entendi, naquele momento, o porquê da hostilidade e do afastamento. Nesse mesmo ano eu pedi, para os trabalhos de redação, que os alunos produzissem diários para que eu pudesse conhecê-los melhor. Naquela época eu também não estava preparada para lecionar da forma como eu intuitivamente lecionava. Eu fui uma dessas alunas dispostas a se renderem ao "maravilhamento de aprender e reaprender novas maneiras de conhecer que vão contra a corrente". Tive bons professores que, dentro das suas limitações e a despeito delas, me ensinaram a ter uma postura crítica diante da vida e do conhecimento. Quando eu mesma me tornei professora (aos 18, talvez jovem demais pra responsabilidade que a função demanda), nunca pude conceber que minha prática de ensino não fosse plural e crítica. Mas abraçar a mudança é um processo extremamente doloroso, eu sei, e nem todos estão preparados para isso. Temos que apostar no desejo de mudança, contudo. É lá que as nossas esperanças moram. É necessário ter muita, muita coragem para botar a mão na massa e fazer se concretizar o mundo em que acreditamos e que ardentemente desejamos.

A citação transcrita me lembrou de uma conversa que tive há alguns dias com um muito querido ex-aluno, em que ele me agradecia pelas discussões que tivemos em sala na mesma época do meu relato anterior, ainda que ele não soubesse valorizá-las no momento em que elas estavam acontecendo. É porque, no momento de tirar o véu, a percepção ampliada fere a estreiteza do nosso pensamento. Quando amadurecemos é que percebemos a importância de cruzar as fronteiras das nossas "ideias e hábitos de ser" (p. 61) para uma educação transgressora e libertadora. Até que esse amadurecimento chegue, qualquer que seja a experiência que o desencadeie, reagiremos com o instinto de preservação próprio daqueles que temem o desconhecido.

Talvez por isso que o "voto de confiança", em inglês, é o "leap of faith", o salto de fé. Mergulhar no desconhecido é um salto no escuro totalmente motivado pela esperança de que a vida pode e deve ser diferente daquelas estruturas que nos moldaram e aprisionaram até então.

É importante que o pedagogo deixe sempre muito claro, contudo, que o aluno não está sozinho nessa. Ele não precisa arcar sozinho com as consequências de deixar que as velhas estruturas desmoronem em suas vidas. Tendo essa percepção empática em vista, devemos nos organizar em comunidades em que todas as vozes sejam ouvidas. Mitigar a solidão da experiência humana, partilhar dores e perdas, fortalecer os afetos para que a mudança não seja paralisada pelo medo de que ela aconteça: "abraçar a mudança" de forma solidária e coletiva.

A todos os meus ex-alunos, alunos, conhecidos, amigos: saibam que eu estou aqui com vocês, por vocês. Não vamos esmorecer. Paradoxalmente, me parece que estamos melhores do que nunca, porque hoje posso perceber que, diante da necessidade, somos muitos os que clamam pela liberdade. Vamos construí-la juntos.

I'm a soothing star

Let Love find us,
But be open for it when it is time.

Que o Amor nos abençoe a todos nós
Nos envolva em sua luz criadora
Princípio de vida, equilíbrio do caos
Dinâmica da sinfonia das esferas

Que o Amor nos oriente,
Ocidente, acidente,
Acidifique, dissolva, solucione
Reestabeleça a beleza
De ser o que se é

Que o Amor brote de nós
Como semente ancestral
Plantada por aqueles que tinham
Mais esperanças do que as que temos hoje

Let Love be found
In the innermost of our core
May it rise and shine
Out of this deep, silent darkness of fear.

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Do dia 28 de maio mesmo

Quem dos meus amantes efetivamente me amou?
E quando foi que eu efetivamente amei
E não somente quis ser amada?
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[19 de abril]

Arte de amar

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus - ou fora do mundo.

As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

[Manuel Bandeira - encontrado nas anotações de 19 de abril, mas Gilvan já plantou esse poema na minha mente desde bem antes.]

[13 de abril]

Cada pessoa me faz enxergar um lado de mim
Mas qual lado de mim eu vejo com os meus próprios olhos?
Quando eu olho pra dentro, sem tentar materializar ecos de outras pessoas a partir das fantásticas imagens das minhas fantasias
O que é isso que eu vejo? Que está preenchida
De vazio
Escuro
e frio?

{Existe alguma possibilidade de que eu não saia destruída do encontro com o Outro?}

[15 de março]

Every boyfriend is the one
Until otherwise proven
The good are never easy, the easy never good
And love, it never happens like you think it really should
Deception and perfection are wonderful traits
One will breed love, the other, hate
You'll find me in the lonely hearts
Under "I'm after a brand new start"

(Homewrecker, by Marina and the Diamonds)

[26 de janeiro]

"[...]
O mundo! O que é o mundo, ó meu amor?!
O jardim dos meus versos todo em flor,
A seara dos teus beijos, pão bendito,

Meus êxtases, meus sonhos, meus cansaços...
São os teus braços dentro dos meus braços,
Via Láctea fechando o Infinito..."

("Versos de orgulho", Florbela Espanca)

_______________________


Ø  “Se a relação sexual se mostra como uma relação social de dominação, é porque ela está construída através do princípio de divisão fundamental entre o masculino, ativo, e o feminino, passivo, e porque este princípio cria, organiza, expressa e dirige o desejo – o desejo masculino como desejo de posse, como dominação erotizada, e o desejo feminino como desejo da dominação masculina, como subordinação erotizada, ou mesmo, em última instância, como reconhecimento erotizado da dominação.” (BOURDIEU, 2014, p. 30)

sábado, 18 de abril de 2020

Do dia 14 de janeiro de 2020

O ser humano cindido ao meio

A divisão por dois é só o início de um desmoronamento que passa, ainda, pela fragmentação e pela pulverização. Em cada metade, parte, partícula ou átomo, o preço que constantemente se paga por constantemente ser necessário escolher um caminho por vez. Não sendo possível - aliás, sendo cada vez mais impossível - fazer com que cada microdecisão crie uma unidade coerente de discursos e ações, a sensação de fluxo equilibrado na passagem dos segundos fica cada vez mais distante. A angústia cresce pelo medo constante de o tempo passar e permanecermos escolhendo as opções que nos desagregam, em vez de manter em mente aquilo que nos pode trazer INTEGRIDADE.
Nos falta clareza. E ainda não sei como ser enfática o suficiente no sublinhar da necessidade de adquiri-la.
______

Da Sociedade do cansaço, de Byung-Chul Han (2017):
O medo está para a angústia
Como a irritação está para a ira

Do dia 1° de janeiro de 2020

Passam os anos e há coisas que mudam, outras não. Olhar para trás transforma-se em um exercício cada vez mais doloroso, porque cada dia vivido cria uma nova memória - e em cada memória, uma potência de trauma da/pela perda.
O medo de viver deixa os dias mais seguros e mais cinzentos. Ensimesmar-se é confortável, a despeito da solidão; lançar-se ao mundo é arriscar criar laços que podem ou não se desmanchar.
Mas nós queremos criar laços novos, quando os antigos já representam angústias e dores suficientes?
Qual é o bright side de estar com o outro?

***

Ensimesmar-se é necessariamente olhar para trás, então há o prazer do conforto misturado à dor da solidão.
Eu tenho medo de ver como o tempo passa. Mas recusar-me a ver e assumir o aspecto mais cru da realidade - essa é a trava que vai me impedir de encontrar sossego.

quarta-feira, 1 de abril de 2020

SOBRE AS MARCAS DA NEUTRALIZAÇÃO LINGUÍSTICA DE GÊNERO

Um interlocutor do meu cotidiano atual me solicitou uma reflexão sobre esse fenômeno que consideramos, consensualmente, uma "idiotice": todes, todxs, tod@s, esses tipos de tentativa de neutralização das marcas de gênero em certos aspectos da nossa língua brasilis.

Daí eu fui conversar com duas pessoas que poderiam me oferecer bons argumentos a esse respeito, uma vez que eu nunca havia realmente parado pra pensar sobre essa questão. A Sammy, minha amiga querida, minha roommate, que se declara muito corajosamente "feminista radical" nas redes sociais, de que ela participa ativamente (@assombrasammy o Instagram); e meu querido pai, Antonio Peixoto, que também participa ativamente das redes sociais (@antoniohmpeixoto o Instagram) e é professor de língua portuguesa há um bocado de décadas.

Isso é o que eles me disseram, em linhas gerais, e eu quero deixar registrado pra quem também tiver interesse no tema e quiser prosseguir com a discussão.

SAMMY:

Pessoas disléxicas não conseguem entender o que você quer dizer com a substituição das vogais - fato concreto sobre a dificultação linguística pra quem já apresenta questões com a modalidade escrita (o léxico);
Usar os gêneros majoritariamente no feminino para marcar a resistência - porque o feminino é a oposição à regra da generalização masculina e do feminino como segundo sexo;
É uma idiotice porque se pretende a neutralização de algo que não é objetivamente neutro.

PAPI:

- Argumentos linguísticos básicos:

Não há respaldo para essas alterações nem na gramática, nem na linguística, nem na sociolinguística (a linguística chegou ao Brasil nos anos 80; a sociolinguística, pouco depois - e essas discussões sobre identidade de gênero são muitíssimo recentes - datam, talvez, da teoria Queer da Judith Butler);

A gramática normativa é machista: exemplo das regras de concordância nominal:
"1. Revista e jornal VELHOS ou VELHO ( referência a " jornal " , apenas ) ;
2. Jornal e revista VELHOS ou VELHA ( alusão a " revista " , apenas ) ;
3. Homens , mulheres , meninas e crianças EDUCADOS ou , concordando com o substantivo mais próximo , EDUCADAS . Há outras regras interessantes , mas acredito serem essas suficientes para a discussão em tela !" (PEIXOTO, Antonio, 2020)
Exemplos dos vocativos usados por líderes políticos ("Trabalhadores do Brasil" - Getúlio Vargas; "Brasileiras e brasileiros" - Sarney; "Minha gente" - Fernando Collor);

Alteração na modalidade escrita que não é praticável na modalidade oral é um contrassenso, porque o mais real da linguagem, que é a oralidade, não comporta esse tipo de alteração (o que queremos dizer com "neutralização de algo que não é objetivamente [historicamente, socialmente, politicamente] neutro").

-- A modalidade escrita é uma fixação artificial em normas do fenômeno linguístico, que é sócio-historicamente inscrito.

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Pode ser que essas ideias ainda se desdobrem em outras; é nesse pé que a pesquisa anda. Dúvidas, sugestões, pitacos e etc são bem-vindos.


Beijos.

sexta-feira, 27 de março de 2020

Se a análise é o oposto da síntese

Em alguns pares de palavras eu sintetizo as minhas análises:

O que já foi jamais será de novo.
E se isso é uma sentença, é também uma esperança.
Se o que já foi está no passado,
A partir da memória, escreve-se o futuro desejado.
Se nada foi como desejaríamos,
Na negação mora a potência do criar:
O que desejamos, o contrário do que já foi.
Aceito a sombra, por desejar a luz
Aceito a solidão, por desejar o estarmos juntos
Aceito os desencontros
Pois eles jogam, bem no meio da nossa cara,
Todos os encontros que realmente desejamos.
Não tendo acesso ao meu desejo
Mergulho fundo no que almejo
Com a certeza de que, o que quer que seja,
Poderá ser construído
Tão-somente pelo meu querer.

domingo, 22 de março de 2020

Enfim, parece mesmo que a revolução será dos afetos.

Não havendo solidariedade, empatia, pensamento sobre o coletivo, ocupação emocional com o planeta Terra como um todo, não haverá jeito: não sobreviveremos.

Nos assusta a forma como o mundo virou de cabeça pra baixo, de dentro pra fora, todas as inversões possíveis: e como isso significa que, para sobrevivermos, devemos nos importar e, curiosamente, ficarmos DISTANTES uns dos outros, em termos físicos.

Em termos psíquicos, só sobreviveremos se pudermos contar com a presença afetiva, mas ausente dos corpos.

Viver como se fôssemos morrer – a ameaça só é mais real agora. Mas não é como se não pudéssemos morrer a qualquer momento, sempre, mesmo.

O que está mudando pra você?

domingo, 8 de março de 2020

Tenham CORAGEM!

Hoje, dia 08 de março, é definitivamente um dia como outro qualquer.
Ele não tem nenhuma conotação mística, nem é dia de fingir que as mulheres não são achincalhadas pelo nosso tempo histórico e dizer a elas o quanto elas são fortes e especiais.

Nós não somos fortes.
Nós não somos especiais.

Nós somos tão somente seres humanos

Que, devido a uma série de fatores históricos, somos achincalhadas TODOS OS DIAS, das formas mais diretas às mais sutis, todas elas de uma perversidade imensa.

Mas hoje é um dia que, midiaticamente, ganhou essa conotação política/de celebração, dependendo da consciência de quem faz uso dessa inscrição social.

Aí me bateu aqui na minha sensibilidade a vontade de desnudar mais um pouco o meu coração, versando sobre um tema que me dói e comove de formas que eu jamais serei capaz de colocar totalmente em palavras.

Primeiro, quero resgatar uma postagem anterior:

~~

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Plato revisited

Conta o mito da caverna de Platão que o sujeito que sai da caverna e denuncia a falsidade das sombras enquanto realidade absoluta - ele, esse sujeito, escolhe voltar. Em vez de desfrutar das delícias de viver em liberdade, ele escolhe voltar para libertar seus pares. E como é recebido em seu regresso?
Existem os que topam o desafio de quebrar suas próprias correntes em busca da liberdade - mas esses são a minoria. A maioria o acusa de TUDO: charlatão, místico, imaturo, irresponsável, feminista, comunista... mas, principalmente: louco, lunático, insano.
Quanto tempo esse sujeito vai dedicar à conquista daqueles que condenam o motor mesmo de sua possibilidade de ver além: a loucura?
Haverá tempo para desfrutar da dolorosa delícia de viver a partir de meios próprios - ou seja, a liberdade?
A grande chave da questão: depois de ver o mundo fora da caverna, não há mais como acreditar que as sombras são o real.

~~

Se vocês quiserem buscar o texto platônico, é só ir no livro VII d'A República. Lá vocês encontram o Sócrates contando a respeito da alegoria da caverna.

Essa historieta exemplar é um bocado interessante, mas não deve ser aplicada sem uma apropriada reflexão sobre sua inserção histórica.

O caso é que o "ver além" representa um conflito imenso para quem se coloca à disposição de praticá-lo. Nesse "dia internacional das mulheres", eu desejo que possamos ver além, mesmo sabendo que isso não é tão doce quanto as rosas e os chocolates que no dia de hoje nos são oferecidos. Eu desejo que o conhecimento não seja usado por ninguém, incluindo nós mesmas, como forma de violentar e manipular o outro. Já utilizaram o mito da caverna para me domesticar, para me apontar uma saída falsa, uma ruptura "menos dolorosa" dessas correntes que nos aprisionam.

LIBERTAR-SE DA ESCRAVIDÃO MENTAL NÃO É UM PROCESSO INDOLOR.

Mas eu estarei aqui, com o meu coração e os meus braços abertos, para acolher todos aqueles que escolherem se libertar - porque me acolheram, e eu sei como que isso é o que faz toda a diferença. A revolução será dos afetos, ou não será, volto a dizer.

Tenham coragem. Eu estou aqui.

quinta-feira, 5 de março de 2020

CUIDADO!

A pessoa que te dissuade de se formar intelectualmente tem inveja de você e/ou não quer o seu bem.

(Veja bem, eu já perdi amizades por causa disso. É algo realmente importante para a minha existência individual.)

Nós sabemos o quanto o processo de estudar é penoso. Amar o conhecimento exige dedicação o suficiente para que você abra mão de um prazer simples para expandir a sensibilidade para prazeres mais complexos. Exige paciência, concentração - vários atributos que o nosso estilo de vida capitalista contemporâneo vêm atrofiando cada vez mais com suas seduções anestesiantes.

Quem escolhe, de forma mais ou menos consciente, não se contentar em apenas receber o que é dito pelo senso comum como verdade posta e imutável, necessariamente vai precisar fazer um ESFORÇO pra isso. De fato, é muito mais cômodo repetir ad infinitum as imensas bobagens que a gente escuta por aí - é ATERRORIZANTE encarar a realidade em toda a sua angústia e contradição. Eu sei disso.

Daí o sujeito vira e diz que "um diploma não é tão importante assim".

É sério?

Em um país como o Brasil, com a nossa tenebrosa tradição colonial, com todo o projeto político de emburrecimento das massas promovido pelos diversos canais de comunicação aí postos (a Rede Globo como o exemplo mais óbvio, mas dá pra ser mais específico e ir achando níveis cada vez mais cruéis dos sistemas de dominação e violência simbólicas) e pelas políticas públicas (de governos que tendem cada vez mais a um autoritarismo fascista aniquilador das diferenças e, em última instância, da Natureza e do próprio ser humano), que vêm desmontando a educação (no sentido de FORMAÇÃO DO SER HUMANO PARA A AUTONOMIA DO PENSAMENTO) desde a base até o topo das nossas já frágeis estruturas

É SÉRIO que a pessoa tem a pachorra de dizer, em outras palavras,

"ei, você aí, que está cansado de ser explorado pelo seu patrão, você só precisa aprender a se comunicar melhor que a sua vida vai melhorar, você não precisa de um diploma"

Essa pessoa não foi encarar a realidade HUMANA do mercado de trabalho brasileiro.

Pode ter conversado com muitas pessoas, viu muitos casos individuais, ouviu muitas histórias, mas, com o seu diploma confortavelmente guardado debaixo do braço, tem a pachorra de dizer para o outro para não investir em algo que é muito mais importante do que um pretenso "sucesso financeiro".

Primeiramente, porque nós estamos presenciando a precarização de TODOS os postos de trabalho (todas as formas humanas, relativas aos "não-dententores dos meios de produção", de ganhar o pão nosso de cada dia, que Deus definitivamente não dá de graça), aprofundando radicalmente os nossos abismos sociais, e a desinformação que representa você dizer ao outro para não investir em si mesmo intelectualmente tem um cheiro quase fascista. Você quer seduzir o outro, dissuadindo-o de PENSAR porque o "sucesso financeiro" é mais importante?

(Isso porque eu ainda não falei das pessoas que ganham dinheiro com esse tipo sórdido de sedução, fica pra outra hora.)

Segundamente, convenhamos, o que é "sucesso financeiro" na fila das necessidades humanas? O que significa ser bem sucedido como ser humano?

Todos precisamos pagar as contas, isso é a grande verdade. Dentro do capitalismo, se você não faz parte do 1% que concentra a renda produzida pelo sangue, suor e lágrimas dos outros 99%, você está fodido pro resto da sua vida nesse sentido. Bem-vindo ao mundo como ele é.

Deixe-se seduzir pelas quinquilharias brilhantes da "burguesia" colonial (colares e espelhinhos, o que os portugueses ofereceram pros povos nativos brasileiros antes de LITERALMENTE estuprá-los), que compactua com a opressão promovida por aqueles que realmente têm "sucesso financeiro". Você realmente não precisa de um diploma, você precisa pagar 300 reais em uma garrafa de vinho e achar que isso é ter "sucesso".

Pra mim, sucesso é ter empatia com TODA a humanidade, não podendo admitir que existam famílias vivendo com o que você gasta mensalmente construindo seus pequenos castelos de segurança pequeno-burguesa hipócrita.

Beijos de luz, ou não.


sábado, 29 de fevereiro de 2020

Anotações

Sobre os episódios #183 e #184 do podcast Naruhodo, a respeito da integração das três áreas do conhecimento (humanas, exatas e biológicas)

#183

- A educação tal como a conhecemos hoje, aberta ao público amplo, deriva da organização social tal como foi necessária para que a Revolução Industrial acontecesse. Antes, a formação era restrita a uma elite: agora, todo mundo precisava de um mínimo de conhecimento técnico para se integrar a algum ofício e manter a máquina social funcionando. Nenhum desses dois modelos escolares se dedicou, no entanto, a fazer com que todos os seres humanos pudessem desenvolver suas faculdades intelectuais e emocionais sem que esse processo implicasse na manutenção das disparidades sociais.

- A distinção entre as três referidas áreas do conhecimento (humanas, exatas e biológicas) responde à mesma origem da educação para suprir a demanda humana das profissões nascidas devido à organização social em CIDADES. Essa especialização foi se acentuando cada vez mais.

- Asimov (Fundação) + Nietzsche (Assim falou Zaratustra)

- Inteligência artificial não é um nome apropriado, porque não há inteligência outra que não seja a humana: o que existe é a "aprendizagem de máquina".

- Para uma educação integrada, deveríamos ser capazes de resolver uma integral com a mesma qualidade com que lemos um texto do Adorno (EXCELENTE EXEMPLIFICAÇÃO amei)

#184

- O método científico é capaz de detectar alguns aspectos da realidade, mas não as suas regras gerais.
- O objetivo da psicanálise é compreender o sujeito da experiência, individual.
- Há uma crise no mundo do trabalho porque a ideia das "profissões" está passando por uma reformulação.
- Aparentemente precisamos pensar um novo modelo de educação que dê conta dessa mudança no mundo do trabalho e, de acordo com o autor do podcast, a formação para o pensamento científico é a grande pedagogia da vez.
- Os professores JÁ SÃO mediadores do conhecimento, não transmissores verticais.
- A autonomia dos indivíduos está ganhando projeção devido ao advento da internet e suas múltiplas possibilidades de expressar o individual. A nova pedagogia também precisa fornecer ao indivíduo a habilidade descritiva: principalmente, a de descrever a si mesmo com qualidade.
- "As ciências humanas não são necessárias em uma sociedade mediada unicamente pelo trabalho enquanto técnica."
- A divisão entre as áreas do conhecimento é própria de um estado absolutista que garanta a separação das classes sociais. Para um estado democrático, é necessária a diluição dessas três áreas em uma FORMAÇÃO PARA A PRÁTICA DA AUTONOMIA.
- "A violência é o último refúgio do incompetente". (ASIMOV) Quando você não consegue argumentar, fica claro que você está defendendo uma estrutura de poder, em vez de realmente estar buscando compreender a realidade objetiva das coisas.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Pra começar uma conversa

Foi meu pai quem me disse que o conhecimento seria o meu melhor investimento.
Não com esses termos, mas a ideia era essa. Conhecimento, informação, formação, "cultura".
(Quanto à ideia de "investimento", ó deus, eu me recuso a compactuar com ela. Eu me recuso.)
Foi nas lombadas coloridas, distribuídas pelas estantes da casa onde eu cresci, que eu plantei o meu maior desejo: o de superar as barreiras que existiam entre mim e o tesouro encerrado dentro daqueles livros.
(As barreiras ainda existem, a despeito do esforço - e do martírio - diário de ABRIR o livro e me deixar levar pelas correntes de palavras)
Eis uma herança maldita. Mas, de fato,
Será que eu desejaria efetivamente uma vida em que eu fosse pra sempre pensada, em vez de pensar?
Já andei uma boa quantidade de passos em direção à tão desejada "liberdade da escravidão mental";
Todos os dias,
Todos os dias são dias de romper fronteiras e ir além do que o mundo nos coloca como "natural".
(Há dias, contudo, em que a exaustão do esforço me põe no pior dos ânimos
Que é a DÚVIDA quanto à legitimidade de todo esse empreendimento).
Se um dia eu sumir, vocês vão me encontrar no alto da montanha, tentando fugir da ambiguidade da existência, mas sem sucesso.
(Mas se forem me procurar, só me procurem pra me trazer conforto, por favor.)