domingo, 29 de março de 2009

Manhãs de domingo;


As manhãs de domingo têm uma estranheza mágica. Caminhei meio inconsciente do que havia ao meu redor, ignorando inclusive os perigos que me poderiam estar circundando. Mas acho que manhãs de domingo são, de certa forma, imaculadas, isentas de maldade. Elas têm, de fato, uma estranheza mágica.
Tanto assim são que me trouxeram uma lembrança deveras remota, de uma fragilidade mística que só as manhãs de domingo têm.
Olhando as pedras soltas na calçada, lembrei-me de um costume tão antigo...
Quando eu era bem, bem pequena, gostava de catar pedrinhas no parquinho da escola. Não sei bem o porquê; mexendo na areia, de repente eu encontrava umas pedrinhas claras, redondas, lisas... gostava de lavá-las no sabonete branco manchado de guache que tinha na pia da sala de aula. Minhas mãos sujas de areia, juntamente com as pedrinhas, produziam uma espuma marrom, com alguns filetes de cor, que dançava na pia branca, rodopiando com a água até encontrar o fundo escuro do ralo. Eu gostava de ver isso. Era tudo simples, fácil, de uma magia inata; não facilmente perceptível, mas inegável.
Enfiava as pedrinhas nos bolsos e, dependendo da minha sorte, às vezes eles ficavam pesados, de tantas que eu encontrava. Chegava em casa inconsciente do peso extra que havia em mim; depois eu olhava, e via aquelas bolinhas nos meus bolsos. Abria-os, admirava-as uma vez mais e, sem maiores cerimônias ou palavras, entregava as mais bonitas à minha mãe. Ela me olhava com uma expressão indefinível, agradecia com um lindo sorriso maternal e as guardava na carteira. Sei que de tempos em tempos ela deveria jogá-las fora, porque não haveria suficiente espaço para todas elas. Mas há pouco tempo eu encontrei uma remanescente, e isso me encheu de nostálgica vida.
Acho que sei o porquê de entregá-las à minha mãe. As pedras tinham uma beleza rústica, tola, mesmo infantil; mas era a minha forma de agradecer, ainda que de maneira inconsciente, o amor que eu recebia. Fundamentalmente, o amor e a beleza têm a mesma essência. E eu queria ter um meio de equilibrar essas forças magníficas na minha pequena vida.
Meu pai também participava desses momentos de transmissão dos meus incógnitos afetos. Ele me dizia, numa voz grave, paternal, de quem quer prever o futuro: "ela pode ser uma geóloga". Dizia que eu me interessaria por biologia, química, essas coisas que eu não entendia, e que até hoje não entendo muito bem. Creio que ele quisesse já me projetar ao futuro, e eu me divertia, sentia-me grande e importante.
Mas havia uma coisa que ele não entendia, e que só no meu âmago estava esclarecido - era algo que eu não podia e não sabia externar, mas que agora compreendo e sei que sempre esteve em mim. Eu gostava da beleza sublime das pedrinhas, não da sua composição concreta. Eu não gostava exatamente da matéria - eu admirava a ideia que suas características representavam. Gostava da beleza que elas continham, e qual mensagem que elas poderiam propagar. E só agora eu entendo claramente que isso não me fazia ser objetiva, cientista - geóloga, bióloga ou química. Isso sempre me fez ser subjetiva, emocional - poeta.

Assim descubro qual é estranheza mágica e pura, nostálgica e infantil, que as manhãs de domingo guardam. É a poesia, que paira no ar e nos enche os pulmões ansiosos por algo de suficiente leveza. A poesia revigora o ar e purifica a mente; assim, posso ter minhas lembranças puras, que me trazem a esperança de fazer com que a vida seja, uma vez mais, bela em sua simplicidade.

sábado, 28 de março de 2009

Sonata em dó maior.


Todos os dós, todas as dós para essa minha dor.
Todos os nós, para sempre atados
- Indissolúvel esse nosso partilhado rancor -;
Nós, ambos, tão terrivelmente isolados...

Nossa dor, tão apenas minha, tão quase sua...
Musicalmente impraticável, gritante cacofonia.
Minha fome seca, cruel, crua,
Anseio extremo de você, minha alegre agonia.

Você lá, eu aqui. Nada mais que essa irracional
Dicotomia de caminhos errantes.
Estamos sós em nossos destinos isolados, afinal.
Culpados demais para juntos vivermos, como antes.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Nostálgica novidade.




[Fora de casa. Livraria Saraiva, por volta das sete ou oito horas da noite, cappuccino em mãos, caneta vermelha empunhada como uma espada previamente sangrenta – prelúdio da batalha. Sozinha, acomodada na solitária e reconfortante mesa do pequeno café.]

E, neste exato momento, eu me sinto enlevada pela felicidade efêmera e real – consegui dar um passo. Pois consigo me sentir plenamente livre na minha completa solidão.
Era o que eu queria, para falar a verdade. Poder sair de casa, quebrando as correntes que me prendiam ao recanto mais profundo da tristeza humana: a sensação de depressão, que traz a inércia da preguiça. Embora seja noite, creio ter saído da parte mais escura das trevas de minha vida. Consegui sair de casa – para ir a outro tipo de clausura. Uma clausura livre, porém – livre de qualquer julgamento externo. É que eu aprendi a não me importar com olhares de estranhos. Gosto de poder adoçar meu cappuccino grande com o número de sachês de açúcar que eu bem entender. Aproveitei o dia de pseudo-frio para fingir que não vivo num maldito país tropical. Posso sentar no café da livraria do shopping da cidade interiorana brasileira e fingir que sou uma inglesa entediada. Como é divertido poder sonhar, e ter ilusões menos doentias do que as que eu cultivava quando presa em minha inércia física e psicológica.
Mais um gole de cappuccino – ele ainda está um pouco amargo, apesar de todo o açúcar. Hesitei entre ele e um chocolate quente, mas considerei-o mais plausível; a vida é como um cappuccino, afinal. Sempre tem um leve amargor de café em meio à aparentemente impecável doçura do chocolate.
Deuses, eu me sinto tão realizada...
Por mais que eu tenha dezessete anos e os bolsos vazios e a mente cheia de projeções para o futuro que certamente serão frustradas, eu me sinto realizada.
Porque eu estou conseguindo me iludir e enganar a dor. Esquecer a dor durante alguns mágicos momentos. E ninguém me percebe – isso é inexplicavelmente reconfortante. Estar sozinha, anônima, realizada e podendo fingir que a dor não existe. Como eu queria prolongar esse momento!
(Mas não eternamente. Porque não quero estar eternamente sozinha. Como uma linda e verdadeira música diz, “é impossível ser feliz sozinho”.)
Mas enquanto sinto-me feia e ignorante, preciso dessa solidão realizada para aprender a me recompor. Quero poder trabalhar para desenvolver minha auto-estima, tão frágil, tão perdida. E quero saber que tenho coragem o suficiente para fazer isso sozinha.
Como já disse, eu dei um passo. Regressei ao local das dores vivas e pulsantes (essa bendita e maldita livraria) e não quis morrer. Ao contrário: sinto-me deveras viva. Podendo escrever livre e simplesmente, algo que há muito eu não conseguia. Até meu estro estava perdido no labirinto da dor – o meu maior (e talvez único) motivo de orgulho. Creio estar recuperando alguns raios de luz.
E não tenho muita noção do tempo, no momento. Não quero ter, por mais que eu devesse – ainda não posso negligenciar meus compromissos sociais. Mas está tão confortável ficar aqui, esquecendo que minha vida sem graça existe, reinventando meu mundo! Quero protelar ao máximo a ruptura com esse momento mágico. É tão raro ser feliz assim, com tamanha simplicidade! E não quero voltar para o que está além dessa simplicidade, minha rotina de estafantes complexidades. Por mais que eu saiba que ela é necessária para que eu alcance a eterna simplicidade da vida – mas não há um meio menos entediante de fazer com que a vida seja, no mínimo, satisfatória?
E minha mão começa a tremer e a falhar, porque não sou muito resistente à cafeína. Mas preciso continuar a escrever, porque há muito tempo não me sentia tão livre quanto agora posso sentir.
Mas já são oito e trinta e seis de domingo. Deixe-me em paz, tempo. Preciso de muito mais do que isso que você me dá. Não me restrinja assim tão impiedosamente, não me prenda assim em seus limites; preciso de muito mais do que o que a vida pode me dar. Deixe-me em paz agora, tempo, que eu quase alcanço a calma. Preciso sentir um pouco de calma, um pouco mais de alma.
Eu precisava não depender tanto de fatores externos para sentir novamente minha alma – mas está tudo estranho. A angústia agora – no mágico momento – está escondida, mas pulsa em seu canto oculto. Deuses, tudo é tão contraditório e incompreensível!
Ainda consigo me sentir bem, por mais que a dor esteja voltando a bater em minha porta, chamando-me de volta à realidade. Mas eu não quero voltar, não ainda, não agora... Por favor, não quero voltar agora! Sou como aquela criança acolhida nos braços quentes da avó, que não quer voltar para casa porque no dia seguinte tem aula e criança gosta mesmo é de brincar e comer os doces que a avó faz – por que temos que ir, tão rapidamente, de um extremo ao outro da vida, do conforto feliz à cinzenta e triste monotonia, em um simples piscar de olhos?
A diferença que tenho em relação à criança é que não sou inocente. Sei das condições, da efemeridade das circunstâncias. Diferentemente das crianças, eu não deveria estar tão confortável em um mero lenitivo.
[...]
Pouco escrevi, e parece-me que uma eternidade se passou desde que pousei a caneta no papel em branco. Acho que são nove e vinte – está ficando tarde. E ainda não quero voltar. Mas não posso ser irresponsável – não mais do que já sou. Sei lá.
Está divertido ficar aqui, sentindo o movimento externo – tão alheia! E o movimento interno – tão profundamente absorta! É bom sentir esses dois movimentos. Por mais insanos que ambos sejam, eles me garantem que ainda não morri. E não quero que isso aconteça tão cedo – acho que aprendi a não querer morrer, apesar de todas as absurdas adversidades da vida.
Mas o movimento externo começa a serenar, e acho que então estou convidada a retirar-me. Ir para casa, porque não há mais tempo para me enganar e fingir [ou sonhar?] ser feliz. O tempo chegou – Saturno implacável. Tudo recomeça a ser cinzento e sem graça. Ainda não quero, mas preciso ir. Dormir. Mais uma maneira – pouco eficaz, na verdade – de esquecer.
Um último parágrafo, por favor – só peço mais isso, caridosa ilusão.
(Enganei-me: são nove horas ainda. Obrigada, tempo. Posso ter meu último parágrafo.)
(Ou não. A livraria está se fechando. Deixe-me encontrar lugar, não mais propício mas certamente mais tranqüilo, para a última valsa noturna das palavras.)
(Encontrando outra mesa, acho que tenho um tanto mais de tempo. É a minha lúcida inconsciência: ainda não, ainda não... Protelar ao máximo. Eis a minha implícita intenção.)
Impelida a caminhar para encontrar outro espaço onde haja tempo e calma, senti-me tonta. Acho que minhas pernas se esqueceram de como andar – é que eu queria precisar movimentar, neste momento, apenas minhas mãos aflitas. Enfim.
A última valsa de que preciso diz respeito a como o meu baile de novas e pequenas ilusões começou e terminará. Bem como tudo o que é relativamente bom, esse meu “mágico momento” acabou.
O início não fará muito sentido, mas espero que, no fim, todos os passos estejam perfeitamente claros. Mas ainda não quero me cobrar claridade e exatidão.
[...]

Quando desejei sair de casa, o dia ainda estava claro – o poente quase chuvoso convidava-me a respirar seu nostálgico ar frio. Um dos dias em que mais me senti feliz – de uma felicidade gratuita e inconsciente – tinha o exato aspecto do fim de tarde que hoje me convidou a caminhar; mas relutei. Por medo. Porque eu sabia que a caminhada que me foi proposta traria à tona a profunda dor da lembrança. Grata por minha inexplicável intuição e coragem, digo agora que valeu a pena ter saído – ainda que já fosse noite e grande parte do encanto se houvesse perdido. Vejo que, no fim, isso não importou – por breves instantes, consegui me reencontrar e me sentir realizada.
(Tempo, tempo... Por favor, só mais um pouco...)
Apesar das lembranças – que puderam ser caladas sem um maior auto-flagelo – cheguei aqui. Ao shopping interiorano onde meu mundo triste pôde ser esquecido, onde pude fechar-me numa confortável ilusão e, assim, consegui relatar a profunda e árdua epopéia dos meus pensamentos desconexos.
Além disso, encomendei um livro, o qual eu havia perdido para a dor – meu livro favorito, que finalmente será restituído e me ajudará a cicatrizar um pouco mais as feridas do mundo real. Acho que não preciso explicitar que todo o meu tormento vem da dor de amor. Creio que esse detalhe ficou subentendido – se não, agora me revelo. Disso eu não tenho muita vergonha; nunca tive.
Qualquer dia, quando estiver mais forte (e com mais tempo), falarei sobre a perda do livro, do amor e da calma. Deixe estar. Tudo tem o seu tempo.
(E o tempo passa, e estou adiando demais; preciso acabar logo. Agora eu quero ir embora – mas não posso. Não consigo. Preciso terminar. Prometo, tempo: são as últimas linhas.)
Além de encomendar meu livro-sentimento-de-profundas-e-ainda-inenarráveis-proporções (poesia de Florbela Espanca, se a curiosidade aflorar), comprei outro livro. De poucas páginas, que espero ler ainda hoje, antes de dormir. Ironicamente: Sêneca – Sobre a brevidade da vida. Páginas as quais tenho certeza que de finalizarão meu dia da maneira mais necessária e premente para o momento: um tratado sábio e lúcido que me faça ter vergonha de todas essas linhas e sensações que acabo de [d]escrever. Sobre o tempo, afinal: a justiça do tempo. E como eu devo pôr fim a todas essas loucuras para viver, realmente; aproveitar o tempo. A vida é breve demais para darmos muito espaço a inúteis desvarios.
Assim termino, portanto, meu aflito relato: clamando à filosofia que me guie para além de todo esse tormento. Que me ajude a quebrar esse ciclo vicioso. A livraria trouxe-me a dor, decerto – mas me trouxe também a esperança de redenção. Mas chega de palavras incoerentes. Boa noite, ilusões. Boa noite, tempo. Minha vida sem graça (mas ainda com esperanças de ser transmutada) precisa continuar.

[...]

[Em casa, de volta. O fim não me foi completamente satisfatório, uma agitação d’alma não me permitiu refrear as palavras.]

Despedi-me naquele momento, mas não consegui, não pude parar – em casa, onde o tempo é semi-eterno e a tranqüilidade das ilusões é escassa, preciso continuar meu relato. Minha alma está, agora, deveras inquieta para que eu me permita ser calada pelas exigências da vida material.

Longe do medo tangível que o trajeto shopping-casa me trazia, não preciso pedir ao tempo que me espere. Agora eu o tenho em minhas mãos trêmulas, porque a segurança física de casa me permite tal trunfo. Estou aflita, ansiosa e perdida – como minhas palavras bem refletem –, mas simplesmente não sei parar.
Preciso contar que, ao abandonar compulsoriamente a caneta e o papel, senti-me terrivelmente vazia. Como se tivesse abandonado meu único propósito, como se tivesse criado uma vital dependência da escrita. Sei que não posso continuar assim eternamente; mas, uma vez desencadeado o processo, é necessário que ele tenha um fim natural, não outorgado. Não sei explicar exatamente.
Preciso contar também que, voltando para casa, enfrentei, de peito aberto, o palco onde outrora meus sonhos se concretizaram – que hoje é um teatro de fantasmas e dores. Em uma confusa mistura de atriz/espectadora, passei pelos caminhos que me lembraram os mais doces e terríveis dias da minha estranha existência. O gramado, verde-escuro orvalhado pela chuva noturna, chamava-me para nele repousar, sozinha, no mesmo local onde, antes acompanhada, desafiei a vida e o destino. O gramado convidou-me a ver o quão iludida eu estava ao pensar que poderia fazer tal desafio e sair ilesa da batalha promovida. Não precisei aceitar o convite para perceber o que o momento me pedia: amar necessita de cautela e prudência. Não somos semi-deuses. Quando a paixão vai embora, as torturas humanas – exageradamente cruéis – vêm para esclarecer quais são as respectivas posições do humano e do destino. É quase suicida permitir-se desafiar o poder de algo que está muito além da nossa restrita compreensão.
(Pausa para respirar, descansar a mão e refletir sobre a inutilidade dessas palavras sem sentido.)
Terminado o caminho o qual percorri com as pernas bambas e o coração batendo fraco – um mal-estar terrivelmente real e curioso, inexplicável e amedrontador –, cheguei ao ponto de ônibus com uma inquietação irritante. Minhas mãos moviam-se involuntariamente, o ônibus demorava e senti como se, a qualquer momento, fosse cair desfalecida, sem defesas, no cimento duro da rua suja.
Cheguei fisicamente intacta em casa, com a graça dos deuses – não sei o que uma dor física poderia acarretar no momento. Agir conjuntamente com a dor psicológica talvez trouxesse efeitos não muito desejáveis.

Apesar de toda a minha aparente insanidade e fraqueza, não me sinto tão mal como antes. Porque hoje experimentei os já relatados “mágicos momentos”, e isso de fato me fez não desistir de encontrar a graça da vida. Digo que estava à beira da desistência, e é sem a mínima dor – até com um quê de monotonia, na verdade – que confesso a qual grau de desesperança cheguei. Tudo tem que ter um sentido, afinal – essa vida estranha tem que ser mais do que uma vida estranha. Eu sei que é. Só preciso de um pouco mais de vontade de desvendá-la.

E é por isso que hoje, ao escolher um livro para a minha leitura pré-sono, preferi a filosofia estóica à poesia romântica. Poesia é mais uma de minhas paixões que me deixam inerte – a filosofia é um amor que descobri há pouco tempo, mas que já me mostrou o poder de destruição da inércia. Na filosofia residem minhas pequenas – porém essenciais – esperanças. Não preciso abandonar todas as minhas paixões (não todas – algumas são estritamente necessárias, contudo) para movimentar-me na jornada da vida e, assim, encontrar o seu misterioso sentido e sua ainda tão oculta graça.

Não sei se posso/quero continuar. Acho que, por hoje, o fim natural chegou – agora me sinto menos inquieta, pois creio ter exteriorizado tudo o que precisava, tudo o que até hoje estivera tão terrivelmente calado. Consegui novamente dar asas às minhas palavras – promessa do início de uma nova liberdade. Assim espero.

(Engraçado. Até que, para uma autêntica louca pessimista, estou com bastante esperança.)

Ao terminar, agradeço ao tempo. Chronos/Saturno é sábio e justo, como já disse. Não pretendo mais desafiar o que está infinitamente além de mim, nem cobrar indevidamente respostas que, afinal, têm seu tempo certo de chegar.

Concedendo-me uma vez mais o perdão pelas palavras incoerentes, despeço-me definitivamente. Por hoje. Boa noite.

segunda-feira, 9 de março de 2009

A dor de perder o verdadeiro amor.





Ela é a mulher calada no escuro, como um bicho acuado que perdeu o caminho do bando. Mais que assustada - ela está aterrorizada. Triste como se abismo algum, por mais profundo que seja, pudesse ser maior que sua tristeza. E um vil sentimento martela-a o peito e abre ainda mais suas feridas: "estou perdida, estou perdida".

A mulher no escuro tem algo de mártir patética, de plebéia que sonhou a realeza e só pôde roçar o sonho mui levemente, com seus calejados dedos comuns. Dedos comuns de mulher sofrida. Sonhar é para os ingênuos. A realeza não se alcança, nasce-se com ela.

Mas a mulher já fora um ser de luz. Suas convicções pessimistas não lhe são próprias; ela sabia sonhar. Ela se esqueceu de como, apenas - ela fora rainha, fada, ser mítico de mãos macias, sem dor ou sofrimento. E o que trouxe as trevas do esquecimento? O que, afinal, jogou a mulher-luz no poço de amargura, na escravidão da noite sem sonhos ou esperanças?

A mulher sem voz cantara, outrora, o amor. O amor fora seu reino e fortaleza, sua magia e sua guarda. Proteção indefectível contra os horrores da vida. Ah, dulcíssima canção de pura harmonia, como se a primavera toda vibrasse em sua lira vocal! O amor... A mulher cantara e gerara o amor. A mulher, com essa magia, sabia criar a vida... A vida surgia em suas entranhas, tinha o presságio de esperança que se renovaria. A mulher rainha teria, como fruto puríssimo de seu amor, um príncipe ou uma princesa, herdeiro de toda a nobreza que o amor confere aos seres viventes.

Porém, numa noite de céu profundo sem estrelas, eis que surge a dor. A dor implacável e repentina, acompanhada da venenosa certeza. E os brancos lençóis de linho tingem-se de vermelho sangue. A cor do amor vazava de suas entranhas, tornando-se a cor do medo, da tortura, da tristeza, da morte. Manchava a branca pureza do reino de sonhos. A luz ia embora, a vida se esvaía. A rainha morreu - apenas a mulher salvara-se. Salvara apenas o corpo, no entanto; a mulher tornou-se, internamente, toda morta. Acuada, um bicho calado e perdido. Eternamente enclausurada na profunda noite sem estrelas, na noite triste em que os caminhos de luz se apagaram, na noite terrível em que o mais puro amor perdeu-se, inexplicavelmente, para o estranho mundo da dor.



quarta-feira, 4 de março de 2009

O deserto repentino;


O céu tingiu-se de um roxo estranho; a [pseudo] chuva tentou fazer com que o calor se dissipasse, mas parece que nada adianta. A massa de ar quente e sufocante insiste em permanecer sobre a cidade, um sol impiedosamente quente deixa as pessoas letárgicas, exageradamente apáticas.

Uma brisa tépida se estende pelos espaços vagos entre os pilares de concreto. Traz para os lares abarrotados um mínimo conforto, e o presságio de que a situação não há de mudar tão cedo. Gotas esparsas tentam pingar esperança, mas elas parecem evaporar antes de alcançarem o chão - o vasto e implacável calor apaga qualquer vestígio de frescor, de descanso. Todos estão fatigados, com seus corpos pesados, como se há muito se arrastassem por um imenso deserto, esse deserto de metal e concreto que potencializa os efeitos da instabilidade climática. O calor é física e metafisicamente insuportável.

O pôr do sol ganhou cores agourentas; recusou-se a ser a paisagem romântica que os amantes tanto prezam. Talvez nem os amantes estejam se suportando; afinal, o calor excessivo do ambiente deixa os corpos ainda mais quentes, pesados, preguiçosos e misantropos. É impossível pensar em qualquer outra coisa, o desejo de que a asfixia amenize é deveras implacável. Enlouquecedor, talvez.

As cores estivais são mais alegres, decerto; porém, quando o desequilíbrio [provocado pelo homem] castiga a natureza, tudo se torna seco, infrutífero. Todas as cores perdem o viço; os campos verdes se transformam em charnecas selvagens, áridas e hostis. Não só a água evapora - toda a vida parece se esvair em sutis nuvens de fumaça, voláteis e efêmeras. As fontes se tornam pedras amargas, ressentidas com todo o horror que a despreocupação humana provoca.

Diante de tudo isso, uma pergunta paira no ar, tão ameaçadora quanto o calor: qual a graça de estar vivo, se não há esperança de mudar qualquer aspecto dessa vil condição?


[Essa pergunta... é um sinal da loucura que está à espreita... a loucura comum de uma vida condenada.]