quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

a dobradinha da tia Sônia

    Houve em dois dias, pelo menos, de que eu consigo me lembrar. O primeiro foi feijoada; o segundo, dobradinha. Houve também um Natal, com rabanadas - não sei se o mesmo em que, aos dezenove, percebi que acontece de as famílias serem casas fraturadas em sua medula.
    Enquanto lavava a louça, é claro: é no trabalho doméstico que nos irmanamos, as mulheres da família. Tentamos escrever histórias novas, prometendo aulas de inglês para as primas, mas a herança mais forte ainda está muito próxima em termos geracionais.
    Eu adoro dobradinha e feijoada. Gosto muito da ideia da família reunida, mas só no campo da idealização. Pode ser que haja famílias que caminhem bem sobre as próprias pernas: a minha, não. Retraímo-nos em um núcleo fundado na exploração do trabalho doméstico das mulheres e na depredação de sua autoestima - como é de nossa praxe dita civilizacional. E eu ainda tomo como falha pessoal a minha dificuldade de expandir meu passo pelo mundo...
    A vizinha berrou o dia inteiro com as duas meninas. Meu coração treme, nervoso. Meu cérebro se exaure imediatamente, derrotado, angustiado com a repetição do trauma. Tenho trinta e dois anos, mas meu corpo se lembra de muita coisa passada. Meu corpo é mais sábio que eu, e eu ainda não aprendi a escutá-lo.
    O que é feito do amor nesses contextos de violência e abuso? Eu não consigo entendê-lo bem, ainda. bell hooks diz que eles não coexistem, amor e violência. Mas na casa fraturada reuníamo-nos, vez em quando, ao redor do fogão de lenha com a panela fumegando cuidado. As mulheres... Algumas de nossas faces são as da guardiã violada, Medusa que grita para nos petrificar de horror.
    Além dos gritos e do choro desesperado de criança, de vez em quando também sobe, da casa da vizinha, um cheiro bom de comida boa...