terça-feira, 17 de maio de 2016

"Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro."

"Há só um presente imóvel com um muro de angústia em torno. A margem de lá do rio nunca, enquanto é a de lá, é a de cá, e é esta a razão intima de todo o meu sofrimento".

Existe todo um complexo emaranhado de pensamentos e sentimentos envolvidos nessas frases simples. Talvez eu consiga deixar tudo mais ou menos organizado - porque, afinal, a escrita é algo inerentemente linear (a despeito de toda a teoria dos hiperlinks etc etc).

Esse escrito me acompanha desde os idos da faculdade, quando eu fiz a matéria de Literatura Portuguesa pela primeira vez. Desde então, nunca mais tive sossego (com o perdão de um possível trocadilho) - seja porque essa carta descreve tão bem a forma como eu me sinto às vezes, seja porque eu odeio me ver refletida em tão doloridas palavras.

Mas a literatura é para isso - consolo para os dias em que só há um presente imóvel com um muro de angústia em torno. Não só para isso, certamente, mas não há um só dia em que eu sinto que eu nunca tive futuro que essa referência pessoana não se abrilhante na minha mente fatigada.

(Já discuti essa carta até na terapia, inclusive. Não consigo viver objetivamente quando me lembro da existência desse texto.)

Nos dias em que nunca tive futuro, há apenas dois caminhos possíveis:

1. O desespero absoluto, em que não há salvação, e o muro de angústia se abre (para baixo) num poço extremamente profundo que me conduz direto ao Hades e o seu chamado ao lado mais sombrio e obscuro e confuso da nossa constituição essencial (o que o inglês chama de core e que o português chama de âmago, em que o inglês curiosamente se torna mais bem sucedido porque - somos feitos de um milhão de referências diversificadas, afinal - tem aquela música antiga do Evanescence em que a Amy Lee canta, tão sofridamente, how can you see into my eyes like open doors / leading you down into my core, where I've become so numb... - ainda que não esteja ninguém olhando, de fato).

2. A resignação (que normalmente sucede o desespero absoluto quando, por algum golpe da vida, eu consigo abstrair essas questões existenciais enlouquecedoras pela necessidade de concluir alguma tarefa prática - o que me aponta para a necessidade de objetividade quando me perco no mar infinito, profundo e caótico da subjetividade individualista). Ela costuma me remeter a todos os saberes filosóficos que me acompanham já há tantos anos, num misto de culpa e esperança.


"A margem de lá do rio nunca, enquanto é a de lá, é a de cá, e é esta a razão intima de todo o meu sofrimento."

Parece uma razão estranha para todo o sofrimento que se tenha, mas dói. Dói terrivelmente que a margem de cá nunca seja a de lá - dói que se seja apenas uma coisa, e nunca mais de um. Nunca mais do que uma única consciência presa a um único corpo por toda a eternidade estranha da existência - dói que não se possa ser nada além de si mesmo. (E se isso me dói, posso imaginar o quanto isso não angustiava o nosso querido Pessoa, que tentou tão bravamente se estilhaçar em vários brilhantes e conscientes-de-si cacos mas, no fim, não era ninguém além de um si-mesmo profundamente angustiado e incapaz de encontrar sossego no existir).

[Queria conseguir dissertar mais sobre isso, mas acho que preciso dedicar mais algumas horas de reflexão a essa questão que me deixa profundamente nervosa: estar presa dentro de mim mesma, e não poder ser ninguém além desse karma que os deuses me ofereceram]. 

Ao fim e ao cabo, parece-me que não ter futuro é a pior de todas as angústias, porque ela significa a morte - o nosso maior enigma enquanto seres viventes que jamais poderão, enquanto viventes, experienciá-la e refletir sobre ela (apesar de que, um dia desses aí para trás, eu me senti desfalecendo, quase como se fosse dormir de forma definitiva, e morrer me pareceu um tanto consolador num sentido de descanso). E sentir que não se tem futuro é também triste porque não se admite a possibilidade de mudança de estado - que só a passagem do tempo traz (na verdade, a passagem do tempo traz absolutamente tudo, porque não há um único instante em que o tempo não esteja passando, e essa percepção do escoamento dos segundos por entre os meus dedos cada vez mais envelhecidos me é uma fonte intensa de ansiedade - mesmo aos meus [não tão poucos] 24 anos). E, me disseram recentemente, o futuro não é algo que se projete, mas que se constrói com o exercício da Vontade própria - ou que se lhe é construído por um destino banal, caso não se assuma as rédeas da própria existência (e isso me parece uma perspectiva consideravelmente sombria).

"Há só um presente imóvel com um muro de angústia em torno".

Eu gostaria de, ao menos, estar presente num presente imóvel, sem uma mente que me projetasse para um futuro que eu não consigo manter sob o meu controle.

Me entristece que o Pessoa fosse tão absolutamente genial e tenha conhecido tantas coisas belas e sublimes e não tenha conseguido alcançar um mínimo de paz.

Eu oscilo. Karma de libriano: a balança, a busca pelo equilíbrio. (Ainda que eu esteja tentando me desvencilhar dos determinismos astrológicos, em função da profunda banalização pela qual a astrologia tem passado nos últimos tempos).

Porque pelo menos o muro de angústia me protegeria do escoamento dos segundos. Mas o meu sofrimento engloba o passado e o futuro, e me tira completamente a possibilidade de viver sem as projeções que me anulam a capacidade de desenvolvimento de um eixo que me transforme, de fato, em um indivíduo - no sentido de ser indivisa, encarnar a ideia de uma Unidade.

Individualmente isso não me preocupa tanto, porque desde que eu estive no Hades pela última vez (não que isso não deva acontecer novamente, eu suponho), eu tenho mais convicções do que nunca. Talvez eu tenha conseguido, finalmente, desenvolver uma convicção: a nossa profunda conexão com os ciclos da Natureza. E isso me deixa um pouco menos perdida. E aí talvez eu consiga ter algum futuro, em que eu, por fim, depois de muitos feitos, repouse no seio da mãe Terra, acalentada pelo pai Celestial, e que a minha Alma esteja envolvida por luz, pronta para descansar, até quando eu tenha que voltar para essa existência e viver tantas outras coisas que me permitam estar cada vez mais próxima da Unidade absoluta (na melhor das perspectivas, em que eu recentemente tenho depositado toda a minha capacidade de ter fé).


Minhas tendências obscuras vêm entremeadas, de forma muito estranha, com feixes de luz que me atravessam, me preenchendo de calma.


Acho que a razão íntima de todo o meu sofrimento está nas coisas que eu não posso controlar. O que não deixa de se relacionar com a questão das margens: não dá para mudar o meu passado e ser uma Mayara bem-resolvida emocionalmente, satisfatoriamente amada. Eu sempre serei a margem com um passado triste, de imobilidade, de demora em aprender, de longos períodos de frustração e solidão e dificuldade de lidar com os próprios sentimentos, apesar de conseguir racionalizá-los de forma satisfatória para a subjetividade nossa de cada dia. Se quero mudar isso para o meu futuro, como eu gostaria de também poder limpar isso do meu passado - mas o passado nem existe mais (isso se o tempo é linear, e não cíclico, e quanto a isso eu também não cheguei a uma reflexão satisfatória).

Toda essa angústia surgiu hoje de um futuro que eu não sei se eu vou conseguir alcançar (e é por isso que estou num daqueles dias em que nunca tive futuro, esse futuro que eu almejo tanto - inclusive porque não é o meu presente), porque não depende de mim. Eu tenho certeza de que vou alcançar tudo o que depender de mim. Mas essa aguda dor, dor sólida e premente de todos os dias, de todas as horas (exceto daquelas em que eu me ocupo de objetividades, dos mestres e da Alma Imortal - e ainda bem que elas existem), ela não depende de mim. E eu peço a todos os seres que me protegem que, por favor, aliviem-na, tirando todo esse pesar e medo do meu coração.