quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Em meio ao labirinto... II

 ... A minha alma renasceu.


Minha cabeça sempre foi um labirinto giratório e enevoado.

Agora que eu consegui reduzir um pouco a vertigem da rotação e espantei um pouco da névoa (em gestos aflitos de mãos ao ar, com seus dedos roídos)

Percebi que o mundo inteiro é um imenso labirinto.

(Os signos do mal-estar.)

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em 01/01/2021, descobri o porquê do meu fugere urbem:



(http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/terraroxa/article/view/24854/18220).


sábado, 26 de dezembro de 2020

Feliz Natal II

[A autoria não é minha - ela vem indicada ao fim do texto.]


jesus jacobino


Meu reino não é deste mundo.

JESUS


A história é um pesadelo do qual quero acordar.

JAMES JOYCE


Eis que o reino de Deus está dentro de vocês.

LUCAS, 17,21


Jesus, reformador ou revolucionário?

Essas categorias são muito modernas, filhas das Revoluções francesa, russa, mexicana, chinesa e cubana, talvez as únicas, até agora, dignas desse nome.

A tomada do poder pelas classes oprimidas raras vezes (alguma?) ocorreu na história.

A doutrina de Jesus, porém, tomou o poder no Império Romano, sem disparar um tiro, quer dizer, sem disparar uma flecha nem levantar uma espada.

Isso é um fato.

Como é fato que foi a burguesia quem inaugurou a idade das revoluções, com essa Revolução Francesa, que Lênin e Trótski, pais da russa, chamavam A Grande Revolução.

Nela, a atuação mais radical foi a do Partido Jacobino, liderado por Robespierre, dito o Incorruptível, oposto aos girondinos, de tendência moderada (1793-4).

Durante a breve ditadura dos jacobinos, milhares de cabeças rolaram na guilhotina, condenadas pela sumária justiça revolucionária (revoluções não costumam primar pela gentileza nem pelas boas maneiras).

Robespierre e os jacobinos queriam a pureza máxima do ideal revolucionário: democratização, republicanismo, secularização, em uma palavra, o racionalismo da burguesia iluminista, moldando a sociedade à imagem dos seus interesses e à semelhança dos seus negócios.

Robespierre pode parecer o paralelo mais inadequado para Jesus. Nenhum símile entre quem salvou a adúltera de apedrejamento, contra as leis de Moisés, e o advogado que, 1790 anos depois, condenou à morte, implacável, seus próprios companheiros de partido e de militância, com o rosto de pedra de um rei assírio. Uma coisa, porém, Jesus e Robespierre têm em comum. Eles querem o exagero, a pureza de um princípio.

Nisso, são revolucionários. Apenas os métodos diferem.

Erro pensar que Jesus veio abrandar os rigores farisaicos da religião de Israel. Ele veio para tornar mais agudas as exigências dessa fé.

Um dos pontos essenciais de sua doutrina é a interiorização dos ritos

Daí, sua hostilidade constante contra o exibicionismo da piedade dos fariseus.

Jesus os detesta porque mandam tocar trombeta na hora em que vão depositar esmolas no templo, para que todos saibam como eles respeitam a Lei.

Os fariseus lhe devolvem o rancor na mesma medida, classe ideologicamente dominante (o poder romano era inteligente demais para mexer na religião dos seus incontáveis súditos, pontuais pagadores de impostos, que importa que não adorem?). Influências essênias, contato com João, o Batista, Jesus acelera ao máximo essa tendência de interiorização dos ritos judaicos, que já tinha começado com os profetas, no século VII a.C.

O dentro e o fora começam a desaparecer: exterior e interior tendem a se encontrar num ponto infinito.

Jesus está inventando a alma: o supersigno que todos somos “dentro”. Essa, talvez, foi a sua revolução, a mais imperceptível de todas.

Jesus ocupa um lugar muito especial na lista dos Cromwells, Robespierres, Dantons, Zapatas, Villas, Lênins, Trótskis, Maos, Castros, Guevaras, Ho-Chi-Mihns, Samoras Machel.

Talvez seja inadequado aplicar à irradiação da doutrina de Jesus o qualitativo de “revolução”, uma categoria política essencialmente moderna, afinal, com implicações não apenas ideológicas, mas, sobretudo, econômicas, administrativas, sociais e pedagógicas. E bélicas. Uma categoria essencialmente laica.

A saga de Jesus só faz sentido no interior de um mundo de intensidade religiosa máxima, como o judaísmo antigo, onde as motivações da fé comandavam todos os aspectos da vida. Uma existência inimaginavelmente mais rica do que esta jângal sem grandeza que é a vida das grandes massas nas megalópoles abortadas pela Revolução Industrial.

Só um energúmeno iria pedir a um profeta da Galileia, na época de Augusto, programas concretos de reforma agrária, projetos de participação nos lucros da empresa ou altas estratégias de tomada do poder através da organização militar das massas.

Ninguém, porém, que conheça os evangelhos pode deixar de ver o caráter violentamente utópico, negador (utopias são negações da ordem vigente: o imaginário é subversivo), prospectivo, des-regrado(r) da pregação de Jesus. Nem vamos sublinhar o teor popular de sua doutrina.

Impossível superar esta bem-aventurança:


Felizes os pobres,

porque deles é o reino.


A contradição (binária) pobre x rico, a mais elementar de todas, Jesus viu. E fulminou, brilhante:


Mais fácil

passar um camelo

pelo buraco de uma agulha

do que um rico

entrar no reino dos céus.


O profeta era radical:


Não se pode servir

a dois senhores:

a Deus e a Mammon.


Mammon, a divindade cananeia, cultuada pelos comerciantes, que propiciava bons negócios e fortuna em dinheiro.

Com Mammon, Jesus não queria parte.

Mais que populismo, esse pauperismo de Jesus parece ter raízes na tradição judaica.

Jesus apresenta traços ebionitas.

Ebio, em hebraico, é “pobre”.

Os ebion constituíram uma seita judaica, uma habhurah, anterior a Jesus, que se transformou numa das centenas de seitas judaico-cristãs que proliferaram por todo o Mediterrâneo, depois da morte do profeta.

Seu credo fundamental consistia em afirmar a santidade essencial da pobreza, da penúria de bens, da frugalidade, uma doutrina contra o ter.

O tema ebionista foi modulado muitas vezes na história do cristianismo, sempre com implicações subversivas e utópicas: Francisco de Assis, um dos seus momentos mais altos. Concílio Vaticano II. Igreja dos pobres, no Terceiro Mundo. A essencial subversividade (“negatividade”) da doutrina de Jesus revela-se, porém, na própria realidade que ele anunciava, uníssono com os profetas de Israel: o iminente advento de um Reino. O Reino de Deus.

Um momento de atenção na palavra “reino”, vocábulo político, com implicações de poder, autoridade e mando.

Jesus não inventou a expressão nem o tema. Já está lá em Abdias, o mais antigo dos profetas (século VII a.C.).

O Reino de Deus era a restauração da autonomia nacional do povo hebreu. Sobre isso, a autoridade romana não se equivocou, ao pregar o profeta na crux, exemplar suplício com que os latinos advertiam os rebeldes sobre os preços em dor da sua insurreição. Esse, o suporte material, socioeconômico-político, da pregação, por Jesus, de um (novo) Reino, um (outro) poder.

Nessa tradução/translação do material para o ideológico, Jesus forneceu um padrão utópico para todos os séculos por vir.

As duas grandes Revoluções, a Francesa e a Russa, estão carregadas de traços messiânicos de extração evangélica.

Ambas prometeram a justiça, a fraternidade, a igualdade, enfim, a per-feição, o ideograma da coisa-acabada projetada sobre o torvelinho das metamorfoses.

Natural que seja assim. Afinal, as utopias são nostálgicas, saudades de uma shangrilá/passárgada, estado de excelência que lá se quedou no passado, Idade de Ouro, comunidade de bens na horda primitiva, antes do pecado original da divisão da sociedade em classes, plenitude primitiva, paleolítica, intrauterina, antes do pesadelo chamado história.

Apokatástasis pánton, locução grega, registrada nos Atos dos Apóstolos, expressa a esperança de Jesus e da Igreja primitiva (das Igrejas). “Restauração de todas as coisas”, mas também “integral subversão de tudo”: apocatástase.

A revolução é o apocalipse, o Juízo Final de uma ordem e de uma classe social: o cristianismo primitivo cresceu à sombra da expectativa da segunda vinda, quando Jesus, vitorioso sobre a morte, voltaria, apocalipticamente, para julgar, ele que foi julgado e condenado pelas autoridades: o retorno do reprimido, a vendeta, o acerto de contas entre os miseráveis da terra e seus prósperos opressores e exploradores.

Nenhuma das religiões da terra foi construída em torno de um mito tão forte, tão fundo, tão básico.

A única exceção, quem sabe, seria o budismo.

Afinal, budismo e cristianismo têm um lugar para dialogar no tema da dor. E na nota da solidariedade. Da sim-patia, da compaixão.

Por aí, o budismo e o cristianismo, também, podem conversar, ainda, com o comunismo, cujas metas e mitos guardam tantos parentescos com as vivências mais fundamentais de um príncipe do Nepal chamado Buda e de um “rabi” hebreu, filho de um carpinteiro, chamado Jesus.

A força política da ideia de Jesus, porém, está no estabelecimento de um ultralimite.

Amar os inimigos? Vender tudo e dar aos pobres? Ser “prudente como as serpentes e simples como as pombas”?

O programa de vida proposto por Jesus é, rigorosamente, impossível. Nenhuma das Igrejas que vieram depois invocando seu nome e cultuando sua doutrina o realizou. 

Religião saída de Jesus não poderia ter produzido Cruzadas, inquisição, pogrons e as guerras de religião entre católicos e protestantes, que ensanguentaram a Europa nos séculos XVI e XVII.

O programa de Jesus era uma utopia.

Curioso que, na frondosa bibliografia sobre os socialismos utópicos, nunca apareça a doutrina de Jesus como uma das mais radicais.


LEMINSKI, Paulo. Vida: Cruz e Souza, Bashô, Jesus e Trótski – 4 biografias. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 216-221.

Feliz Natal I

[A autoria não é minha - ela vem indicada ao fim do texto.]

"Acho que, de todas as provocações que fiz a sociedade, nenhuma delas é mais grave pra mim que a que eu vou fazer agora.

Porque, com a necessidade de criar estratégias para que se dialogue politicamente com evangélicos, eu preciso voltar alguns passos atrás para explicar pra você, que não é da igreja, o que se passa dentro. Mas não tratar você como uma criança. Te dizer algumas verdades, algumas delas, que os crentes não suportariam ouvir. 

Fico entre a cruz e a espada.

Mas Jesus não é Deus.

Jesus foi "tornado" Deus no Concílio de Nicéia, no ano de 346 D.C. Ou seja, o jovem, negro, marginal, morto pelo Império, odiado pelos religiosos do seu povo, virou Deus, 400 anos depois, fruto de delírios e disputas de poder.

Jesus foi um judeu marginal. 

Morto como um marginal. Odiado e excluído do meio do seu ambiente religioso. Vou repetir: odiado, e excluído dentre os religiosos de seu tempo.

Morto como um excluído, um indigente. Um gentio. Um incircunciso, a morte dos incircuncisos. 

É importante dizer uma última vez: 

odiado e excluído pelos seus. 

Nenhum dos judeus seguidores de Jesus consideravam que ele fosse Deus. Isso não é possível, na teologia do "movimento de Jesus", original, apesar dos esforços teológicos posteriores.

Jesus não é Deus.

Mas há ainda duas outras coisas, que, como disse, são as mais graves que já escrevi, mas que você precisa saber.

Jesus não nasceu como obra e graça do Espírito Santo. 

Ele era filho de alguém. Alguém com dois braços, duas pernas, sangue nas veias, junto com Maria. 

Sabe-se lá quem foi o pai de Jesus. 

Quem sabe José acolheu Maria grávida e assumiu o filho, por pena. Uma jovem, dos seus 17 anos, largada grávida na madrugada, José, com seus 65 anos, já com outros filhos, uma família que morava junto com ele, de aproximadamente 40 pessoas num tipo de vila, ele levou Maria pra dentro da sua família.

Casou, na forma da lei. Ela, com 17, podia casar. Com 13, naquela sociedade, você já era maior de idade.

Jesus nasceu ali, nesse contexto. 

Teve 4 ou 5 irmãos, negados pela Igreja Católica, mas citados na Bíblia.

Jesus era um menino sem pai biológico, crescendo de maneira confusa, buscando a transcendência, a ludicidade, não se encaixando no que havia ali. 

Com certeza, seria fora da curva.

Com romanos pendurando corpos na entrada de cada cidade e aldeia judaica, para mostrar quem mandava ali, Jesus passou por toda a infância por corpos pendurados, e mortos, apodrecendo no sol.

Assim como crianças no morro, assim como eu, passei por corpos apodrecendo na esquina, mortos pelo BOPE.

Jesus tinha em si elementos, fios soltos o suficiente, para se tornar um hippie que pregava a ruptura com o cerimonialismo, o legalismo, o moralismo. 

Por isso foi amigo de putas.

Suas escolhas, quando adulto, foram para um outro lado.

Optou pelos marginais, mendigos, leprosos, putas, mulheres, ladrões, todos aqueles que aquela sociedade também excluía. 

Tem razão os estudiosos judeus em ferirem a imagem dele. 

Porque ele, primeiro, questionou esses judeus e seu sistema.

Era um jovem sem controle. 

Cavou a própria morte. 

Os religiosos não o queriam, o governador não o queria, e ele passou a ser visto como uma ameaça a Cesar, na medida em que começou a ser chamado de 'rei', 'rei dos judeus', dos judeus marginais, do povo, os não-eruditos.

Feiticeiro. Dizia curar pessoas. Amigo de prostitutas. Falso profeta. 

Jesus foi o responsável pela própria morte. E no fundo, sabia.

Mas os marginais continuaram com ele. E esses marginais não conseguindo voltar para o sistema, projetaram nele a experiência de liberdade.

Então vem a terceira coisa.

Jesus não ressuscitou.

Quando morto pelos policiais romanos, seus seguidores disseram 'Jesus Vive', tanto quanto nós, na Maré, dissemos 'Marielle Vive'. Mas nós sabemos que essas pessoas não vivem. Seus IDEAIS vivem. É licença poética. Nada mais.

Ocorre que Jesus pregava a transcendência, Marielle não.

Então, é natural que dele saísse uma experiência mística e dela, política.

Jesus morreu. E ficou morto. Provavelmente eram dele os restos mortais, em Talpiot, encontrados por volta do ano 2000. Yehoshua ben Yossef. Jesus, filho de José. Ao lado dos restos mortais de Yaco'ov ben Yossef, Tiago, seu irmão, líder da comunidade em Jerusalém. Lembre-se, todos os que seguiam Jesus eram exclusivamente judeus. 

As comunidades primitivas do chamado "movimento de Jesus", eram compostas por pessoas que queriam se desligar do sistema e criar uma fraternidade. Com erros e acertos. Os primeiros hippies, os primeiros comunistas. 

Deu merda. 

Porque alguns foram mortos. Outros se espalharam para África. E um deles, pra Europa.

E esse um, foi o que empoderou o Império Romano,

e deste processo, nasceu a Besta.

A Igreja Católica Apostólica Romana.

E dela, o mal do mundo.

Esse um, Paulo, seu nome original, Saul, Sholomo, foi judeu erudito, falava aramaico, latim e grego, foi aluno de Gamaliel, este, discípulo do venerável Rabbi Hillel.

Paulo inseriu os gentios nessa história. E disse que Jesus era uma esperança não apenas para os judeus, mas para todos os povos. Sim, deu merda.

A Igreja Etíope seguiu seu rumo, mais próxima da experiência original, sem oprimir ninguém. 

A Europa, porém, tornou o marginal em poderoso. E no nome dele, derramou sangue. O Império precisava de uma nova religião para oxigenar seu poder no povo. Criou a própria, juntando elementos diversos num único monstro teológico. O catolicismo.

E os protestantes até que tentaram, saindo disso mil anos depois, criando seus próprios sistemas. Mas geraram mais sangue, pois legitimaram o capitalismo, e os Estados Unidos.

E destes, saíram os evangélicos.

Um misto de milênios de idolatrias, misticismo, ódio, e desejo por poder e dinheiro. 

Qualquer teólogo sério sabe que o que estou dizendo é verdade, mas causa escândalo dentro da igreja.

Mas é.

E apenas partindo desse ponto, podemos criar condições para entender com o que estamos lidando. 

E um movimento de contra-sistema sempre existiu.

O Jesus que acredito, por exemplo, quer o fim, e a destruição da igreja. 

O Jesus que acredito quer a aniquilação dos pastores, poderes, igrejas, dogmas. É como dizer que a vontade de Deus hoje é que a igreja seja destruída.

E é nisso, inclusive, que acredito.

Para que nasça outra possibilidade, outra experiência de liberdade. Para todos. Com os marginais deste tempo. Para eles, com eles, através deles.

Deus é Um. 

Ele não veio como homem. 

No fundo, Jesus é um estado da alma, um estado POLÍTICO da alma. Onde há um marginal, ali há um Jesus. Jesus é todo aquele que está contra o sistema. Que visita o preso, que visita o doente, que alimenta o faminto, que abraça o marginal. Jesus deveria ser sinônimo de marginal. Mas ele é; esses crentes que estão neo-enfeitiçados.

E é importante escrever isso. Pra você saber com quem você está falando. Ao dizer que defendo Bíblia, ou Deus, ou as coisas que você diz sobre mim, se feche. Você não sabe metade do que eu penso, e o quanto andei, pra pisar no seu chão, e no deles. Você, nem eles, podem me aprisionar. 

O resumo das minhas utopias estão nessa pessoa, nesse Jesus, que entregou sua vida para ser morto, pendurado pelos romanos. Não em Marx. E também, não no poder religioso. Morreu a morte que ele, quando criança, viu nas entradas das cidades. 

Mas acho que, de tudo que escrevi, esse texto é o que talvez me dará mais problemas. Nem Dória, nem Maiara e Maraisa, nem quem me ameaçou de morte. Isso tudo é lixo, e tudo que falei sobre eles foi lixo. Isso aqui, é a coisa mais dura que escrevi.”


FRANÇA, Anderson. 

25/08/2020

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

No palácio da memória

Primeiramente, temos de partir do princípio de que é um palácio arruinado, suspenso fragilmente sobre um poço profundo onde rugem águas negras, turbulentas, que correm como um rio subterrâneo. 

É um palácio cheio de portas trancadas, cujas chaves eu escondi de mim mesma e esqueci onde as coloquei e não sei se quero encontrá-las ainda também. Pressinto dores excruciantes por trás dessas portas.

Percorro automaticamente seus caminhos mais familiares, em redor dos quais espalhei objetos belos, coloridos, vibrantes e alegres para me distrair do que a estrutura geral tem de lúgubre.

Pedaços se desprendem, vez ou outra, e caem no poço. Luto contra esse desprendimento (alheio a mim), e vivo na ansiedade de descer ou não às profundezas para verificar o quanto de "mim mesma" é recuperável. No geral, o desânimo me vence.

O devaneio é o modus operandi da sobrevivência. Sempre foi. Até quando?

sábado, 12 de dezembro de 2020

Ideias sobre o tempo

 Minhas paixões individualíssimas sempre foram engatilhadas pelas ideias.

Sou capaz de me apaixonar facilmente por quem me instiga a mente – eis o funcionamento do maquinário do meu coração. Simples assim.

Já levantei mil hipóteses desesperadas ao longo das minhas quase três décadas de existência. E a conclusão é tão simples quanto essa que acabo de enunciar.

Meu maior medo é o de estagnar: água parada apodrece, como um charco pantanoso (que eu conheço menos da experiência factual do que da experiência ideal).

Sei também que a vida floresce à beira d'água, como anunciam as histórias das grandes civilizações antigas. 


Sobre o tempo, o tempo é um rio que passa. E nós somos canoa em água funda: passa, a água bole um pouco, e depois, mais nada.


(Como me esquecer dele, que ativou a minha mente e instigou o meu coração para o mistério das temporalidades? Eis o efeito arrebatador de uma paixão ideal: ela jamais se perde, vira inscrição simbólica e sagrada na madeira da canoa.)

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

cárcere botânico

Pequena flor colhida numa aurora tardia 

Introjetada no meu corpo feito tatuagem

Que é pra me dar coragem quando a noite vem.

Vem a noite, insone, em que eu velo 

Por quem eu fui, sou e desejo ser.

Na costela esquerda, protegida, mora, aqui,

A minha bruta flor do querer.