domingo, 19 de novembro de 2023

o que se chama de amor

    Debaixo da galinha d'angola de barro pintado à mão ficava a papelada: cartões, cupons fiscais, bilhetes. Ao lado, o celular - com a bateria viciada. Tirou do carregador: "Minha filha, a vó precisa conversar com você, só com você. Sei que você tá ocupada, mas seu tio tá muito irritado, fiz uma comidinha deliciosa, preciso de um veterinário para olhar a Lulu, foi muito difícil levantar da cama hoje, tem dia que a coisa pega a gente feio, mas eu levanto porque a minha fé em Deus, só eu sei, o vídeo do padre Flávio me ajuda tanto, assiste pra você ver como é bonito." "Dou um pulinho aí no domingo, viu?" Domingo é dia de bater ponto, senão o trem desanda.
    "Como é bom quando você vem, você me fortalece, me enche de vida, a gente fica mais alegre - eu preciso de você e você também precisa de mim, a gente precisa uns dos outros, é muito ruim ficar sozinha, viu? Você pode vir assistir um filme, passa cada coisa mais linda na televisão, ontem assisti ao programa do Serginho Groisman, preciso comprar aquele colírio..." "Hyabak?" "Isso, minha vista fica muito ressecada pelo celular, minhas irmãs não estão falando comigo..." "Por quê?" "Eu não quis receber o Rogério. Mas vamos falar de outra coisa. Deixa eu te mostrar a receita de frango, você não importa de eu ficar te mandando vídeos de receita, né? Seu tio detesta que eu fique repetindo a mesma coisa, mas fazer o quê? É o meu jeito, né? Leio sempre a mensagem que você escreveu no espelho: tenha paciência com você mesma. É muito importante a gente estar juntos, ficar sozinha é muito ruim, essa semana seu tio me levou no médico, fiquei muito cismada, seu tio me ligou, ele é muito ansioso, coitado, mas tá cheio de problemas também, você quer uma manga? Um licorzinho de pequi? Sua mãe chega de viagem amanhã. Pega lá perto do meu celular o resultado do exame, fiquei muito preocupada, tenho todos esses problemas na família, né? Mas graças a Deus eu tô viva, tô vivendo pra ver tanta coisa bonita, eu sou a primeira dos meus irmãos e uma das poucas vivas, Deus me deu a oportunidade de estar aqui e ver vocês crescerem, o Leonardo, a Ingrid..."
    Debaixo da galinha d'angola, o envelope. "O médico disse que é coisa da idade, eu não vou fazer cirurgia não, o Caruso disse pra eu não fazer cirurgia, ele me mandou um vídeo tão bonito, vou te mandar pra você ver. Ele é um homem tão alinhado, muito sério, disse que eu sou muito repetitiva, o implante dentário não está me deixando falar direito, eu não gostei do serviço, viu? Não estou satisfeita, não mesmo, mas não vou denunciar, vou conversar com o João, só denuncio se não resolver com ele, sua mãe não pode ir lá comigo essa semana, você pode? Já falei com o seu tio, mas ele tá tão irritado, só fala comigo no solavanco, eu não mereço isso não, viu? Eu devo ser uma merda mesmo, porque sua tia também só me trata de qualquer jeito, mas eu tenho culpa de ser quem eu sou? Eu vim lá dos Ferreiros, perto de Itaguaí, o meu pai foi peão, minha mãe, solidão, meus irmãos perderam-se na vida..."


[da oficina com o Rafael Gallo, experiência transformadora, como todas aquelas às quais damos a devida atenção] 

domingo, 12 de novembro de 2023

o que o sangue murmura

a microexplosão infecciosa
nos meus lábios:
hoje digo "não quero",
hoje conto piadas bobas,
hoje solto o que corre
                no fundo do meu coração
porque nada mais importa
como antes.
hoje tudo é um grande lamento
uma tentativa de enlaçamento
onde tudo o que era sólido
se desmancha em um ar pútrido.

(algo ainda importa?)

domingo, 5 de novembro de 2023

pretending

todos somos poetas
ao passo que fingimos:
fingere, modelar o barro,
put your finger on what it is
to make sure nobody discovers
that it's only earth
imagination
and tears

todos somos poetas
ao passo que pretendemos
que, a partir da nossa palavra,
o outro nos aceite e ame
- e para isso lançamos mão
da pior das afrontas
que é a auto-negação