quinta-feira, 29 de setembro de 2022

tunnel vision

tudo o que não sei corre pelo mundo de forma difusa,
incorporado em múltiplas formas que fervem,
fornalhas vivas de núcleo ardente
que nascem de forma análoga às mais vertiginosas
explosões cósmicas.

de seu momento mais fresco, quente e úmido,
o corpo-vivo vai crescendo e secando.
"no topo do ponto mais alto da serra de Petrópolis
encontraram vestígios de fósseis marinhos.
o que isso significa?
isso tudo era mar. foi secando."
saída da úmida infância, Gaia revela
seus filhos feitos de barro: terra encharcada.

"aquecimento global... eu tenho a minha teoria:
a Terra está esfriando"

os rebeldes filhos revolvem suas entranhas,
extraem suas vísceras e, com engenho e arte,
projetam-nas aos céus em busca de respostas
para sua mais antiga angústia:
a solidão universal.
"o que é o Hubble? minério."
minério, sim,
e infinitas noites e dias de trabalho mental, acrescento.

(as quatro questões mais candentes:
liberdade, envelhecimento, solidão e morte)

serra acima, uma face do tudo-que-eu-não-sei
desfia seu rosário de sangue: 
o suspiro discreto de um peito cheio de dor,
a garganta presa por um bolo de mágoa,
desolação, pensamento,
ritmo, música, afeto
e nesse bojo,
diamantes, rubis e esmeraldas da alma.
o outro é meu abismo e meu tesouro.

domingo, 25 de setembro de 2022

nevermind

(notas para uma canção que eu não sei compor)

Rihanna found love in a hopeless place,
Adele hopes to find someone like that one.
As for me, nevermind,
I'll find someone who is able to see
These things you just can't see in me.

(Your blindness makes me sick)

sábado, 24 de setembro de 2022

Maeve, the queen

A oeste de Sligo a rainha Maeve
Mergulhou de volta para o ventre da mãe Terra.
Nas distantes paragens do Éire,
A rainha-loba deixou seu rastro
Três mil anos antes do Avatar da Era de Peixes.
(Seria ela uma Avataressa,
a Grande Mãe do matriarcado gaélico?)

De sua lenda, a face que me assombra:
a conquista do Touro mágico
(depois de muita luta e derramamento de sangue),
com que ela confronta um rei soberano

e ambos destroem-se um ao outro.

(Há amizade possível entre o touro concreto e o imponderável?)

(O imponderável existe?)

Gael, gaélico
Maeve, mãe

Relevo em terracota da antiga Mesopotâmia que mostra Gilgamés matando o Touro dos Céus que Istar envia, na Tábua VI da Epopéia de Gilgamés, após ele rejeitar seus avanços amorosos.


terça-feira, 20 de setembro de 2022

blue starry night skies

oh, midnight skies,
i treasure how you make me think in unusual perspectives,
                how you make me whimsically be...
meus enigmas, eu me consumo em sua espiral vertiginosa:
eles apenas se me esgotam quando encontrados com a vertigem do outro.
mucho me gusta vir-a-ser quem estou vindo-a-ser,
mas tão, tão bom ser outras...
em especial aquela que vive um aqui-e-agora
que é muito mais sensação que sentido.

terça-feira, 13 de setembro de 2022

grieving

enquanto tantos planetas fazem suas retrospectivas
meu coração, circunspecto, medita.
há pouca ou nenhuma acolhida para um vir-a-ser
que, não sendo determinado pelos problemas de gênero,
inevitavelmente passa pelas violências supremacistas.

a raiva me é quase completamente alheia
- e não é como se eu não a solicitasse.
eu tento. venho com a vara,
cutuco a onça: é um filhote de gato.
deposito a coroa de espinhos sobre a fronte
de um Jesus Cristo que oferta a outra face.
internalizo afronta como auto-questionamento.

minha alma chora, chora,
mas voa livre como um pássaro
de penas rarefeitas. 

domingo, 11 de setembro de 2022

synesthesia: scent-oriented

a nuvem incógnita do seu perfume mistura-se
às notas esmeralda de jasmim, tangerina e baunilha
em uma noite fria de tantas palavras
e alguma sintonia

(memória)

cárcere solitário do meu ego contornado
pelos limites tensos de um árduo trabalho mental.
abaixo, muito abaixo da superfície
corre um rio turvo
em que mergulho a balança
e ela perde sua razão de ser.

(liberdade?)

nossos pés tocam as águas do esquecimento
e as palavras duras com que te convoco à lucidez
não são senão meus próprios sintomas
eueooutroooutroeeueooueutroueueo
confusão sígnico-sensorial.

não é tristeza
não é paixão
não é doce
nem amargo

o que é, o que é?

(uma imensa pergunta)

(na melhor das hipóteses, as consequências que trago comigo
serão apenas um breve enredar-me em mim mesma
a lamber minhas feridas)

sábado, 10 de setembro de 2022

bitterness

sabor de veneno na boca
espuma fina agregada à saliva espessa
acúmulo de horas, dias, anos, décadas
no corpo-testemunha de auroras e ocasos
e tudo o que cabe entre os dois mágicos instantes:
portais misteriosos em que a superposição dos pólos
lembra-nos da ambiguidade do existir.
na transição dourado-róseo-púrpura
(ou azul-pálido-cinza-amarelado)
a natureza dupla da matéria
penetrando minhas retinas
vibra o grito de horror que tudo perpassa

domingo, 4 de setembro de 2022

[02 a 04/09, going spinwards - a direção do ciclone]

No breu - um drama patriarcal

Pensei que o breu fosse um lugar escuro como a noite, em que nos são reveladas nossas esquinas sombrias, mas, ao procurar no Google, descobri que breu é uma resina dourada, cor de âmbar, utilizada na música para melhor manuseio do arco (gerar atrito?) e emissão do som.
Mais uma surpresa.
Mas é o tipo de surpresa sem consistência, essa que se torna uma informação curiosa a ser partilhada alhures em um momento qualquer de conversa jogada fora.
O breu preto é uma resina, também. Analgésico, bom para dores reumáticas, dores de cabeça e musculares. Antiinflamatório.
Em mim, o breu da noite produziu uma inflamação como um espinho no cérebro ou um corte de navalha no coração.
Fantasias nascidas nas esquinas sombrias de um desejo selvagem, irracional, mas nunca, nunca malévolo. Não tiro prazer de pisar no orgulho alheio, mas não mais recuo de forma a esmagar o meu próprio orgulho. Também não sou de me entregar tão fácil, e me ofende ser tirada do meu sossego em nome de um capricho volátil.
Tenho sentimentos. Muitos, sérios, circunspectos, profundos.
Revisitei o caso do vestido de Drummond para encontrar um mote e também contar o meu caso, de quando estreei meu vestido rosa e vermelho e mergulhei no breu em busca das esquinas escuras do meu desejo.
Derramei-me, derramei em mim o néctar abundante, o torpor anestesiante que me conduziu à náusea e à entrega.
(A entrega cobra seu preço.)
Encontrei com o encontro. Palavras e ideias, o toque delicado no enlace dos corpos, no abraço das mãos. Cuidado e delícia.
Um prazer fugaz. Mas parece que a presença é tudo o que importa, mesmo que em única ocorrência... É o que parece. Não tenho certeza.
Voltei ao caso do vestido de Drummond e ele me lembrou algo que a Jean Rhys já me havia ensinado.
O drama patriarcal dos (des)encontros é isso de que o meu outro dispõe tão amplamente: o gozo da indiferença, a aversão aos excessos da entrega.
Perturbam o nosso espírito até obterem o troféu de uma dádiva a ser desdenhada.
A graça é o desdém, afinal. Amargo desamor a envenenar os corpos do capitalismo tardio. Poucos se dispõem ao salto no escuro a que Eros nos convoca.
Quanto a mim, eu temo e tremo. Mas se Eros me convoca, eu vou.
Doeu, doeu. Depois do salto o poço era seco e raso. Me feri, mas já não me arrependo. Aprendi um pouco mais sobre as regras do jogo e, apesar dos pesares, guardo o momento único da ferroada da crescente em Escorpião como um presente. Morri e renasci. Entendi melhor a dinâmica da espiral dos meus vendavais internos.
O vestido está ali, dobrado, à espera da próxima aventura, talvez do próximo salto.
Que não mais terá seus dedos esgueirando-se a caminho da minha pele, mas essa memória está aqui, gravada, como tatuagem. Que não me dá coragem - antes, cautela.