sábado, 14 de agosto de 2021

Sexta-feira 13, lua em whatever

O ser humano é cindido em dois: o hemisfério do eu, esquerdo, e o hemisfério do nós, direito.

Ligando-os, o corpo caloso: 3º olho na parte traseira da cabeça, nuca superior.

Mas ele não é um órgão externo como os olhos físicos: é o olho da mente, interior, DIALÓGICO, com a consciência da heterogeneidade, da duplicidade das coisas: seu caráter cinzento.

Liev Tolstói: "Toda a diversidade, todo o encanto, toda a beleza da vida é feita de sombra e de luz."

Safo: "E o amor nascia de sua beleza."

- Décio Pignatari: "Mas aí entra o problema da ciência": pensar com o lado esquerdo que ganha forma na mão direita levantada acima da cabeça.

Mas aí percebem o erro, e levam essa mão não mais ao canto superior direito, mas ao coração.

Como quem diz:

"I'm so sorry."

"Eu sinto muito."

Mas se o que vier depois não for uma acolhida radicalmente generosa,

Levar a mão ao coração equivalerá a lavar as mãos.

(No sentido metafórico, é claro.)

terça-feira, 10 de agosto de 2021

Marielle Franco e Carlos Marighella: presentes!


 

[...]

Cada página, uma vitória.

Quem cozinhava o banquete?

A cada dez anos um grande homem.

Quem pagava a conta?

 

Tantas histórias.

Tantas questões. (BRECHT, 2012, p. 166)


A elaboração teórica do campo dos Estudos Culturais visa a compreensão da cultura não mais como algo apartado de uma vida cotidiana e material, como um cultivo de valores espirituais a ser preservado por uma elite intelectual: objetiva-se o entendimento das disputas político-econômicas no campo da produção de significados socialmente partilhados. Comentando a noção de Raymond Williams sobre uma “cultura em comum”, Maria Elisa Cevasco (2003) afirma que

 

O exemplo mais claro da dependência da criação de processos que são comuns à toda a sociedade é a linguagem; ela é uma prática social cujo significado é estendido e aprofundado por certos indivíduos, cuja criatividade depende do grupo social para sua inteligibilidade (CEVASCO, 2003, p. 20).

 

Tendo como ponto de apoio essa questão da produção de uma linguagem partilhada socialmente, coletivamente, e noticiada de uma maneira inédita ao considerarmos o que vem sendo o desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação na era das mídias digitais, propomos uma elaboração crítica a respeito de um acontecimento da história recente brasileira. Uma organização autodenominada “Revolução Periférica” ateou fogo à estátua do bandeirante Borba Gato, na cidade de São Paulo, no dia 24 de julho de 2021[1]; nesse dia estavam ocorrendo, ao redor de todo o Brasil, manifestações contra o governo do presidente Jair Bolsonaro. Seis dias depois, é veiculada a notícia de que haviam sido depredados um mural com a imagem da vereadora Marielle Franco, assassinada em março de 2018, e um monumento em homenagem a Carlos Marighella, guerrilheiro que atuava contra o regime militar brasileiro, assassinado em 1969[2]. Os dizeres pichados no mural, “666. Viva Borba Gato”, associam diretamente o segundo acontecimento como resposta ao primeiro; a mesma tinta vermelha espalhada sobre a imagem do rosto de Marielle Franco e sobre o monumento em homenagem a Marighella une os dois símbolos sob o mesmo signo da resposta violenta.

O que nos intrigou foi a precisão da resposta: ambas manifestações iconoclastas denotam uma consciência aguda das ideias que os três ícones sustentavam. De um lado, Borba Gato representando a história dos vencedores: o trecho do poema de Brecht que trazemos como epígrafe situa-nos ao lado de quem questiona a posição de privilégio histórico desses “grandes homens”. Compreendemos o ataque à estátua de Borba Gato como uma reverberação das manifestações ocorridas na Europa e nos Estados Unidos em decorrência do assassinato de George Floyd, homem negro estadunidense, ocorrido em 25 de maio de 2020. Doze dias depois, na cidade de Bristol, Inglaterra, a estátua de um comerciante de pessoas negras escravizadas foi derrubada e atirada ao mar, em um ato de protesto contra o racismo e a violência policial que vitimaram Floyd. O fluxo digital de informações permitiu que as notícias desses acontecimentos chegassem ao Brasil muito rapidamente, e a concretização de ato semelhante, aqui, atesta uma consciência política atenta e em movimento, ao contrário do que o senso comum poderia supor.

No ensaio intitulado “As raízes negras da liberdade”, Nikole Hannah-Jones (2020) disserta sobre a participação das pessoas negras na construção dos Estados Unidos como “a mais rica e mais poderosa nação do mundo”, abarcando as contribuições da mão de obra negra trabalhadora, bem como suas produções intelectuais e seus movimentos de resistência. À parte o que seu discurso preserva de um orgulho patriótico que serve a propósitos neoimperialistas, a autora faz um percurso histórico que ressalta a relevância dos negros estadunidenses para o estabelecimento do país como uma democracia. Dentre as contradições e violências desse processo, Hannah-Jones menciona a perseguição aos homens negros veteranos da Segunda Guerra Mundial – uma vez que esses homens tivessem vestido uma farda e defendido a bandeira estadunidense, eles se sentiriam compelidos a lutar pelo reconhecimento de sua participação na democracia estadunidense. O que se obteve foi bem diferente do reconhecimento esperado:

 

No auge do terror racial neste país, os norte-americanos negros não foram apenas assassinados, mas também castrados, queimados vivos e esquartejados, com partes de seus corpos exibidas nas vitrines de lojas. Essa violência tinha como objetivo aterrorizar e controlar as pessoas negras, e, talvez igualmente importante, servia como um bálsamo psicológico para a supremacia branca: seres humanos não seriam tratados dessa forma (HANNAH-JONES, 2020, não paginado).

 

Isabel Wilkerson (2020), no ensaio “A raça é a pele, e a casta, o osso”, evoca o caso do estrangulamento de George Floyd para desenvolver sua crítica ao sistema hierárquico que sustenta a desigualdade racial estadunidense, em consonância com o que Hannah-Jones apresenta em seu ensaio através de um apanhado histórico. O tratamento dispensado a Floyd reverbera essa antiga exibição pública da violência contra as pessoas negras como forma de, simultaneamente, aterrorizá-las e confortar as pessoas brancas: a demonstração da supremacia branca serve à manutenção das “castas” às quais a autora se refere.

No caso brasileiro que aqui evocamos é possível observar muitas semelhanças quanto às demonstrações de poder que buscam manter uma ordem vigente. Percebemos um movimento duplo de repressão às marcações de posicionamento dos representantes da “história dos vencidos”: por um lado, o ataque à memória de Marielle Franco e Carlos Marighella, duas pessoas negras que atuaram politicamente e foram brutalmente reprimidas por regimes brasileiros de tendência totalitária. Por outro lado, temos, ainda, a prisão de Paulo Galo, líder do movimento dos “entregadores antifascistas”, que vem buscando a organização e a politização dos trabalhadores que prestam serviços a aplicativos como o Ifood, o Rappi e o Uber. Paulo Galo assumiu a autoria do incêndio à estátua de Borba Gato junto a outros integrantes da Revolução Periférica e, a despeito de o Superior Tribunal de Justiça já haver determinado sua soltura, Paulo permanece preso.

Walter Benjamin, em suas teses “Sobre o conceito de história”, afirma que “O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que tampouco os mortos estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.” (BENJAMIN, 2012, p. 244, grifo do autor). Carlos Marighella, Marielle Franco e Paulo Galo fazem parte desses historiadores que não deixam de resistir a um inimigo que não tem cessado de vencer.

Em seu último discurso, por ocasião das celebrações do 8 de março, enquanto trazia denúncias de violências cometidas pelo Estado contra as populações marginalizadas, Marielle Franco brada: “Não serei interrompida”[3]. Segundo Anne Carson (2020), no ensaio “O gênero do som”:

 

Colocar uma porta na boca das mulheres tem sido um importante projeto da cultura patriarcal desde a Antiguidade até os dias presentes. Sua estratégia principal é criar uma associação ideológica do som produzido pelas mulheres com o monstruoso, a desordem e a morte (CARSON, 2020, p. 117).

Vozes como a de Marielle Franco, que se insurgem na luta contra o racismo, a misoginia e o patriarcado, são silenciadas por representarem uma “desordem” em relação à história dos “grandes homens”.  George Packer, no ensaio “Os inimigos da livre expressão”, aponta: “Como o Charlie Hebdo demonstrou, a livre expressão, que constitui a base do trabalho de qualquer escritor, pode ser um osso muito duro de roer” (PACKER, 2020, p. 263). O medo oblitera a livre expressão, elemento essencial à construção de uma democracia mais sonhada do que vivida; haverá sempre quem se disponha a roer esse osso?



[3] Indicamos, aqui, a referência do texto integral de seu discurso, disponível em: http://mail.camara.rj.gov.br/APL/Legislativos/discvot.nsf/5d50d39bd976391b83256536006a2502/cd266fdef87ea5fc8325824a006d079d?OpenDocument (acesso em 07 ago. 2021). Acrescentamos também a referência a um vídeo que registra esse discurso, uma vez que ele guarda vestígios da potência de sua voz, que continua ecoando mesmo depois de sua autora ter sido silenciada: https://www.youtube.com/watch?v=5PwJHGBoxTM  (acesso em 07 ago. 2021).