segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

♂&♀ em suas travessias

sob o signo de Saturno os amantes cósmicos se encontram:
a aridez da divina cabra ensina sobre
os obstáculos a transpor
os desafios a assumir
o trabalho de construção dele,
ele mesmo, esse ente magnífico, assustador, indefinível,
o Amor.

no signo de Urano os amantes cósmicos ingressam
rumo ao imponderável disruptivo.
mãos dadas: uma decidida, outra reticente,
uma firme, outra trêmula...
um coração transbordando coragem,
fazendo de sua ferida aberta a chave para a regeneração
- o outro, mistério.

domingo, 27 de fevereiro de 2022

queer love

amar o corpo e o que evola de seus poros:
trânsitos, passagens, diferentes tipos de substâncias,
a natureza dupla da luz - onda e partícula.

amar o meu corpo como nunca dantes navegado:
décadas de angústia, espera e auto-flagelo
convertidas em um súbito momento de alegria.

amar o seu corpo como antes e como nunca:
reencontrando-nos nas suas marcas, nos seus ângulos,
nos nossos toques, no que o encontro tem de nós.

(alguns nós permanecem atados)

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

carne viva

ando por aí em carne viva
com a resiliência de uma erva daninha.

minha consciência vaga no abismo
- a casquinha da crosta terrestre é nada além de
um enorme fio de navalha
em cima do qual sobrevivemos, todos,
enquanto contemplamos as vastidões universais

- vertigem - 

até que os músculos e nervos
se dissolvam em massa amorfa,
de volta ao estado primeiro,
poeira cósmica sem autoconsciência:
a reconquista da paz.


até lá: é guerra, é guerra


e a saudade da inocência.


domingo, 6 de fevereiro de 2022

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

o lamento da sereia cósmica

[notas para um desenho futuro]

os nós que ela desata perpassam sua pele, 
braços costurados como uma boneca feita de retalhos:
como se os retalhos que a cobrissem fossem ela mesma, mas não são.

sua aparência é a de um arremedo de sereia,
um monstro frankensteiniano, toda perfurada e coberta de camadas de medo.

tiradas essas camadas, restam suas delicadas carnes cósmicas,
e a cauda com as diáfanas nadadeiras:

perfuradas, sangrando pus infeccionado,
retalhadas: mas vivas,
com uma quente vida vermelha pulsando:
sua alma é uma rosa de inúmeras pétalas.

enquanto desata os nós, enquanto rompe as costuras,
abrindo espaço para sua desejada regeneração,
a sereia canta.

clariceana

eu quero viver a espessa imanência do agora.

da minha morte futura não sei, propriamente. 
mas os dias passam, e eu aprendi a divisar seus efeitos.
vejo-me, vejo-os envelhecendo. eu vejo.
o que eu temia,
o que Ana da Grécia temia
- os saturninos efeitos -, 
eu os tenho tragicamente entranhados
em minhas retinas ainda não tão fatigadas.

meu corpo é a testemunha mais imediata.
mas da lâmina ceifadora do deus do Tempo,
nada, nada, nada escapa.

eu quero viver a espessa imanência do agora.
deixar para trás os infantis medos de que o mundo não é pra mim,
de que eu sou inadequada,
emocional demais,
incapaz para aquilo que me chama com ardor
- desde sempre, memórias tão remotas -,
e todas as outras vozes que ecoam aqui dentro
enquanto (finjo que) tento
(enquanto não me atrevo a)
encarar a face nefasta, espessa, imanente
do agora.

nascer para a eterna novidade do mundo exige uma coragem
incompatível com a carga de medos infantis tão bem costurados nas fibras tênues do meu psiquismo.

com a paciência da desatadora de nós, lá vou eu,
em cada sonho, em cada sessão, em cada página,
em cada toque de cada letra deste teclado,
desbravar o inóspito infinito do fundo da minha alma
- onde tanta tralha foi depositada
por julgarem ser "um espaço vazio"
quando na verdade é um oceano imenso,
profundo, abissal,
crivado de flora e fauna delicadas e complexas,
em que mergulho toda noite
e volto encharcada, pesada, à superfície,
tentando dar algum relato dessa solidão infinita que é a experiência de existir.

(desatar nós, fazer laços)