sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Para a sua chegada;



Meu pálido rosto de monja, antes absorto no labor, desperta e emociona-se levemente por um momento – duas nascentes de rios rolam de meus olhos para desaguar em minha boca, um pacífico oceano. Vasto, profundo, de uma riquíssima fauna de sentimentos. Ligeira nostalgia brota de minha alma, para encontrar com as outras sensações e confortar-se no esquecimento mudo e misterioso. Nenhuma saudade mais poderia ter lugar em mim.

Cuido do meu templo com gestos leves, simbólicos, muito vivos; quero neles depositar todo o meu esmero para com os Deuses. Eles sabem que, em meu ritual de purificação, estou preparando-me interna e externamente para a chegada de meu irmão, minha alma conjunta. Emociono-me, pois, com a honra de poder servir àquele que me completa.

O sentir que me enevoa os olhos e se confunde em minha boca é um reflexo de toda a esperança, calma e aflita, que senti por todo o tempo em que o esperei. Silenciosa, guardei-me inteiramente para o momento em que o teria, mais uma vez, junto a mim.

Meu monge vem visitar-me, e não há nada mais revigorante do que consagrar o lar que o acolherá. Quero que ele respire livre de qualquer vibração negativa; quero que ele se sinta abraçado por todo o Universo quando estiver aqui.

Poli cada objeto para dar-lhes mais brilho; perfumei cada canto com um aroma doce e fresco, como o que a chuva dá aos campos floridos. Acendi sete velas; três no altar principal, e quatro no degrau abaixo. Em cada pequena mesa disposta pelo templo, abri tecidos alvos e acendi velas sustentadas por dourados castiçais barrocos. As cortinas estavam limpas, guardando as janelas e os adornos laterais em sua sombra azulada. Estava purificado o descanso para a sua alma.

Em um quarto à parte, preparei para ele um leito largo, todo forrado de linho branco. Ao seu pé, arranjei lírios róseos, e chinelos de algodão. Limpei cuidadosamente a lareira, e em um balde prateado deixei um pouco de lenha. Na mesa de cabeceira, uma toalha rendada pendia levemente; depositei nela uma bandeja, deixei água fresca e um copo de cristal. Na prateleira, arrumei alguns livros e um castiçal maior; com uma reverência, fechei a porta do quarto. Estava purificado o descanso para seu corpo.

Ele chegará hoje à noite. Ajoelhei-me perante o altar, e levei minhas palavras sagradas aos Deuses – roguei a eles que fizessem do nosso reencontro uma harmoniosa cerimônia. Que tudo acontecesse como fosse da divina vontade, e que esta fosse bela e justa. Emocionei-me uma vez mais; cobri meu rosto com véus fluidos e, sentando-me em meditação, aguardei pelo momento de sua chegada.

Passaram-se duas horas. Uma chuva fina começou a cair; ouvi um leve ruído vir da porta principal. Soou um sino brando, e minha alma encheu-se do mais puro júbilo – meu monge havia chegado.

Abri a porta; seus olhos brilhavam, e uma pequena lágrima desceu de seu olho direito. Enfim, juntos novamente. Reverenciamos os Deuses e, tomando suas mãos nas minhas, entramos. Fizemos uma prece, e recolhemo-nos à sala adjacente. Lá chegando, abraçamo-nos sutilmente, em um calor que anulava a densa chuva que se formara. Ele afastou com delicadeza meus véus, e encostou seus lábios frios em minha face; quando recuou, ergui minhas mãos pálidas e toquei seu rosto. Subitamente confortado, fechou seus grandes olhos azuis - pareceu-me que, naquele momento, a sala perdia um pouco de sua luz. Pedaço de céu havia naqueles olhos sagrados! Convidei-o a sentar perto da grande lareira; ele acomodou-se numa poltrona e ajoelhei-me aos seus pés, deitando minha cabeça em seu colo. Ele afagou-me cabelos com tanto cuidado que seus dedos pareciam ser feitos de água.

Reencontrados, sentimo-nos em um conforto transcendente. Eu não precisaria de qualquer outro descanso; ele estava tranqüilo e feliz ao meu lado. Por horas e horas, em silêncio, aquietamos as saudades que nos agitavam, e nem nos demos conta quando nossos corpos adormeceram. Nossas almas já estavam noutro plano, passeando pelos campos arquetípicos, respirando a Natureza ideal. Enfim, juntos novamente. Esse é o Amor que nos inspirou e que nos há de inspirar a alma, por toda a eternidade.

domingo, 19 de outubro de 2008

Satur[n]days;




Hoje chove; é um dia triste. Pesado, com um pesar infinito. Estamos em plena primavera e chove vigorosamente; isso derrota qualquer vigor humano. Acho que o Sol e os espíritos da Primavera estão adormecidos – mas isso não parece deveras estranho? O que será que as flores, ao se esconderem, querem nos revelar? Queria suas cores para colorir meu interior cinzento.


Há um vento frio, cortante, que entra pela fresta da porta e enregela meus pés. Logo eu penso no Sol que há em mim; penso em como ele deveria estar aceso, iluminando-me e aquecendo-me por dentro... Mas acho que um eclipse me acomete. Saturno está cobrindo minha fonte de energia – sinto, então, ainda mais frio. O Deus do tempo rege meus ciclos, e determina o inverno que há de acontecer em mim.


A escola literária romântica me é tão concreta que a Natureza, de fato, exprime meu estado emocional-sentimental. Se eu precisasse, nesse momento, descrever a paisagem que se abre à minha janela, retrataria um dia cinza, com uma névoa pairando no ar, daquelas que congelam todos os ânimos... Uma chuva persistente, ora forte, ora fraca, que faz com que as minhas energias oscilem de acordo com o seu movimento. Prédios apagados – artificiais. Fosse essa uma paisagem completamente natural, creio que o meu inverno seria mais brando... “Fugere Urbem.” Hei de fugir, quando estiver pronta para florescer.


Mas minha alma... Ela está incólume a essas variações literárias. Ela serve aos Deuses, e a eles obedece – por isso o seu Sol, apesar de eclipsado, permanece em um brilho latente, como uma esperança da nova primavera que virá. Deixo meus outros corpos flutuarem nessas variações do mundo manifestado, mas não ferirei minha alma com esses efeitos vãos. Honrarei os Deuses, por mais que Plutão e Saturno estejam tentando ofuscar a chama solar que me aquece. Não serão, pois, justos ao lançarem-me esse inverno compulsório?


{Logo saberei sobre os resultados dessa intervenção dos Deuses.}












~[continua.]

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Reflexões sob uma chuva de verão;


A previsibilidade é algo que já começa a me incomodar. Ora, eu não preciso ser assim, absurdamente sentimental, a todo momento... Porém, do que mais falar?

Há a vida. O amor é um dos seus componentes - o componente prioritário para mim, posso dizer, apesar de todos os contratempos pelos quais passei em função dele.

Mas há a morte, há a riqueza, a pobreza, a alma, o tempo... E os múltiplos motes que eles geram.

E dizer sobre eles é tão vão! Não posso confirmá-los profundamente em mim e expressá-los com relativa importância, porque não os vivi em seus extremos, tal como - penso que - fiz com o amor. Na verdade, não quero viver os extremos de outras coisas. Bastam-me os terrores que a exacerbação do amor gera em mim.

Mas a diversidade criativa bate à minha porta e me cobra outros dizeres. "Chega de todo esse sentimentalismo inútil", ela me diz... Com uma petulância terrível de dizer que meus escritos são inúteis! E é só porque isso fere o meu orgulho que dou atenção a essa reprimenda da Musa. Porque, bem no fundo, quase renegado, tenho um sentimento que me diz periodicamente: "você precisa sair deste caminho. A vida não é feita só do amor e suas ilusões, opostos e fracassos. Não dá para viver alimentado apenas por loucuras e obsessões."

Então acredito que há muito a ser vivido, que estou presa à sensações muito restritas e surreais. Quero me surpreender mais com a vida.

Viver não é algo completamente imprevisível?

O pensamento pode alçar vôos maiores, para além dessas divagações primárias.

Pois então, antes que eu diga mais alguma coisa, dê-me um tempo para viver.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Tristeza, filha da minha alma.


Alguns dias de péssimo humor e a vontade de tomar mais uma dose de conhaque. “Pare agora”, disseram-me; mas há uma dor que pulsa. Ela vive, cresce e me domina – alguns dias de péssimo humor, eu disse. Não é só isso. São anos e mais anos de dor, e nem todo o conhaque do mundo pode entorpecer minha mente e me fazer esquecer a criatura que estou gestando como a uma criança – a tristeza. Filha da minha alma.

“Pare agora!”, disseram-me energicamente. Larguei-me em cima da mesa do bar e não vi mais nada. Sei que meus olhos estavam encharcados de lágrimas, meu corpo tremia e as imagens transformaram-se em um borrão confuso e amedrontador. Não havia mais cigarros; as garrafas estavam espalhadas pelo chão, derramando o meu remédio para matar a realidade. “Que desperdício”, pensei, um tanto quanto inconscientemente. Na verdade, eu já não sabia bem o que estava me acontecendo... “Quem vai pagar a conta?” eu perguntei para algum estranho. Ouvi uma voz acolhedora: “Não se preocupe, eu vou te levar para casa.”

“Eu não quero ser levada para casa! Deixe-me aqui, apodrecendo em meio à miséria da alma humana, deixe-me matar o restante da humanidade que há em mim!”, eu tentei gritar; só consegui balbuciar palavras sem sentido. Já estava dentro de algum carro – ou algum veículo que se movimentava rapidamente. Não estava ciente dos arredores; eu não estive ciente de nada nesses últimos tempos. Só queria morrer, mas não era suficientemente corajosa para tomar alguma atitude mais concreta.

A tristeza... Condenado fruto da união entre o Amor e a minha alma. Ela estava tomando proporções insuportáveis; sugava todas as minhas energias. Tirava-me toda a vitalidade... E como abortar esse ser? Afinal, eu não sabia se realmente queria me libertar dele – era a última ligação que eu tinha com o meu passado, minhas saudosas desventuras de outrora... Que se tornaram meu fardo maligno. Essa contradição girava na minha mente, pisando em minha racionalidade, não me deixando avaliar todos os prós, contras e afins da situação. Enquanto não me iluminava uma resolução qualquer, a tristeza crescia e eu agonizava lentamente.

Não vi os dias passarem. Três dias, para ser mais exata – foi o que ele me contou. Ele... O dono do carro e da voz acolhedora. Charles, ele se chamava. Contou-me tudo o que me havia ocorrido: o bar, as garrafas de conhaque, os cigarros, as palavras desesperadas, meu súbito desmaio, meu sono pesado, a suspeita de eu ter morrido... “Eu teria ficado grata se isso tivesse acontecido”, eu disse secamente. Ele me olhou com uns olhos chorosos, cheios de piedade e compreensão, que estavam me deixando realmente nervosa e confusa. “É hora de você ir para casa”, ele me disse, mas algo em mim gritava que eu não poderia ficar sozinha. Que algo de muito ruim iria acontecer – só uma intuição. E como há tempos eu ignoro minha intuição, resolvi me recompor; agradeci sincera e modestamente àquele a quem eu devia minha vida, virei-lhe as costas e fui embora. Ouvi-o dizer: “se precisar de mim, me procure. Você tem meu telefone na sua bolsa”, e eu o ignorei. Não sei explicar o porquê de ter agido assim. Apesar de todas as amarguras, eu nunca havia deixado de ser no mínimo educada, com quem quer que fosse. Mas eu o desprezei, com uma absurda convicção de que ele me faria mal. De onde viera esse sentimento doentio?

Pensei logo na tristeza que ainda me pesava terrivelmente. Entrei em um bar próximo, comprei um cigarro e fui a pé para casa. Observei em uma distração comum as espirais que a fumaça do cigarro desenhava no ar – pensei em Charles. Quem era ele? Por que não me deixou definhar na minha desejada miséria? Eu deveria tentar me reconstituir? Eu deveria matar as lembranças da minha desdita? A vida estava tentando me mostrar algo? Mas eu não acreditava mais na vida!

Minha cabeça doía. Sentia-me fraca, como se o peso de um mundo inteiro tivesse desabado em cima de mim; e talvez isso realmente tenha acontecido. O peso do mundo das minhas idéias e fantasias, repentinamente, despencou sobre mim, esmagando meus sonhos e esperanças. Restavam-me agora o arrependimento – de ter sido amarga com quem não merecia – e a leve fumaça, que se desfazia em suas espirais como se desfazia minha vontade de planejar um futuro.

Ainda distraída, pisei molemente no asfalto para atravessar a rua. Minhas pernas fraquejaram e eu caí. O mundo apagou-se, e novamente me foi imposto um sono profundo; tentativa louca do meu corpo de me fazer regenerar-me. Mas o que o meu físico não sabia é que já era tarde demais. Eu não tinha mais salvação, minha alma estava por um fio.

Acordei com a cabeça pulsando. “A tristeza está crescendo...”, foi a primeira coisa que consegui pensar. Quando realmente despertei, vi-me toda coberta de fios, uma máquina apitando e piscando. Um homem de branco anotando qualquer coisa em uma prancheta, e um rosto familiar – Charles. Ele pôs a mão no meu rosto, dizendo docemente: “Eu sabia que você não conseguiria ir muito longe.” Comecei a chorar desesperadamente. “O que está acontecendo comigo, afinal? Alguém pode me explicar?” eu gritei, mas Charles pediu que eu me acalmasse. “Tudo vai ficar bem, eu prometo.” “Não, eu não sou digna de que tudo fique bem, não sou digna de que você cuide de mim, eu deveria estar caída por aí; a sarjeta é o meu lar, enquanto a vida não me doa algum piedoso esquife.” Eu não tinha forças nem mesmo para chorar. Minha boca calou-se em uma mudez fraca. Meus olhos desmanchavam-se em lágrimas descontroladas... O médico veio com uma seringa, injetou um calmante qualquer no soro que me alimentava, e a última coisa que vi foi o rosto ligeiramente perturbado de Charles.

Mais um sono involuntário. Eu estava cansada de ser tratada, pela vida, como uma idiota; sentia-me tão estúpida! Obrigavam-me o tempo todo a dormir, pediam-me calma, e o que eu mais queria era desaparecer...

Nesse último “descanso” a que fui submetida tive um pesadelo terrível. Em uma retrospectiva macabra, vi dançarem em um ritmo loucamente rápido e contraditoriamente nítido todos os fatos que geraram meu estado de não-vida. Em uma pausa forçada, explico a tristeza que estou gestando, do momento de sua concepção até o seu estágio atual.

***

Há quatro anos minha mente é perturbada por um ser celeste. Conheci-o casualmente, e em pouco tempo ele se tornou a razão de minha existência – meu doce príncipe, como gostava de chamá-lo. A concretização do Amor, digno da idolatria mais apaixonada. Perdi-me em suas palavras, tão cheias de sonhos, esperanças, flores e romantismos; encantei-me com toda a vida que ele transmitia. Enquanto ele se fazia meu motivo de viver, secretamente eu arquitetava planos para quando ele soubesse o quanto eu o amava – como nos amaríamos santamente, como seríamos felizes! Nosso lar distante, em uma colina gelada de algum país esquecido... Não haveria mais nada além do meu doce príncipe a me acompanhar, o céu e as estrelas nos iluminando e protegendo, e o horizonte, para que sonhássemos com o progresso de nossas almas... Unidos em um laço consagrado pela eternidade do Universo. Eu me fiz uma noiva pura, resguardando os sentimentos mais nobres para doá-los todos a esse Amor ímpar. Eu sabia sorrir, e sorria freqüentemente, na inocência do meu imaginar. “Quem poderia negar esse meu amor desmedido?” Eu tinha tantas esperanças! Media-as na amplitude do amor que eu guardava por ele, meu príncipe, meu poeta... Mas bastou que eu dissesse concretamente “eu te amo”, para que ele me rechaçasse cruelmente, como se eu fosse um animal desprezível e asqueroso, como se eu pudesse macular sua nobreza... Como eu sofri, como eu sofro! Tornei-me amarga, fechada e sombria. Meus véus de noiva pura foram rasgados, fui despida e exposta às mediocridades da vida. Incorporei todos os vícios da alma humana, desejando que todo esse horror matasse os últimos resquícios do nobre amor que um dia eu possuí – nunca mais queria me lembrar dos efeitos que o Amor me causou, desde o primeiro momento em que decidi fazê-lo real. A fusão de todos esses elementos – a pureza de outrora, a desilusão amarga, o ódio resultante e minha inconsciente centelha de esperança - gerou a tristeza que hoje trago comigo. Filha da minha alma: assim a nomeei, pois minha alma carrega consigo as vivas contradições que, sintetizadas, deram vida a esse sentimento insano. Uma tristeza que já não possui dimensões, que engloba minha existência e a reduz a uma incômoda pedra prostrada no meio da estrada da vida.

Na minha letargia completa, vi esses últimos quatro anos desenhados no quadro da minha lembrança. Doloridos desenhos! Desejei pegar um punhal e rasgar esses quadros, apagar completamente essa composição criada pelos devaneios da minha alma inocente – ah! se eu soubesse o quão amargo seria o meu destino, jamais teria dado asas a um sentimento já fadado à má ventura. Sempre fui tão passional... Deixando meu racionalismo completamente adormecido, condenei todo o restante que me compunha.

***

“Minha vida acabou.” Essas foram as primeiras palavras que eu disse quando acordei. Vi o rosto de Charles me observando com um ar muito sério e preocupado. Levantei-me bruscamente, sentindo todos os fios soltando-se com violência da minha pele; minha cabeça girou e, completamente zonza, ia cair no chão – mas Charles me segurou. Abraçou-me com uma força que há muito eu não sentia em mim mesma; transmitiu-me uma segurança que me deixou ainda mais aflita. Estava tudo escuro, os médicos já haviam ido embora. Silêncio absoluto. Ele segurou meu corpo como se eu fosse uma boneca de pano; eu sentia-me ridícula. Ele me sentou na poltrona macia que se escondia na penumbra de um canto do quarto. “Você deve estar cansada de ficar deitada”, disse com um ar de gracejo. Para tentar me acalmar, eu imaginei. Mas eu sabia que a minha situação não permitia muitas brincadeiras.

“O que está acontecendo comigo?”

“Você não se lembra de nada, não é mesmo? Passei essa última semana cuidando de você. Tão frágil, tão delicada... Eu também quero saber o que está acontecendo com você. Não com a sua saúde, pois estou a par de todos esses detalhes – mais do que você imagina. Mas e sua alma? O que ela carrega? O que está acontecendo com você?”

“Você me questiona com uma familiaridade que me assusta. Quem é você, afinal?”

“Charles é o meu nome, como eu já te disse. O restante não importa.”

“É claro que importa! Estou sob os cuidados de um completo desconhecido, que poderia ter acabado comigo quando quisesse, mas que resolveu, não sei como nem porquê, cuidar para que eu sobrevivesse... O que você quer de mim?”

“Eu quero que você viva, minha querida. Meus zelos têm um fundamento o qual só poderá ser explicado quando você estiver plenamente recuperada; espere, por favor. Acalme-se, confie em mim. Prometo que, quando você não estiver mais correndo perigos sérios, eu te contarei tudo. Mas preciso de sua confiança nesse momento.”

“Minha vontade real era de desaparecer – espero que você saiba disso. Mas se há tanto empenho na manutenção da minha vida, por respeito a você deixo-me ser cuidada.”

“Prometo que você não se arrependerá, minha querida.”

Ele sorriu, estendeu-me os braços e deitou-me novamente no leito do quarto. Eu devia estar louca, por aceitar tão passivamente que um estranho oferecesse sua boa vontade sob justificativas tão pouco palpáveis. Mas eu dormi. Não sonhei, e parece que parte do peso que me esmagava o peito havia sido retirado; com uma sensação sutil de leveza, adormeci por mais alguns dias.

***

Charles estava, enfim, levando-me para a minha casa. Depois de o médico ter me explicado o que me acometera – meu organismo era realmente frágil para bebidas alcoólicas em excesso –, receitou-me uma pilha de remédios e mandou-me repousar; eu estava cansada de repousar, para falar a verdade. Mas todos me reprimiram com olhares tão severos que eu acatei imediatamente seus conselhos. Não precisei acertar as contas com o hospital; Charles já havia providenciado tudo. Agora eram as minhas pendências com ele as quais eu deveria acertar – e eu estava muito ansiosa por esse momento. Minha cabeça ainda pesava, mas a curiosidade me rendeu um milagre: eu me distraí, por alguns segundos, da minha implacável tristeza. Mal pude me conter quando Charles começou a dizer:

“Acho que eu te devo explicações, não é mesmo?”

Ao passo que respondi:

“Ainda bem que você não se esqueceu do que havia prometido.”

Ele suspirou. Parou o carro em frente ao meu prédio, abaixou a cabeça e perguntou-me:

“Você prefere que fiquemos aqui, ou quer que eu suba para contar mais calmamente?”

“Vamos subir.” – respondi, ligeiramente aflita.

Não sabia exatamente o porquê de estar confiando nele, mas sabia que não havia motivos para não confiar. Ele transmitia uma calma, uma serenidade que me fazia desvincular-me momentaneamente dos desejos e vícios. Descemos do carro, subimos lentamente as escadas – ele me guiara, segurando-me em cada lance de degraus – e abri a porta do meu apartamento. Entramos, sentamo-nos no sofá e Charles começou a se explicar, em um tom de voz doce e tranqüilo:

“Não sei se você sabe, mas somos vizinhos há quatro anos, desde quando você se mudou para cá. Todos os dias te observo calmamente; quando você sai para o trabalho, quando você volta para casa com um rosto cansado, olhos sempre tão tristes... E sei que você não foi sempre assim. Quando te vi pela primeira vez, você tinha uma alegria radiante, como quem acabara de descobrir o mundo; passados alguns meses, você encobriu-se com uma névoa de luto impossível de dissipar. Meus dias tornaram-se escuros, pois eu não podia enxergar a luz que antes você portava; não posso dizer que estava apaixonado, apesar disso. Você era para mim uma personagem da minha rotina, e compunha a harmonia dos meus dias. Cuidei de cada passo seu, sempre numa preocupação fraternal – queria que você estivesse bem, para que os meus dias voltassem a ser claros. Mas vi você se fechando cada vez mais, sempre muito curvada... Como se o peso da derrota te fizesse sucumbir. Você caminhava com um desânimo perceptível, e eu vivia inquieto, louco por saber qual era o terrível mal que te abatia com tanta violência. Mas nunca me atrevi a me aproximar, por medo de que você se assustasse; eu sempre fui muito sonhador, e não sabia se você me entenderia. Muitos já me chamaram de obsessivo, mas não vejo loucura no meu bem-querer. Espero que você me entenda. Nunca soube o seu nome, e nunca me apeguei a esses detalhes concretos... Porque não os julgava importantes. Mas depois de certo momento, comecei a sentir algo realmente estranho; eu estava transtornado com a sua tristeza. Eu queria, a qualquer custo, curá-la, para te ver sorrindo uma vez mais – percebi que estava apaixonado, enfim. Não sei se eu me recusava a aceitar isso, mas essa certeza confirmou-se em mim com tanto vigor que eu não pude refutá-la. Quando te vi descer, em prantos, para aquele bar imundo, percebi que deveria fazer alguma coisa, pois seria esse um momento decisivo, tanto na sua vida quanto na minha. Esperei para ver até quando você se entregaria ao torpor das bebidas, mesmo que te dissesse ‘pare agora...’ Você não parou. Eu pedi desesperadamente, ‘pare agora!’, e você caiu, completamente derrotada. Foi minha oportunidade de te pegar nos meus braços e cuidar de você, com todo o meu amor, para poder descobrir quais os mistérios que a sua tristeza guardava. Estamos aqui porque eu te amei, silenciosamente, e te amo agora, concretamente. Quando li seu nome – Isabella – na sua carteira de identidade, para que pudesse criar pretextos para te acompanhar nos processos hospitalares, inundou-me uma vontade de concretizar os meus sonhos. Talvez sem esperanças – como suponho que sejam os seus –, mas nunca ignorados. Permaneci ao seu lado a todo instante, com a promessa de que permaneceria firme em meus ideais, mesmo que você não pudesse corresponder ao meu amor. Meu desejo supremo era o de te ver sorrir novamente, e eu jamais desistirei disso.”

Fiquei sem reação. Meus olhos arregalaram-se absurdamente; como eu poderia imaginar isso? Senti vergonha da minha fraqueza ao ver que havia um sentimento mais forte e, conseqüentemente, mais nobre do que aquele que outrora senti. Tive que confessar-me, afinal...

“Charles, eu estou sem palavras. Não sei se posso te explicar sobre o que eu sinto, sobre essa tristeza que me acompanha há tanto tempo... Não sei como posso entender a devoção do seu amor por mim. Assusta-me, eu confesso; mas conforta-me inexplicavelmente. Durante esses terríveis dias em que permaneci letárgica e inconsciente, senti uma segurança, uma proteção que eu pensei não mais existir. Para o presente momento, só posso agradecer todo o bem que você me fez, e ainda me faz.”

“Minha querida, essas suas palavras são sagradas para mim. Sentir sua doçura, antes tão disfarçada, renova minhas esperanças; permita-me estar com você. Creio que, juntos, conheceremo-nos melhor, e saberemos curar nossas chagas.”

***

Aceitei o convite de Charles. Somos amigos, puros irmãos de alma – confidentes. Contei a ele sobre todo o meu tormento, e abortei a tristeza da minha alma; aos poucos estou recuperando minha vitalidade. Graças a um Amor que eu não imaginei que existiria; e não é que eu deveria acreditar na vida, apesar de todos os seus dissabores? Meu doce príncipe já não sabe mais da minha existência, e aos poucos vou apagando-o de mim; hoje ele é, simplesmente, Adam. E eu sou Isabella novamente, não uma simples mulher carregada de dor, ou uma fraca, desiludida, entregue às mediocridades da vida. Abri minha alma a Charles, e posso dizer que ele a conhece em cada peculiaridade. E sinto que o conheço também, de forma que nos amamos com a plenitude de um sentimento benéfico e harmonioso. Não sei a que ponto isso há de chegar; mas creio que nada poderia ter me transformado tão delicada e profundamente como fez o Amor calado que cuida, sempre à espreita, esperando o momento certo para nos salvar das fraquezas com que a vida nos prova. Sempre há a mão do Amor em tudo o que nos circunda, por mais desacreditados que estejamos. Essa será, para sempre, minha certeza e esperança.


segunda-feira, 6 de outubro de 2008

More than words;


[Só espero não ter falado excessiva e imprudentemente...]



My sweet prince,


Como dizer da falta que você me faz? Sonhar com as suas palavras já não sustentam o meu viver condenado. Sobrevivo assim, caminhando aleatoriamente, contrária ao sol - contrária a qualquer luz, verídica ou simbólica.


Caminho simplesmente, lembrando-me da doçura da sua voz ao dizer-me as palavras amenas que iluminavam minha existência. Mas aos poucos perco minha vitalidade, pois não tenho como revigorar-me. Suas lembranças estão morrendo... Por que você insiste em se ausentar, e me deixar definhar impiedosamente?


O inverno acabou - maldito verão! Os domingos fenecem em um calor cruel, e minha vontade de permanecer respirando acompanha o ritmo fúnebre do crepúsculo; findando, findando... Até que chega a noite, lembro-me de que amanhã é segunda-feira e meu mais supremo desejo de desaparecer se concretiza. Ignoro os afazeres necessários, e entrego-me à louca escrita.

E por que essa minha sensação é tão extrema e irremediável?


Todos os domingos me eram um presente divino: eu tinha você. Sempre ocupado, respondendo-me monossilabicamente... E, ainda assim, tão generoso. As flores desenhadas na luz fria da tela aqueciam-me, confortavam-me de todas as dores. Esquecia-me do domingo, da segunda-feira, do inverno e do verão. Não havia mais nada, apenas as flores e o seu amor. E eu era toda amor; eu sempre fui assim. Mas agora não sei se posso ter tal certeza.


Você desapareceu... E, com você, foi-se todo o amor que me caracterizava. Todos os dias adquiriram os horrores dos domingos e segundas-feiras; não há mais qualquer amenidade fútil que me faça sentir prazer em estar viva. Só há o grande tédio pairando no ar, sufocando-me juntamente com o insustentável calor. Desde que você esqueceu-se de mim, minha vida é um interminável deserto, no qual eu me arrasto, agonizando; não existe uma sombra, um frescor de água límpida, uma flor sequer. Areia, areia, calor intenso nas terríveis manhãs, frio intenso nas soturnas noites. Tédio, agonia. Assim posso resumir-me.


Um dia você me presenteou com uma linda música, que tinha por refrão: "adore me, adore me..." Adivinhe só qual foi meu desvario: aceitei sua proposta. Adorei você com todos os ardores da minha devoção - essa, que por tanto tempo adormeceu no descaso e na total desesperança. Ela despertou ao som das doces notas cantadas pelo piano, pelo violino e pela angelical voz, sinfonia que fortemente lembrava-me a sua voz - a mais bela de todas as sinfonias. "Adore me, adore me..." E eu entreguei-me cegamente a essa adoração, sem prever esta seria uma despedida. Você pediu que eu te amasse uma vez mais, mais do que nunca, para que eu não deixasse morrer o amor em mim, e pudesse suportar a longa espera por você...


Há algum tempo você era o meu convidado permanente; vivia e dançava despreocupado nas variações da minha mente. Era apenas você, senhor de todos os meus pensamentos, meu verdadeiro príncipe. De uma nobreza e uma bondade inquestionáveis... Mas até o seu fantasma fugiu-me - tão sorrateiro! Compulsoriamente deveria contentar-me com o amor puro, sem destino; não havia explicação para todo o amor que eu possuía. Era um sentimento que pulsava incógnito, e me fazia sofrer terrivelmente por não saber o que representava. Eu amava intensamente, e não havia ninguém a receber tal dádiva; você, legítimo dono, fugira de mim sem deixar vestígios. Sem pilares em que se sustentar, o amor em mim começou a morrer, agonizando lenta e continuamente.


Dizem-me sempre sobre dois tipos de deserto: os quentes e os frios. Posso dizer que, com todo o vazio a que o não-amor me condenou, tornei-me uma fusão desses dois extremos: tenho o desconforto e o tédio de um deserto intensamente quente, e a agonia e a tristeza de um deserto intensamente frio. Tornei-me letárgica e insensível. Impossível readquirir a harmonia de outrora; até porque não sei se, diante de tão inóspito meio, o amor voltará a florescer.


Melancolia e desesperança. Posso inclusive confessar a você uma verdade à qual eu pensei que jamais chegaria: eu não sei mais amar. Desaprendi, e defino com uma racionalidade assustadora as causas e conseqüências desse triste fato. Eu, antes tão passional, tornei-me fundamentalmente racional. Fria, rude, ríspida.


Minha imaginação permitiu-me prever a sua reação ao ler estas linhas, quando você porventura voltasse a se mostrar; vi, então, um lindo sorriso desabrochando em sua face enquanto você escreveria, docemente, que eu estava enganada. Que eu jamais deixaria de ser o próprio amor, que toda a minha desesperança fazia parte de um ciclo - que eu vivo um outono, onde as belezas vibrantes aparentemente morrem; o amor em mim seria uma primavera adormecida, e eu deveria ser paciente, pois veria renascer um inimaginável sentimento, tão colorido e reluzente que me faria acreditar que a dor nunca mais seria possível.


E essas asas que permiti à minha imaginação criar não seriam, talvez, tímidos e amedrontados fios de esperança? Mas não quero agarrar-me a essas fragilidades. Permito-me, no ápice da minha ignorante desistência, desfazer-me desses últimos sinais. Estou irrevogavelmente condenada, e não quero e não vou prosseguir com essa loucura de achar que o amor ainda pode ser real, ou verossímil.


My sweet prince, perdoe-me por não ter amado o suficiente. A vastidão abissal do antigo amor que eu cultivava por você foi dizimada pelas garras cruéis da sua irrealidade - sensação impossível de ser negada. Eu tentei, mas não me dou ao luxo de ter qualquer outra esperança. Prosseguirei caminhando contrária à luz, com as terríveis contradições ocupando o vazio da minha alma, sem esperanças de que a sua nobreza venha me harmonizar novamente.