domingo, 4 de dezembro de 2022

sonhar é melhor que viver

uma frustração galopante, velha amiga, me arrebata em seus macios braços
e me leva para a cama, me aninha, e eu não tardo em adormecer.
sete pares de horas - e alguns acréscimos -, meu ser ausente desse plano
maléfico, maldito, em que o futuro é sinistro, o presente é difícil
e o passado, doloroso.

antes fossem apenas os problemas de gênero o que me aflige,
o que nos aflige, todas nós, as que nascemos sob o signo da Terra.
mas são eles, sim, a ponta de uma lança cujo comprimento não importa:
seu poder de destruição está na violência do golpe, na frieza da intenção.

no meu sonho adormecido, em que a aflição se faz presente, mas não machuca
- porque não é real no plano concreto, esse que tenho o prazer de poder ignorar -,
minha casa é um palacete, cheia de perigos iminentes, necessidades de reparos,
mas circundada por uma vegetação fresca, ar limpo, sem o tóxico cheiro
da fumaça produzida por escapamentos antiquados.

as aventuras com o Outro são quase análogas:
revejo amigos queridos, revestidos de memórias dúbias, mas não há ressentimentos
(eis uma palavra estranha, um caleidoscópio de amargores
- e não é como se o amargo fosse sempre um sabor repulsivo,
mas tudo o que é muito peca pelo excesso
e eu não tenho conseguido, nunca, equilibrar esses pratos...).

caminho pela rua de trás de minha antiga casa concreta
- a vertiginosa sobreposição de significantes - 
e nela há uma sequência de portas e janelas
de uma vizinhança sinistra e deslumbrante
como as ruas de Santa Teresa - mas sem as colinas.

entro e saio por essas passagens
colhendo rastros de outras vidas
montando quebra-cabeças orgânicos
não encontrando, é claro, o que eu queria
- mas, ao contrário da vida real,
no meu sonho eu obtenho resposta.

(no lindo mundo da minha imaginação
as pessoas agem como eu espero,
a vida é justa, 
a dor tem cura.

no horrendo mundo da alienação capitalista
compra-se anestesia para a alma
[nem todo mundo pode comprar],
a vida não precisa ser justa,
a dor pode ser ignorada.

um arrepio me percorre por dentro,
ao imaginar o momento em que a panela de pressão vai explodir:
isso não tarda.)

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