sexta-feira, 14 de outubro de 2022

arar a terra sem semeá-la

[deambulações da agonia]

amor é trabalho:
o que fazemos com as superfícies em que metemos nossas mãos?
a escassez do amor não determina sua ausência:
Eros está nos perfumes do mundo,
circulando pela atmosfera.

deixe embriagar-se pelo menos uma vez
e você não terá mais como esquecer.
uma vez visto, não dá pra desver.
uma vez sentido, seu corpo cria memória
- não dá pra desfazer.

é possível passar pela existência sem assimilar o Amor?
tristemente, a resposta é: sim.
quem nunca conseguiu sair de si
e dar o salto rumo ao desconhecido do outro;
quem ficou aprisionado
dentro de altíssimos muros
feitos de medo.

nossas mãos rudes podem deixar rastros de destruição.
nossas mãos suaves por sobre outros relevos
engendram novos mundos
mesmo sem semear a terra:
ará-la com carinho e consideração
pelo simples prazer do ato,
o gozo de um ensaio eterno
sem apresentação final.

dizer à terra: sei de sua potência criadora
mas prefiro os frutos abstratos
que podem surgir de nossas carícias
- o trabalho do amor nunca é indiferente
ou estéril.

não maltratar a terra
porque os quentes afagos
são a única coisa que você espera dela:
você espera algo, afinal.
por que não ter a decência
de tocá-la com cuidado?

amor é trabalho:
por isso, afasta os preguiçosos e indispostos.
por isso, é escasso entre os exauridos.
mas não é impossível, não é impossível.

tenho amor e tenho medo.
o medo trava minha língua
rouba minha respiração
embola minhas pernas.
o amor é esse anseio trêmulo
(ele tem sua forma medonha: a súplica,
a feia irmã-gêmea da sede)
e o pavor constante
de que não haja mais abismos nos quais saltar,
ou de que todos sejam terrivelmente rasos,
ou de que eu permaneça saltando sozinha.

o Amor... esse desconhece o medo:
é a coragem que brota aos borbotões
é supra-lógico 
nota em que se afina a música das esferas
do Universo em que vivemos.

tenho Amor, mas tenho medo
desse amor minúsculo
que me confunde e cega
para o Eros magnânimo e infinito.

meu trabalho, parte dele desperdiço com preguiçosos e indispostos,
porque o Amor e o amor,
por azar ou ironia do destino
decidiram nunca se afinarem de todo em meu peito.
há algo, no entanto, que resiste
e uma ilusão que teima em me atarantar
(insisto em cantar, mesmo desafinada).

que eu aprenda a direcionar os esforços dedicados
a esse amor pequenino - cupido real, porém falso -,
e afague a terra do meu próprio coração esfacelado...
muito mais do que fique devaneando
sobre Eros e tudo o mais
- ou que eu faça de um devaneio prático
a minha utopia erótica selvagem.

(se você não gosta de mim, 
veja só que coisa:
não tem como eu gostar de você.)

(sua idealização de mim
não conta, porque não sou eu.)

(o auto-engano da minha retórica
é o que me cura e salva...)

(as verdades estão sempre a meio caminho.
quero ser feliz, mas também quero estar meio certa.)

(o amor não é um trabalho monetizável
mas a acumulação primitiva de capital
forjou-se sobre bases enganosas
do que seja o Amor
- todo esse engano tem gerado tanta dor...)

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