terça-feira, 25 de março de 2008

O maior bem, Florbela Espanca.

À espreita, ela fixa seu olhar na rua. Há alguns minutos está parada, à janela, como uma cobra que espera o momento certo para atacar sua presa. De repente, eis que surge, tão magnificamente, Alberto.
Ele anda tranqüilamente, todo faceiro, pela calçada florida. Seus olhos de quem acaba de descobrir o mundo iluminam o caminho mais do que o próprio sol da bela tarde de verão. Mãos nos bolsos, sorriso no ar, seus pés estão no chão e sua mente voa. Cumprimenta alguns transeuntes, e entra na lanchonete, como de costume.

Florbela desce lentamente as escadas, e aos poucos se ajeita e constrói em volta de si um dissimulado ar natural, com uma pequena porção de despeito e arrogância. Por dentro, ela é toda amor, fragílima alma enamorada, que grita por atenção e carinho. Sai de seu prédio e anda levemente até a lanchonete; sucos de laranja e pães de queijo costumam ser bem emocionantes. Quase sem querer, senta-se na mesa mais próxima a Alberto.

Ele, em toda a aura envolvente de sua graça natural, acena para Florbela um "oi" cordial. Ah, pobre coração! Seu pensamento voa e suas faces enrubescem, denúncia involuntária de todo o seu amor. Mas não, não podia demonstrar nada - não quer sofrer por ele. Ri desajeitadamente e vira-se, sem retribuir o cumprimento. Alberto estranha tal atitude, mas esquece; termina o lanche e vai trabalhar. Florbela desaba em sua cadeira, e o suco de laranja fica abandonado. Paga o lanche, e corre de volta para casa; termina de desabar em sua mesa. Ataca ferozmente o computador; comecemos, então.

"Este querer-te bem sem me quereres,
Este sofrer por ti constantemente,
Andar atrás de ti sem tu me veres
Faria piedade a toda a gente."

Conseguiu, enfim, o primeiro quarteto. Há dias não conseguia escrever; seus pensamentos estavam deveras bloqueados pelo amor para que conseguisse pensar em qualquer outra coisa que não fosse o belo sorriso de seu amado. Nada mais conseguiria arrancar de seu âmago, a não ser essas desesperadas palavras. Dá continuidade ao seu dia; hoje é sexta-feira, provavelmente pela noite ela sairia. Precisava se divertir.

***

Chega a noite, hora de esquecer as torturas. Florbela encontra com uma amiga e vão, juntas, a um bar no centro da cidade. Música ao vivo nunca é uma má idéia, e um chopp gelado costuma cair bem. Enquanto se distrai com as conversas fúteis, nem se dá conta do que há nos arredores - surpreende-se, pois, ao olhar para o palco.

Lá está Alberto, sempre em seu estado pleno de perfeição. Ouvem-se suspiros pelas mesas; Florbela quase não se contém. Como a vida consegue ser tão cruel? Colocá-lo assim, frente a frente, com um coração que só deseja esquecer seus enganos! A música começa e Florbela entra em transe. Quase não percebe as olhadelas que Alberto eventualmente lhe lançava durante os intervalos.

No fim do show, ela se prepara para ir para casa, afundar sozinha em seus lençóis de desespero e mágoa - mas a noite ainda não acabou. Vai ao balcão pedir o derradeiro chopp, quando sente uma mão suave tocar-lhe os ombros. É Alberto, iluminando sua face com o sorriso mais poeticamente indescritível. Em seus lábios, porém, não existe a provável sinceridade do seu límpido olhar. Sua voz melodiosa começa a enfeitiçar Florbela:

"É bom encontrá-la, não imaginei que a veria além da rotina..." - seus olhos brilham sedutoramente.
"Eu também não esperava te encontrar aqui." - desvia o olhar e ri, meio sem graça.
"Sabe que há muito tempo quero falar com você?"
Silêncio.
Ele toca suavemente seu rosto, e a beija com um ardor contido. Florbela fica estática, sem reação.
"Espero ver você novamente." - pisca descompromissadamente, e vai arrumar o restante do equipamento.

Florbela, pálida como quem viu algum fantasma, pega sua amiga pelo braço e sai correndo. Mal podia acreditar no que acaba de acontecer! Mas percebe ter esquecido seu casaco na mesa, e volta rapidamente para buscá-lo.
Vê, então, Alberto, beijando outra mulher, ambos sorridentes, com expressões constrangedoras de se perceber. A felicidade real não costuma demorar mais do que alguns segundos fugazes. Volta para casa, desolada.

***

As horas passam. Ela continua de olhos abertos, envolta por almofadas e cobertores, com a televisão ligada e muda, e a mente fora de ar. A madrugada silenciosa a consome e seus pensamentos gritam em sua cabeça. Sem ânimo para sonhar, ela se arrasta até o computador, e suas sofridas palavras a machucam quando se concretizam na tela brilhante:

"Mesmo a beijar-me a tua boca mente...
Quantos sangrentos beijos de mulheres
Poisa na minha a tua boca ardente,
E quanto engano nos seus vãos dizeres! ..."

Volta para a cama, e adormece, enfim. Ao menos não precisa acordar cedo no dia seguinte.

***

Amanhece um dia escuro e estranho. Florbela abre involuntariamente os olhos; acorda cansada, devido à noite de turbulentos pesadelos. Gargalhadas de escárnio ecoam ainda na sua mente, irreverências e deboches a assombram, impedindo-a de querer sair de casa. É a expectativa da humilhação que a desmotiva a querer mover-se. A chuva começa a cair pesadamente lá fora; cinza. Sem faróis, sem brilhos de sol, de lua ou de olhares.
Sua fome desapareceu. Seus braços estão frios, e abraçam a solidão e o nada como se recebessem um velho amigo. Seus pés arrastam-se pela casa, dos livros para a televisão, da televisão para os livros. O consolo da vida e do sentimento alheios enganam rapidamente seus sentidos, mas logo ela volta a padecer pelas lembranças. Como tudo pôde se transformar assim, tão completamente, em uma única noite?

O telefone toca de repente; um som diferente, para quebrar a monotonia da chuva. É uma voz indefinida, chamando-a para sair. Antes que ela pudesse perguntar conscientemente quem estava falando, a ligação cai. E assim o dia corre: o telefone toca inúmeras vezes, com vozes e mais vozes a chamando para o convívio, para a alegria fraterna. Vários amigos insistentemente tentaram, em vão, tirá-la de casa, mas nada faria com que ela investisse em algum contato externo. Estava cansada demais das pessoas para que conseguisse suportar mais e mais aborrecimentos. Por fim, tirou o telefone da tomada.

Abre a janela para observar a chuva, desejando que a água conseguisse levar consigo toda a tristeza que dela transbordava. Olhando para a rua, vê Alberto passando, correndo para dentro da lanchonete. Ele a vê, e sorri; ela fecha a janela, em um gesto de total repulsa. As lembranças voltam a atormentar; mais do que os atos que ele tomara na noite passada, a sua desilusão completa a respeito da imagem que ela havia construído de seu amado era o que a machucava. Mas mesmo assim, não deixava de sentir o peito contrair-se de emoção toda vez que pensava nele. As contradições a estavam enlouquecendo.

***

Passaram-se os dias. Florbela já não desejava que as manhãs chegassem, pois provavelmente veria Alberto passar por suas janelas; mas, à medida em que o tempo fluía, seu coração oscilava entre o querer amar e o não querer sofrer. Quando tomou uma decisão, tentando se aproximar novamente, para que talvez o redimisse do mal que ele inconscientemente causara, percebeu que ele já não olhava em sua direção. Nem mais um aceno cordial; quando o encontrava na lanchonete, ele estava acompanhado, sussurrando e dando disfarçadas risadas. Totalmente ferida por mágoas, sem forças para reagir, Florbela não suportava mais vê-lo e, quanto mais imaginava afastá-lo de si, mais seu coração doía.

Ao fim de uma longa e chuvosa semana, ela trancou-se novamente em seu refúgio. A tarde caía, e a noite dava seus primeiros sinais; Florbela ainda não se movia com vigor por própria vontade. Foi para o computador - precisava reagir de alguma maneira, para libertar os terríveis pensamentos que a atormentavam. Conseguiu, então, os derradeiros versos, os dois últimos tercetos, quando chegou enfim à conclusão sem esperanças:

"Mas que me importa a mim que me não queiras,
Se esta pena, esta dor, estas canseiras,
Este mísero pungir, árduo e profundo

Do teu frio desamor, dos teus desdéns,
É, na vida, o mais alto dos meus bens?
É tudo quanto eu tenho neste mundo?"


A vida costuma ser cruel com quem vive para amar.
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Quero ver quem vai ter paciência para ler. ;)~
A idéia até que é boa, mas ficou mal-trabalhada. Eu não tive coragem, paciência e criatividade para fazer algo realmente interessante. De qualquer forma, eu tentei. ^^
Sinto que ficou incompleto também. Quem se dispuser, pode ficar à vontade para alterar os rumos da história.
Esse texto eu dedico ao Danilo, porque ele talvez ame a Florbela tanto quanto eu. Talvez. :P~
ushauishuiausiauishuiahsuiahusua
E sim, o soneto é da própria Florbela Espanca. E Alberto é o nome do primeiro marido da nossa amada poetisa.
:)
:*'s

2 comentários:

  1. May, lí inteiro!
    Achei lindo!
    Não achei incompleto e insisto que prossiga escrevendo contos como esses!
    Você tem talento May! Muito talento!

    Te amo ;*

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  2. Eu li tudo!
    Esse conto me lembrou a id�ia que uma amiga minha tinha pra um livro. Gosto do jeito que voc� descreve as coisas com esse seu amplo vocabulario que da a margem certa pra minha imagina�o.
    Adorei.

    Beijo!

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:)