sexta-feira, 8 de outubro de 2021

8 de outubro de 2021 - parabéns para mim

 Comparando Normal people: romance (Sally Rooney) x série audiovisual (Hulu)


No romance, o discurso indireto livre (o "fluxo de consciência/monólogo interior"[?]) causa um efeito de muito maior penetração na psique de Connell e Marianne: enxergamos um ao outro e os arredores a partir de suas percepções subjetivas, e nos deixamos envenenar, por assim dizer, por suas emoções convulsivas. Na série, a riqueza de nuances de seus mundos interiores fica muito mais pálida, e o óbvio da atração que um sente pelo outro é colocado numa evidência que apaga ambiguidades e conflitos internos, deixando o desenvolvimento da relação entre eles muito mais linear - nos três primeiros episódios. O desenrolar da trama na série dá conta de explicitar as circunstâncias que os colocam em uma assimetria afetiva, desconectada do desejo mútuo, pulsante - mas que arrefece, ainda que brevemente, nos momentos em que a dor é mais pungente.

A obviedade da atração é percebida pelo espectador, mas posso dar o testemunho de que, realmente, os sentimentos do outro nunca parecem tão óbvios quando sua própria alma está despedaçada: "o coração do outro é terra em que ninguém pisa". Eis a importância de sabermos dar voz, contornos e palavras pras nossas emoções, o mais possível.


(Não sei também se tudo isso me parece tão mais óbvio visto que eu mesma superei a adolescência emocional, o que tem suas perdas - da inocência, principalmente, que me costumava ser tão cara, como uma cruel e falsa garantia de que "nada ia mudar" - mas também seus ganhos em lucidez e discernimento crítico, fundamentais para a interrupção de estruturas mentais arbitrariamente eternizadas, cujo deslocamento causa incômodo e dor, mas abre espaço e possibilidade de que um novo melhor e necessário venha.)


Nossa obscura mente juvenil (pequeno-burguesa?) tem por princípio uma flexibilidade ética e moral a qual nos permitimos durante as decisões problemáticas que tomamos, acreditando que nossos sofrimentos individuais justificam a banalização dos sentimentos do outro. O amadurecimento emocional consiste na responsabilidade afetiva assumida e sustentada: o que é anti-capitalista e revolucionário a seu modo.

Não é casual que Marianne volte para os estudos de história e ciência política, ainda que não consiga utilizar da consciência macropolítica para a transformação de sua micropolítica - se bem que, tendo o arco temporal do romance sido finalizado ao fim de seus períodos de formação superior, Marianne viveu sua juventude como todo pequeno-burguês millenial a vive: acometido pelas mais variadas afecções psíquicas. Ansiedade e depressão são fina e delicadamente retratadas tanto no romance quanto na série. Se deles soubéssemos para além dos seus 25 anos, poderíamos constatar os efeitos subjetivos de suas investigações contra-hegemônicas - nos outros outros livros de Sally Rooney, talvez?

Marianne vive a claustrofobia depressiva no nível sexual em suas experiências sado-masoquistas com diferentes namorados - mas não com Connell. O sentimento é apropriadamente elaborado em sua ambiguidade constitutiva a partir das amarrações entre desejo e poder que Sally Rooney desenha nas vozes internas das personagens - em especial na de Connell, que não precisa levar a demonstração de poder às vias físicas de fato, uma vez que ele teria um "domínio absoluto" sobre as emoções de Marianne. Confesso que esse aspecto me deixou levemente brochada, apesar de eu compreender. É mais um problema meu do que da escritora, certamente. Ou não. 

Marianne forma um todo coerente, ela demonstra uma integridade de caráter, ainda que esteja emocionalmente estilhaçada; Connell, por sua vez, e talvez devido à sua posição masculina, apresenta uma cisão interna que o bloqueia constantemente em suas tomadas de decisão, as quais se tornam incertas e hesitantes ("concretude tem a ver com o desejo" (ROQUE, 2018, p. 13), e esse traço é próprio do devir-mulher). As tomadas de decisão não deixam de acontecer, contudo, mesmo que agonizadas pela hesitação - essa que causa cisão, mas não estilhaçamento.

A ficção tentando ensinar o homem a chorar - "Erotismo, o devir-mulher da política"

"Erotismo também tem a ver com processos de cura" (ROQUE, 2018, p. 14), mas também: "Poderíamos estar vivendo num mundo ainda mais alienado e violento se as mulheres não realizassem o trabalho de ensinar aos homens que perderam o contato consigo mesmos como viver novamente. Esse trabalho do amor só é fútil quando os homens em questão se recusam a acordar, se recusam a crescer. Nesse ponto, é um gesto de amor-próprio das mulheres romper com a relação e seguir em frente" (HOOKS, 2020, p. 192). Impossível deixar de registrar, aqui, que Sally Rooney é uma escritora-mulher-mulher-escritora.


Referências

HOOKS, bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. Tradução Stephanie Borges. São Paulo: Elefante, 2020.

ROQUE, Tatiana. Erotismo e risco na política. São Paulo: n-1, 2018. Disponível em: https://www.n-1edicoes.org/cordeis/EROTISMO%20E%20RISCO%20NA%20POL%C3%8DTICA-18. 

Um comentário:

  1. https://www.youtube.com/watch?v=8vHR0mKYQls - Normal people é o Tristão e Isolda em que o amor pôde ser vivido de fato. É o remédio que nossa consciência moderna, adoecida, envenenada de mal-estar, precisa para se curar do retalhamento da alma.

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