domingo, 26 de maio de 2013

Hoje eu fiz da saudade uma tarde de sono

Morrendo de frio,
Com um remorso tão grande por estar dormindo que eu até sonhei com as minhas pendências negligenciadas.
[A minha eterna falta de vergonha na cara.]

Daí agorinha há pouco eu estava revendo, por acaso, as fotos da viagem
E percebi que tem um milhão de saudades sangrando dentro de mim.

Vista do Paço Alfândega

TODAS, absolutamente TODAS as fotos me matam. Essa aí foi a escolhida porque eu apareço, tem a cidade querida/maldita, e não tem a minha cara que mais me mata ao ver essas fotos - a felicidade descabida e despreocupada com que eu passei os mágicos dias. Pelo menos aí eu estou contemplativa (ou só fazendo pose de turista, mesmo).

Daí eu vi a foto do crepe e me bateu aquela fome ancestral - tanto porque faz umas boas horas que eu comi, quanto porque eu tenho fome especificamente do crepe de Olinda, o inalcançável, que só adiciona um bloquinho de frustração a mais nesse meu coração angustiado.

[Não vou colocar a foto porque não estou querendo olhar pra ela de novo.]

Na verdade, eu queria falar de um montão de coisas outras, chorar as minhas pitangas de sempre, mas sem essa auto-ironia que me desvaloriza, como se o meu sofrimento fosse pouca coisa, porque eu estou sofrendo, de fato.

Queria fazer que nem antigamente, quando eu escrevia sem medo, eu escrevia pra me conhecer... Mas aí a obrigação de ser feliz matou a minha sinceridade em sofrer. Estou eu aqui, agora, então, com esse calo na garganta, com os dedos presos, cheia de um sarcasmo para comigo mesma que me dá vontade de morrer de chorar só de pensar.

[E é aí que a moça que me salva das minhas loucuras cotidianas pergunta, "Mas você chorou?", e eu, tristemente, respondo que não.]

Eu ia colocar uma imagem MUITO mais divertida, mas essa tem a dramaticidade necessária para o momento. Para quem não conhece essa fatídica frutinha, essa é a pitanga. A eternamente chorada.


Eu tenho mesmo é que parar de desrespeitar a minha dor.
[E agora eu morri de vontade de desrespeitá-la em todos os níveis, simplesmente porque ela é ínfima perto de outras - mas essa comparação não faz sentido, sem mais (um dia eu me convenço disso).]

[Eu já usei o verbo "morrer" umas dez vezes nesse texto, já - meus deuses, a dramaticidade não diminui com a idade.]


Agora eu já me distraí da tristeza, a angústia não está mais fazendo um nó no meu peito (mentira, eu só esqueci dela), então eu só queria falar pra vocês lerem esse conto. Está editado nessa versão (que foi a única que encontrei nessa internerd) - se vocês quiserem lê-lo no original, ele faz parte do belo livro Os amores difíceis.

A aventura de um empregado de escritório
Ítalo Calvino

A Enrico Gnei, empregado de escritório, aconteceu passar a noite com uma bela senhora. Saindo da casa dela, cedo, o ar e as cores da manhã primaveril se abriram diante dele, frescos, tonificantes e novos, e ele tinha a impressão de estar caminhando ao som de música.
(...)
Já que, homem metódico que era, ter se levantado em casa alheia, ter se vestido às pressas, sem se barbear, deixavam-lhe uma impressão de descarrilhamento de hábitos, pensou por um instante em dar um pulo em casa, antes de ir para o escritório, para fazer a barba e se arrumar. Daria tempo, mas Gnei logo repeliu a idéia, preferiu se convencer de que era tarde, porque o assaltou o temor de que a casa, a repetição dos gestos cotidianos dissolvessem a atmosfera extraordinária e rica em que se movia no momento.
(...)
No banco havia um jornal aberto, Gnei o percorreu. Não tinha comprado o jornal, aquela manhã, e dizer que ao sair de casa aquela era sempre a primeira coisa que fazia. Era um leitor habitual, minucioso; acompanhava até os menores fatos, e não havia página que passasse sem ler. Mas naquele dia seu olhar corria sobre as manchetes sem provocar nenhuma associação de pensamento. Gnei não conseguia ler: talvez despertada pela comida, pelo café quente ou pelo atenuar-se do efeito do ar matutino, voltou a assaltá-lo uma onda de sensações da noite. Fechou os olhos, levantou o queixo e sorriu.
Atribuindo aquela expressão de prazer a uma notícia esportiva do jornal, o balconista lhe disse:
– Ah, está satisfeito que Boccadasse volta domingo? – e indicou a manchete que anunciava a recuperação de um centromédio.
Gnei leu, recompôs-se e, em vez de exclamar como gostaria: “Nada a ver com Boccadasse, nada a ver com Boccadasse, meu amigo!”, limitou-se a dizer:
– ...Pois é, pois é... – E, não querendo que uma conversa sobre a próxima partida desviasse a enxurrada de seus sentimentos, virou-se para a caixa, onde, nesse meio tempo, instalara-se uma caixeira jovem e de ar desiludido. – Então – falou Gnei, confidencial –, estou pagando um café e um biscoito. – A moça da caixa bocejou. – Sono, de manhã cedo? – disse Gnei. A moça aquiesceu sem sorrir. Gnei fez um ar de cúmplice: – Ah, ah! Esta noite dormiu pouco, hein? – Refletiu um momento, depois, convencido de estar com uma pessoa que o compreenderia, acrescentou: – Eu ainda tenho que dormir. – Depois se calou, enigmático, discreto. Pagou, cumprimento a todos, saiu. Foi ao barbeiro.
(...)
Seu rosto, com a toalha amarrada no pescoço, aparecia como um objeto que existe por si mesmo, e alguns sinais de cansaço, não corrigidos pela atitude geral da pessoa, destacavam-se; mas continuava sendo um rosto basicamente normal, como o de um viajante que desembarcou no trem da madrugada, ou de um jogador que passou a noite em cima das cartas; se não fosse, para distinguir a natureza peculiar de sua fadiga, certo ar, observou agradavelmente Gnei, relaxado e indulgente, do homem que agora já teve a sua parte, e está pronto para o pior como para o melhor.
“A carícias bem diferentes”, pareciam dizer as bochechas de Gnei ao pincel que as recobria de espuma quente, “a carícias bem diferentes das tuas estamos habituadas!”
“Raspa, navalha”, parecia dizer sua pele, “não rasparás o que senti e sei!”
Era, para Gnei, como se uma conversa cheia de alusões se desenrolasse entre ele e o barbeiro, que, pelo contrário, estava calado também, manobrando com empenho seus instrumentos. (...)
Em relação a seu trabalho, Gnei nutria aquele ímpeto amoroso que, mesmo inconfesso, acende o coração dos empregados de escritório, por pouco que sabiam com que doçuras secretas e com que fanatismo furioso se pode carregar a mais corriqueira prática burocrática, o despacho de indiferente correspondência, a manutenção pontual de um registro. Talvez sua esperança inconsciente daquela manhã fosse que a exaltação amorosa e a paixão empregatícia fizessem um todo único, pudessem se fundir, para continuar a arder sem apagar. Mas bastou a vista da escrivaninha, o aspecto usual de uma pasta esverdeada com etiqueta “Pendentes” para fazê-lo sentir vivo o contraste entre a beleza vertiginosa de que mal acabara de se separar e seus dias de sempre.
Girou muitas vezes em torno da escrivaninha, sem se sentar. Fora colhido por uma paixão súbita, urgente pela bela senhora. E não podia sossegar. Entrou no escritório vizinho, onde os contadores batiam, com atenção e descontentamento, nas teclas.
Pôs-se a passar na frente de cada um deles, cumprimentando-os, nervosamente risinho, sombrio, aquecendo-se na recordação, sem esperança no presente, louco de amor entre os contadores. “Como agora estou me mexendo no meio de vocês em seu escritório”, pensava, “assim me virava entre os lençóis dela, agora há pouco.”
(...)
“Este é o segredo”, decidiu, voltando para sua sala: “que a cada momento, a cada coisa que eu faço ou digo, esteja implícito tudo o que vivi”. Mas era roído por uma ânsia, por não poder nunca ser igual àquele que havia sido, por não conseguir exprimir, nem com alusões e menos ainda com palavras explícitas, e talvez nem mesmo com o pensamento, a plenitude que sabia ter alcançado.
Tocou o telefone. Era o diretor. Pedia os antecedentes da reclamação Giuseppieri.
– Veja, senhor diretor – explicou Gnei ao telefone –, a firma Giuseppieri na data de seis de março... – E queria dizer: “E aí, quando ela disse lentamente: ‘Vai embora...?’, eu entendi que não era para largar sua mão...”. – Sim, senhor diretor, a reclamação era por mercadoria já faturada... – E pensava dizer: “Até que a porta se fechasse atrás de nós, eu ainda estava duvidando...”. – Não – explicava –, a reclamação não foi feita por intermédio da agência... – E pretendia: “Mas só então entendi que era inteiramente diferente de como eu a tinha imaginado, fria e altiva...”.
Pôs o fone no gancho. Estava com a testa perlada de suor. Sentia-se cansado, agora, cheio de sono. Fizera mal em não passar em casa para se refrescar e trocar: até as roupas que usava o incomodavam.
Chegou perto da janela. Havia um pátio cercado de paredes altas e repletas de varandas, mas era como estar num deserto. Via-se o céu por cima dos telhados não mais límpido mas esbranquiçado, invadido por uma pátina opaca, assim como na memória de Gnei uma brancura opaca ia apagando qualquer lembrança de sensações, e a presença do sol era assinalada por uma mancha de luz indistinta, parada, como uma surda pontada de dor.


Será que eu fui distraída ou salva?
Será que eu devia ser salva ou permanecer remoendo a angústia?
Será que eu vou finalmente conseguir, um dia, me livrar da angústia?
Será que eu realmente preciso me livrar dela?


Ó DÚVIDA, SAIA JÁ DE MIM

Um comentário:

  1. Não despreze sua dor, pelo simples moralismo de ela não ser adequada. Só você sabe o quão precisa dela.

    E, sabendo que precisa, irá se desapegar - aos poucos. Até, realmente, encontrar a medida certa : )

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:)