domingo, 10 de março de 2013

O de sempre - é o que tem pra hoje

A saudade às vezes é um borrifado de spray, que eu sinto, com susto, me atingir o braço. Tipo um que minha mãe usa pra regar as plantas, e que de repente meu irmão mais novo aparece espirrando em cima de mim pra me irritar.
Às vezes, a saudade é aquela gota nojenta que cai bem no meio da nossa testa, pingada de algum ar condicionado perdido nos prédios da cidade. Eu, naquela pressa, correndo de um lado pro outro, e a gota maldita.
A saudade é, às vezes, uma garoa fininha, que a gente pega, desprevenido, no dia em que esquecemos de levar o guarda-chuva... Daquelas que enregelam a gente por dentro, e faz a gente querer um copo de chocolate quente, cobertor e sono sem sonho.
É, às vezes, a saudade, aquela tempestade inesperada, que varre a cidade, os prédios, as calçadas, as árvores, que faz a luz da vizinhança apagar, deixa tudo pavorosamente escuro, e alaga a avenida, não nos deixa atravessá-la, e nos aliena da chegada e do abrigo de casa.

A saudade é, muitas vezes, aqueles longos dias de chuva, cinzentos, parecidos com aqueles que o Bernardo Soares nos descreveu,

Chove muito, mais, sempre mais... Há como que uma […] que vai desabar no exterior negro...
Todo o amontoado irregular e montanhoso da cidade parece-me hoje uma planície, uma planície de chuva. Por onde quer que alongue os olhos tudo é cor de chuva, negro pálido.
Tenho sensações estranhas, todas elas frias. Ora me parece que a paisagem essencial é bruma, e que as casas (é que) são a bruma que a vela.
Uma espécie de anteneurose do que serei quando já não for gela-me corpo e alma. Uma como que lembrança da minha morte futura arrepia-me de dentro. Numa névoa de intuição sinto-me matéria morta, caído na chuva, gemido pelo vento. E o frio do que não sentirei morde o coração actual.

Ontem a saudade foi uma lembrança feliz no meio de um monte de músicas e danças;
Hoje a saudade foi um retrato voluntariamente olhado por un paio di minuti...

Amanhã, espero que a saudade seja o vento que passa, e que fala apenas sobre o vento que passa.


«Olá, guardador de rebanhos,
Aí à beira da estrada,
Que te diz o vento que passa?»

«Que é vento, e que passa,
E que já passou antes,
E que passará depois.
E a ti o que te diz?»

«Muita coisa mais do que isso,
Fala-me de muitas outras coisas.
De memórias e de saudades
E de coisas que nunca foram.»

«Nunca ouviste passar o vento.
O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
E a mentira está em ti.»

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