Frio. As janelas, golpeadas de leve pelo vento, cismam em acordá-la; porém, seu sono é tão superficial, que qualquer pensamento mais alto a acordaria. Não consegue dormir há alguns dias. Isso costuma ser um sério problema para quem já tem problemas demais.
Levanta-se. Olha ao redor: tudo é silêncio, vazio. Fim de tarde; a sala, meio rósea, inspira bons fluidos ao ambiente - mas apenas ao ambiente. Os móveis e o chão de madeira aquecem; os tapetes colorem mais a paisagem doméstica. A janela expõe um belo quadro, onde a natureza verde e a imensidão dos céus brincam juntos. E nada disso a interessa, realmente.
Retira-se do quarto, e caminha indefinidamente pela casa. Enrolada em alguns cobertores - e apenas nisso -, vaga inconscientemente, como se sonhasse acordada. Entorpecida pelo cansaço, e impossibilitada de dormir pela insônia, resta a ela o ócio compulsório e improdutivo, horas e mais horas vazias, perdidas.
Sobe as escadas, em gestos fluidos ligeiramente preguiçosos. Ela é graciosa, e consegue se mover como se dançasse, mas seu corpo se tornara deveras pesado. Muitas marcas, muitas chagas, muitos fardos, e nada disso conseguiu apagar completamente a sua rara harmonia de outrora - quase irreconhecível, é claro, mas os olhos dela não mentem a quem costumava conhecê-la. Bastava a ela um pequeno impulso, para que todos os danos caíssem por terra. Mas esse impulso nunca vem.
[O que é o passado? São fantasmas na lembrança, perfeição vivida que machuca quando lembra-se que ela jamais será recuperada. A vida só traz caminhos que nos induzem ao erro, ao pecado, à condenação.
O futuro... É a visão incerta dos caminhos, é a previsão ilógica do curso dos acontecimentos. É uma incógnita, misteriosa e estranha.]
Um pouco ofegante, ela chega ao último degrau da escada, e nele se senta. Olha para a longa escada abaixo de si: branca, com corrimões de madeira, laterais vítreas; o restante de sua casa pode ser vislumbrado em uma visão restrita. Vive em um belo lar, afinal de contas; mas para quê, se tudo lá dentro é vazio?
Mergulha na reflexão severa. Há tantas coisas girando em sua cabeça, tantos problemas envenenando sua doce alma...
Fora atriz, e conhece a arte em si - costumava conhecer, ao menos. Cantara as mais diversas emoções do fundo, tocara o âmago de um número de pessoas impossível de se calcular; sonhou muito, e transformou muitos sonhos alheios em realidade. Porém, em um viver basicamente ilusório, esquecera-se de suas próprias emoções e sonhos. Não se dispôs a concretizá-los - estiveram sempre em segundo plano. A arte não a guiou para um conhecimento de si mesma, e nunca pode amar-se, e nem amar a outrem. Esteve, portanto, constantemente sozinha, e apenas agora isso começa a ferir realmente.
Amigos foram repelidos pelo orgulho. Amores, pela covardia. Sempre fora muito formosa, mas nunca deixou que ninguém se aproximasse de maneira mais profunda - tudo em sua vida se transformou em mais uma peça de teatro, efêmera e superficial, cheia de sentimentos que não eram característicos dela mesma.
Achava feliz estar sozinha. Depois de muito aproveitar as companhias, permitindo que usassem dela para mera diversão, não apegava-se a qualquer pessoa, a qualquer mundo alheio. O medo sempre foi uma constante em sua vida, que a guiava para a tristeza inexorável. Ela pensava ser feliz.
Hoje, contemplando as alvas e reluzentes escadas que, vistas de cima, simbolizam um declínio inerente, ela vê o quanto está sozinha - o quanto sempre esteve, por uma vontade inconsciente. Quantas situações construtivas foram negadas, quantas memórias revigorantes poderiam ter sido criadas! Mas as sutilezas foram reservadas apenas à arte, como se a própria vida não fosse merecedora delas. O grande engano foi querer separar arte e vida, sendo que uma, sem a outra, não existe. Único e irreparável erro.
Ainda era jovem, mas sua alma envelhecera décadas nos últimos meses. Trinta e alguns anos vividos em um borrão de dias e pensamentos desconexos - sua alma permanecia em cada palco, e seu corpo voltava vazio para casa. Assim, cada hora longe da arte se arrastava, toda tentativa de viver uma vida humana e imperfeita era debalde. A humanidade a irritava, assim como a imperfeição - caminham juntos, afinal. Essa loucura nunca a abandonara.
Hoje seu corpo tremia mais do que o normal. Os pensamentos feriam descomunalmente; o frio endossava sua solidão, a frigidez de sua alma completava-se com a de seu corpo. Ela se sentia cada vez mais pálida, cada vez mais fraca; lutava contra os impulsos doentios. Levantou-se; subiu o último degrau, lançou-se em uma poltrona e pegou o telefone. Discou um número aleatório de sua agenda; ouviu uma voz humana, e desligou. Pulou da poltrona, percorreu os arredores nervosamente, fechou as janelas, apagou as luzes. O espetáculo chegou ao fim. Despiu-se dos cobertores, e retornou ao topo das escadas. Sem maiores cerimônias, atirou-se.
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O telefone ecoava no silêncio absoluto, na tardia tentativa de dar uma resposta à alma desesperada; o som do vento completava a última sinfonia daquele fim de tarde fatídico.
Foi uma grata surpresa entrar aqui hoje e encontrar... (falar "isso" seria muito pouco). A imagem do post é foda, e o texto... Magnificamente belo e frio (o que eu gosto, heh).
ResponderExcluir"[...]sua alma permanecia em cada palco, e seu corpo voltava vazio para casa." - Que incrível isso.
E na última cena eu vi como um filme. Ela se joga da escada, depois câmeras mostram todos os cômodos da casa, foscamente. Ao fundo, o toque de um telefone vermelho.