domingo, 29 de dezembro de 2024

apelo

me escreva, minha amiga
me diga
quantas linhas tem
a mão
a carta
de circum-navegação
o périplo intenso
da própria solidão

vertigem

meditando bem
nos meus jeitos
achados e perdidos
analisando
vocabulários e hábitos
traço, longínqua,
a história
de quem me criou

(e de quem criou
quem me criou
etc
etc)

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Enivrez-vous

"De vinho, de poesia ou de virtude, como quiserem."

"Viver numa casa de vidro é uma virtude revolucionária por excelência. Também isso é embriaguez, um exibicionismo moral, que nos é extremamente necessário. A discrição no que diz respeito à própria existência, antes uma virtude aristocrática, transforma-se cada vez mais num oportunismo de pequeno-burgueses arrivistas."

A piedade e suas provocações.

quem me dera

poesia fosse música
o suficiente
para mimetizar
todas as camadas
de angústia
que eu sinto
quando você olha
pra ela


(mas que se dane tudo
também)

("eu não estou chateada",
disse eu, chateada)



terça-feira, 24 de dezembro de 2024

mulher, neblina

dona do seu destino, sim,
mas questionada quando
os desejos divergem
- em especial quando
há outra () na jogada

senhora das suas vontades, sim,
dessas para as quais não há explicação,
ah! o amor! ah! o mal dele, de que
alguns repelem a cura

mas, em especial, dona das mãos
tão mais jeitosas
para lavar as suas roupas...

conveniências.



o último gole

num café gelado

esquecido, o que resta
de um ritual saturnino
mágico
de todo dia
ou quase

a voragem das horas

os dedos do tempo cravados
nas minhas carnes tépidas
como os dedos sombrios de Hades
no marmóreo corpo de Perséfone

o que resta não sobra:
eu mesma faço questão
de sorver até
a última
gota

ainda que




quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

harmonia

seu nome traz a marca
do amor que não se mede
não se pede
e não se repete.

não posso controlar
a eletricidade que se desprende
da minha superfície
quando.

nós queríamos, meu amigo.
não um sonho de valsa,
que foge ao seu escopo, creio,
mas um je ne sais quoi

em que nos encontramos
e todas as hierarquias caem,
todo o biopsicopoder se dilui

sei que isso não há, não há

mas o instante vem, certo e fugaz.
(e é quase uma alucinação,
me causa até vertigem...)

sábado, 14 de dezembro de 2024

perguntas infinitas

Loura chiquérrima, a caminho dos 50.
Segura um cigarro desconhecido, olha a vitrine
e ri.
De si mesma?
De todas as escolhas que se colocam
e nós desejamos, do fundo dos nossos corações,
que sejam as mais acertadas
- que não firam nossa dignidade,
que nos façam felizes?
Como prever as tragédias,
os embustes,
os (auto)enganos,
se o sentido mesmo da vida é trágico?
É claro que há as manhãs,
graças aos deuses que as há.
Mas e as noites insones
de revisão de roteiro?
E as noites de cigarro e vinhos caros
que nos levam a contemplar 
nossas vitrines
com (o desejo de) um cigarro
e uma risada (irônica?)
- ou um esgar? 

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

agora mesmo

- derrite
+ derrida

i do

i do know
how to be alone
without crawling
out of my skin,

indeed.

porém, eu também sei
(e, deuses!, só eu sei)
como muda o compasso
do meu coração
when he's around.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

aldravia

lágrima
doce
pensamento
fundo
sem
dono 

quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

maybe

someday
somewhere
someone
is gonna feel
like home

sábado, 30 de novembro de 2024

um coração dividido

Eu sei o que é o amor:
dou o meu melhor.
Minhas palavras,
meu encantamento,
minha capacidade 
de enxergar o diamante
que todo mundo traz dentro,
por onde a luz passa - essa 
que jorra da nascente da alma,
explodindo em iridescências.

Eu não sei o que é o amor:
o meu melhor não é suficiente
para abarcar as nuances complexas
da realidade. Vejo, sim,
o diamante, mas ignoro
- prefiro ignorar? - 
que ele é uma abstração
incrustada em um corpo
cheio de anseios
e ausências.

domingo, 24 de novembro de 2024

destino

vivo a fugir
como o diabo à cruz
sem conseguir trazer
à luz da consciência
que destino é dádiva:

medomedomedomedo
aquele mesmo de 
sete anos atrás
mas outro:

porque já não sou a mesma
ainda que seja
porque já avancei um tanto
ainda que haja
tanto mais a avançar

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

a dor e a beleza

a gravidade e a graça

pensei que sondar a dor me livraria dela,
me deixaria um passo à frente,
como já me disse alguma psiconauta,
minhas curandeiras

há um intercâmbio de flores
entre mim e as jovens pupilas:
se o horror do mundo é flagrante,
ignorar a delicadeza é um gesto suicida.

eu gritei
quis morrer
mas eis-me viva, ainda.
still I rise,
às vezes tão contra
minha disposição natural

algumas esperanças minhas dormem
como quem desistiu da vida

outras estão meio lá, meio cá,
conversando comigo de cantinho
escondidas atrás do armário de metal

outras estão na fileira lateral,
encostadas na parede da janela
fazendo suas caprichadas anotações
no caderno de produção textual

domingo, 3 de novembro de 2024

se, um dia

    Havendo futuro, e havendo quem se interesse, postumamente, pelo arquivo que eu mesma produzo - o que relatará aquela que se ocupar das minúcias verbais que insisto em deixar aqui e ali?
    Há uns quinze anos dizia minha professora de literatura: "se você não quiser que leiam, queime, porque vão investigar até o último bilhete". 
    Ela me via vibrar, sôfrega, com os arquivos literários que os currículos convencionaram escolarizar. Me via deixar, também, minhas próprias palavras em papel: diários, bilhetes, cartas, mas também poemas que submeti a sua avaliação, minhas "incultas produções da mocidade". Outros, ainda, que pus à avaliação coletiva em um pequeno concurso artístico que em nada deu, porque ser a filha do professor de português fazia (faz) com que tanta coisa seja colocada em perspectiva: como se eu não pudesse (e devesse, até) dar continuidade a um trabalho corajosamente iniciado no coração do desespero pela sobrevivência. Do corpo, sim, mas da alma, principalmente: essa que parece que poucos ainda se dão ao trabalho de acessar. E se dão, quando dão, não dão o relato, não produzem o arquivo... Não comunizam. 
   Talvez entendamos melhor a gravidade de ser quem somos: as amarras que nos prendem às necessidades cotidianas, os planos de um crescimento financeiro que signifique crescimento individual e ponto, porque essa é a nossa ontologia. 
    A graça de ser quem somos se dá no reconhecimento dos contornos que delimitam o nosso vazio, esse abismo que, se ignorado, toma o poder sobre nós e nos obriga aos vícios... Respostas possíveis à pergunta que o vazio permanentemente nos coloca e que, se não nos entregamos a ele, somos incapazes de responder de outra forma.
    Fui colocada em xeque, e tantas coisas desmoronaram ao redor da minha autopercepção que não sei o quanto de mim restará dessa passada em revista. Isso é estar sensivelmente aberta ao outro - mas eu deveria conseguir mensurar melhor seus efeitos, para que a vida exterior não signifique vida ou morte sempre que eu preciso me aventurar fora de mim.
    As relações humanas são cheias de nuances, e as mágoas falam bem por mim há muito tempo. Na barra lateral, explore o arquivo: você vai perceber o que é isso que digo de forma vaga e confusa. Não me importo.
    Deixo, aqui, um fragmento dos manuscritos:

02/11 - dia de lembrar a morte no livro de mágoas

    Vocês gostam que eu seja baluarte de um mundo novo. Devem achar graça no meu otimismo, esse mesmo que os inspira, alimenta, permite acessar aquela luz bruxuleante no fundo da caixa de Pandora, a esperança. Quase não creem que ainda haja alguém a quem o cinismo não tenha conseguido de todo corromper. Alguns, de tão incrédulos, tornam-se até detratores: o que fazer com a beleza diante do horror do mundo? Como se fosse a lei do horror o correto. Como se houvesse "correto".
    Os que não se escandalizam com a nudez da minha sinceridade olham para ela com malícia, calculando a forma correta de extrair o máximo sem que eu (ingênua!) perceba que há poucos dispostos a retribuir - o mínimo. Acontece que não só de um otimismo tolo vive um coração que anseia pela verdade, palavra estilhaçada em inúteis fragmentos que eu vivo a tentar reconstituir.
    Vocês acham graça do/no meu esforço. Apreciam que eu mate a cobra e mostre o pau - rindo, apontam entre si para o ninho, que o otimismo não me permite enxergar. Minto: eu não enxergo porque não quero: acho melhor não me concentrar nele. Mas talvez deva repensar essa decisão.
    Não pensem que não sei do escárnio que corre ao fundo de suas despretensiosas investidas e minhas generosas respostas. Não pensem que eu não serei corajosa o suficiente para tomar a decisão que meu coração ingênuo apontar, quando for a hora. Não serei a primeira a fazer isso, afinal.   

sábado, 26 de outubro de 2024

de idiota a desprezível

sem meio termo

(ouvi dizerem sobre a balança:
parece que há um equilíbrio
quando há uma tonelada exata
em cada prato

mas uma única pena
em um único lado
e...)

sobre frutos

o primeiro, a paixão
a segunda, a convicção do amor
o terceiro, a desilusão

danço eu, dança você
etc

pagamos o mesmo preço, todes:
não há garantia de nada
quando escolhemos dar
o salto no escuro

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

golden red

eu, que sou da lua prateada
que se acende na noite escura,
eu, que uivo:
sozinha, de dor,
ou oportunamente, no texto literário

acendi no peito um vermelho intenso
"the feeling feelings club"
antigo
"Sargent Pepper's lonely hearts club band"
e todos os seus posteriores derivados
- incluindo minha diva favorita,
"I don't wanna feel blue anymore"

a merencória pulsação

se trança com o fio dourado de Ariadne
para que então eu consiga ver
as linhas de força do meu labirinto

(e as inserções de novos feixes
vermelhos
dourados
ou outros, talvez)

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

caos

todas as colheres com que meço
café e açúcar
mais ou menos empilhadas no fundo da pia.

num dia, é dia do poeta.
no outro, morre um poeta
e nos perfura a todos
os sensíveis
a sua carta de despedida
em que ele confessa suas grandes paixões:
a leitura
e os amigos.

a solidão amarga com que redijo essas palavras canhestras
(adjetivo roubado de uma carta de um meu amigo,
meu amigo: você ainda está aí?)

a solidão compartilhada ao redor da qual me encontro
com outros, novos feixes de vida
que se misturam aos meus
trazendo algo de vibrátil
aos meus dias tom cinza

terça-feira, 22 de outubro de 2024

eu não te amo

e odeio que os meus pensamentos
soltos, à deriva,
naturalmente flutuem
em sua direção

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

valsa brasileira

                  para Fernando Lobo, seu estimado filho e seus afilhados

encostar caminhos:
Ana queria saber em qual rua.
Edu rodou as horas para trás:
na casa vazia
havia ela.
um contrassenso,
tal como a minha busca.
também subi a montanha
como se move um puro sentimento:
desci a serra em direção ao mar
mas me detive no mesmo ponto
em que Pedro de Alcântara veio à luz
de pródigas entranhas.
A vida não vale sem risco - 
"Tá com pena de viver?",
é o que me pergunta
o fluxo de luzes coloridas
em que meus pensamentos se perdem
tentando lembrar,
tentando esquecer.

sem pena, eu fui.
sem graça, eu fiquei.
veja como o tempo voa:
o ano quase se foi
e a busca foi em vão.
tanto quis te ver
e te conhecer
tantos gestos - inúteis
tantas palavras
despejadas nas folhas
e nas telas
para fazer valer o risco
de me jogar no mundo
e encontrar somente
o negro, vasto oceano
de mim mesma.

(preciso acreditar que
no meu filme
toda essa ação valeu...) 

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

aríete

não brigo com a página em branco
porque não tenho desespero em preenchê-la.
se o poema me vem, ele veio.

do contrário,
vivo os dias como se não me desse conta
do quanto as palavras
significam

- para mim,
sobrevivência.

sábado, 28 de setembro de 2024

Em busca de um reencontro - comigo, com o outro

     De tanto discutir literatura algumas fichas vão inevitavelmente caindo. Me dou conta, por exemplo, de que minha grande virada psicanalítica como leitora se dá quando paro de procurar por mim mesma no que leio e consigo, enfim, ouvir a voz e a experiência do outro, em camadas cada vez mais profundas. "A leitura do mundo precede a leitura da palavra": se no início da minha vida eu me sentia alienada do mundo por adultos que não conseguiam fazer com que eu me sentisse pertencente - antes, mera espectadora de um teatro sério, em que tudo era urgente e grave demais para que os meus anseios pudessem também ser considerados -, só me restava buscar a mim mesma nas palavras dos outros de que, diziam, eu deveria me apropriar. Sempre o outro antes de mim: que confusão. Nunca deixei de me amar, contudo, porque sempre estava me procurando, afinal: comovente instinto de sobrevivência da minha singularidade negligenciada.
    Daí que meu caminho na literatura tem esses ares de busca por salvação, uma disciplina que, sendo instintiva, carece de método: tem o desespero da tentativa de sobrevivência. Diante do grande enigma do mundo, as palavras me ajudaram a dar contorno a tudo aquilo que eu só conseguia intuir, porque ninguém pôde se dar ao trabalho de me formar da maneira de que eu necessitava: me nutrir espiritualmente para que, forte, eu também pudesse nutrir os outros. Assim se me foi crescendo, por espelhamento, um egoísmo: por ser ponto de apoio, nunca um sujeito, fazia da literatura um ponto de apoio para os meus anseios negligenciados, subnutrida espiritualmente de uma forma tal que era incapaz do gesto fundamental de generosidade que a leitura do texto de outrem exige: para que seja lido em si, e não como ponto de apoio para que eu me sentisse, enfim, reconhecida.
    Não que o encontro não aconteça - inevitavelmente. Mas encontrar a nós mesmos é o que acaba acontecendo também, não o que se deve buscar a priori, porque o mundo do outro é o que é e não se submete às leis da nossa moralidade individual. Buscar no mundo do outro a ratificação das nossas expectativas vai gerar uma frustração tremenda: é bom que estejamos bem resolvidos com o fato de que as pessoas são o que são, e não o que nós gostaríamos que elas fossem para satisfazer as nossas fantasias. Mas se ninguém nunca nos forneceu a graça do reconhecimento e do pertencimento através de uma percepção a mais profunda possível da forma como escolhemos vir a ser, mais ou menos consistentemente, como fazer isso pelo outro - factualmente, ou nas práticas de leitura - e, assim, fazer do mundo um lugar menos inóspito, em que os laços são um pouquinho mais estreitos?
    É uma decisão a ser tomada, a interrupção desse ciclo de violência que se dá pela transmissão da negligência egoísta. Para tanto, devemos entrar em contato com esse desamor que nos vitima, a esmagadora maioria de nós, que vivemos em um mundo cada vez mais adoecido pela solidão do individualismo ("Meu amor, o egoísmo é a pior solidão que existe..."). Que, por sua vez, é um paradoxo: a afirmação burra de um eu desconectado do outro, como se isso fosse possível - porém, sendo feito real, possibilitado, vai gerando todo esse rastro de destruição da nossa potência emocional e psíquica. A clínica psicanalítica fornece um espaço de cura para todo esse horror - seu gesto fundante é o da curiosidade generosa, de alguém que se sentia amado e, portanto, espiritualmente nutrido. Eis a graça. Para além dessa técnica, espero que consigamos encontrar outras formas, mais fáceis e simples, de recriar comunidade, de tal sorte que não nos pareça tão árduo viver experiências em comum que nos devolvam a dignidade de nos sentirmos acolhidos e pertencentes a algo maior que nós mesmos. Sentir-nos seguros, fortes, protegidos e capazes de fornecer esse sentimento uns aos outros de forma recíproca e horizontal: essa é a meta.

sábado, 14 de setembro de 2024

a bad romance

"Esfriou, né?"

Assim começou Ana, tentando uma socialização estranha ao seu humor introvertido. Frequentar os espaços públicos se tornou um novo aprendizado depois da grande peste, que manteve a população de todo o planeta sob ordem de "distanciamento social". Alguns puderam se distanciar mais do que outros, certamente. Uma das primeiras discussões que se colocaram foi sobre qual função era considerada "essencial": tanto para cobrar direitos trabalhistas quanto para lutar pelo direito de manter seu negócio aberto e, assim, continuar a honrar com os compromissos financeiros e familiares. Aqueles que estavam menos em risco eram os que menos se preocupavam em honrar com os compromissos financeiros, é claro. Os familiares... Essa história é mais longa.

Felipe respondeu vagamente, sem entusiasmo. Ana não se deu por vencida, é claro; qualquer coisa se acendeu desde que vira o par de olhos castanhos passando sob a touca de lã amarelo mostarda. Causou-lhe uma impressão curiosa a combinação de cores contra o céu de fevereiro, tempo de um verão fixo - mas, no vale do Paraibuna, sobretudo em seus pontos mais altos, sempre sopra uma brisa fresca que acaba acendendo hábitos bem consolidados. 

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

queria ficar

não vai passar:
vai perder intensidade,
mas a marca fica
como tatuagem
me lembrando
da vergonha,
é claro,
mas também da coragem.

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

em off

chega a ser violento

sua voz
ecoando
nos corredores
do meu inconsciente

terça-feira, 27 de agosto de 2024

oração

quem é você,
que eu almejo?
desde o fundo mais fundo
da minha alma estilhaçada
anseio pelo dia
da sua chegada        ou Deus, ou o Cosmos
- a resposta                não teriam me feito assim, assim
para a solidão azul       como sinto, como sou
que me assola                 porque não sei ser diferente
desde muito antes             não sei fingir, ou maquinar
de eu saber                         estrategizar formas
com o corpo                          de (im)permanência
por que fresta                         porque a honestidade é
a dor se insinua                         o primeiro passo
e penetra                                    e eu sou amor
deixando o vazio                           da cabeça aos pés
e a queixa
e a súplica
por favor
por favor
pelo menos um sinal
uma visão
em sonho ou não
                              apareça




quinta-feira, 22 de agosto de 2024

perdão

"você não me conhece"
porque você não deixa
- mas eu sou uma leitora
excelente
então eu sei mais
do que você imagina

"eu não te conheço"
infelizmente
infelizmente
porque você não quer



terça-feira, 20 de agosto de 2024

súplica

à lua cheia no perigeu

diva de melodiosas lágrimas, Chang'e
ou pai do protetor das florestas, Jaxy

carrego o cristal azul 
como uma melancia no pescoço

que me lembra da vergonha
a vergonha
pela súplica
pela queixa
por precisar provar algo
pra mim mesma
ser dilacerada por isso

há coisas de que não se escapa
o imperioso desejo
o anseio da alma

conexão
 

hooking

"When we love we can let our hearts speak." 

brokenheartedness
lovelessness
girlhood

(All about love: new visions)

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

a mulher invisível

quem te faz se sentir visto?
quem aumenta sua solidão?
quem te aliena de si, do mundo,
e quem te proporciona
a graça do pertencimento?

os meios podem ser sombrios,
mas os olhos da intuição
enxergam bem no escuro. 

domingo, 4 de agosto de 2024

fantasias

qual é a linguagem do desejo?
para dentro, ele é apenas pensamentos.
para fora, traduz-se em gestos.
entre palavras, olhares e posturas,
vai desenhando o real concreto.

deve vir de mim, essa interrogação
que vejo se espelhando ao meu redor,
em toda relação que, trazida
para o nível de fora da minha mente,
me confronta com as minhas fantasias

e me decepciona, tanto,
tantas vezes...

deve haver um caminho para fora
em que eu possa honrar com
as palavras, olhares e posturas
em que eu me reconheço
e que não me coloquem em xeque.

(lembrar de: evitar
os caminhos que já se provaram
decepcionantes.)

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

na ilha

de hoje resta
na parede da memória
a visão abstrata da nossa gênese política
— quem luta contra uma opressão
infinitamente maior que si
se sustenta, é claro, em seus camaradas,
mas há um preço
e, o que pude perceber,
o delírio persecutório faz parte dele —
e a visão concreta da nossa ação política
— o que é necessário à construção
de uma postura contra o fim:
organização, método,
disciplina, coragem
e o amor, é claro:
o mais radical dos afetos.

[29.07]

cortam a carne:
o vento gelado
a aflição do pensamento
o ultraje emocional
a lembrança do desprezo 

a consciência do vilipêndio
a que estamos sujeitas
há milênios, as mulheres
há séculos, os povos de Abya Yala
há décadas, os militantes radicais  

contra o
patriarcado
colonialista
extrativista
racista

[30.07]

pra não dizer que não falei das flores:
rosas são vermelhas
violetas são azuis.
quando Vênus se encontra com Júpiter
e eles passeiam de mãos dadas
pelo vale da sombra da morte
não há mal nenhum a se temer:
o que corre no fundo do poço
(do desejo?)
também é belo, porque é humano
e nada do que é humano me deve ser estranho.

[31.07]

exagium:
o ato de pensar
experimentar
traduzido em gesto crítico
para formular e dar contornos
aos nossos demônios 

(melhor não expulsá-los
porque talvez sejam eles
e os anjos
o mesmo tipo de criatura,
as duas faces da mesma moeda:
quem será a forma
e quem, o conteúdo?)

[01.08]

o hábito do autoengano

é o que fazemos
para continuar habitando
(ficar quietinhas lá,
seguras,
sem correr riscos)
o poço do desejo,
em que tudo é gozo:
pulsão introjetada,
com medo de se banhar
na luz que há

[02.08]

quinta-feira, 25 de julho de 2024

vez em quando

me lembro de lembrar de você
e me dá um aperto
de o nosso amor não ser sustentável
como não o é nenhum outro
em que eu me ponha em trabalho
pensando que as coisas acontecem
só porque eu quero que sim 

às vezes não é pra ser
e tudo bem desistir,
tudo bem

tenho pensado em você,
lembrando que
a primeira vez
em que pensei em escrever muito
sobre uma única coisa
foi quando te vi, e sua imagem
grudou no meu mundo interior
e foi se desdobrando
numa fantasia louca
em que me joguei
sem calcular nada, nadinha,
por um bom tempo

e até que deu em alguma coisa,
porque meu coração é sincero
e você é sensível 

...................................................

na segunda vez
em que pensei em escrever muito
sobre uma única coisa
estava desesperada
com o fundo mais fundo da minha alma 

era a minha história pessoal
o que eu precisava desenhar
para mim mesma, é claro
- tudo isso aqui é pra mim,
principalmente 

...................................................

na terceira vez
em que pensei em escrever muito
sobre uma única coisa
era a história do outro
condensado em um bode expiatório
que eu quis narrar
com ares de conhecimento de causa
uma pitada de ressentimento
e a curiosidade que me é própria 

...................................................

sobre nenhuma dessas três coisas
eu quis escrever tanto assim,
mesmo,
afinal.

melhor ir soltando fragmentos
pedaços de dias e pensamentos
a partir dos quais eu vou contando
o que eu quero escrever
um pouquinho só
sempre
sobre vocês
e você
e eu
e tudo o mais
ou nada
se eu não quiser





segunda-feira, 22 de julho de 2024

oh no

quisera poder pegar
entre as minhas mãos, como
um punhado de areia
(do deserto?)
- antes: a água que mina da fonte
do oásis - 
e não simplesmente deitar fora
ou sorver
(por mais que pareça até uma boa,
como naquele beijo de morango),
mas afagar docemente,
como a um pássaro
que se feriu pelo caminho
porque, ora,
ele gosta de voos radicais
e não há descanso no ninho

o seu coração




sexta-feira, 19 de julho de 2024

o que fica

uma delicadeza inédita
que eu não costumava perceber
- quem terá mudado: eu ou você? -
ou foi o empilhamento dos anos
que operou seu ofício transformador

meu coração, exultante,
não queria nem tecer essas palavras
- tão acostumado está aos dissabores
que mal sabe cantar a alegre satisfação -

seu coração, exaltado,
martelando forte no peito amplo
- exposto à força da necessidade -
e eu reparando, incrédula,
rosto e ouvido colados

(eu celebrando o básico, talvez,
mas há que se reconhecer os milagres,
goles improváveis de água fresca
em meio à selva de pedra)



quarta-feira, 17 de julho de 2024

é isso

    da mesma forma que eu anseio
    por algo que você não tem
    menino
    você anseia por algo
    que só vai encontrar
    quando aprender
                a confiar
          e se entregar

    (o caminho não é de volta
    à santa ignorância
    e é o contrário da solidão
    como vêm pregando
    os sinos, e eu com eles)

    (eu posso contar essa história
    mas gosto tanto de quando
    ela conta a si mesma...)

terça-feira, 16 de julho de 2024

testemunho

    uma palavra carregada de temor
    que, penso, é tão apropriada
    para os nossos tempos apocalípticos
    - não porque seja o fim do mundo,
    mas o fim de um mundo conhecido.

    dentre as profecias, preferiria aquelas que
    cantam um vindouro menos:
    indiferente
    amargo
    cínico
    doído
    triste
    só

    empilhamos nossas cavernas em espaços bem delimitados.
    trancados a sete chaves, temos tudo de que precisamos
    para cultivar a ilusão
    da autossuficiência.

    empilho meus versos em unidades de ideias
    que me ajudem a passar por esses dias
    áridos, porque a sombra que se projeta
    por sobre nossos corações e mentes
    é imensa, inequívoca,
    e eu não consigo não vê-la.

    (meus versos,
    minha caverna solitária,
    refúgio do meu eu íntimo
    que não deixo, também,
    de tentar espalhar por aí
    - dentre as profecias,
    há as que prefiro...)

domingo, 14 de julho de 2024

sad babies' club

vi outro par de olhos passando,
uma sombra circundando-os,
uma rede de rugas, algo de opaco

que costumeiramente vejo, também, no meu espelho
- o do banheiro, que nunca mais te viu, nem verá, mas
em que eu me encontro: inescapável,
sob circunstâncias habituais

daí percebo algo que nos une, ainda que não suficiente
para a brutal colisão que eu almejo,
uma que abale as estruturas e ponha tudo no chão
e nos faça reorganizá-lo juntos:
uma costura de linhas temporais

mas não, não, não.
o que eu tenho é a negativa,
pensamentos pensando pensamentos
e um longo passado à espera
de eu fazer as pazes
comigo
mesma
mesmo



contorno

"...people can't, unhappily, invent their mooring posts, their lovers and their friends, anymore than they can invent their parents. Life gives these and also takes them away and the great difficulty is to say Yes to life."

Giovanni's room - James Baldwin

ao redor da liberdade
circulamos uma
duas
três vezes
mil voltas e voltas 

tentando reconhecer suas saídas
e entradas
qual reta leva a que caminho
onde estão as contramãos

sabendo que todo o fluxo
gira em torno
desse sumidouro

cada elemento
encontra seus pares
nas esquinas das ruas,
nos casarões, nos parques

nos longos muros
que margeiam os córregos

os mundos se chocam e fundem, mas eu,
à beira do abismo, me posto
e observo

a centrífuga dos encontros
e a densidade dolorosa
em que colido comigo mesma

e desmorono


sexta-feira, 12 de julho de 2024

garrafas ao mar

velejar, velejei
no mar da ilusão 
com o barco da fantasia
esbarrei numa ilha
o barco afundou
eu, as garrafas,
os papéis, uma pena
a tinta contada 
o tempo contado 
os derradeiros gestos 
inúteis 



quinta-feira, 11 de julho de 2024

continuando

    o que são 30 minutos de Mayara falando
    (ou escrevendo uma dúzia de versos indolentes)
    diante dos 3 fucking mil anos de patriarcado
    - quando o patriarcado nem é o início da história
    da opressão das mulheres?

    você poderia até pensar se tratar de um melindre meu,
    só um vômito em resposta ao nojo que me desperta
    esse comportamento ridículo e repetitivo
    naturalizado


    mas o buraco é tão, tão mais embaixo...




eu posso contar essa história

    do menino bom, filho amoroso e atencioso, e sua saga no planeta Terra durante o capitaloceno
    - sobre o qual levanto suspeitas, é claro,
    uma vez que
    pense só: "a soberania terrestre é vegetal:
    as plantas representam mais de 80% da biomassa terrestre,
    enquanto os seres humanos correspondem a 0,01%".
   
    quero dizer:
    quem deus pai pensa que é 
    diante de mãe Gaia?

    não tem nem antropoceno, nem capitaloceno,
    quem vamos morrer somos só nós, infestação maldita.
    Pachamama ficará numa boa quando se ver livre...

    (me condene por fuga ao tema, mas só agora.
    a história continua.)




terça-feira, 2 de julho de 2024

lua doida

os significantes do feminino não lhe são exclusivos.
ainda bem, é claro - mas, nossa,
o que eles não significam quando habitam diferentes corpos
e suas tão discrepantes socializações?

para uns, a insaciável gana de ter mais e mais
ao ponto em que a dignidade se torna negociável
e não se consegue mais falar em amizade,
essa categoria política.

para outras, a neurótica demanda de qualquer coisa
que eu não sei bem o que é
- o sol absoluto do sentido: resposta? -
e então a chamo de "insatisfação crônica".

para todos, essa solidão profunda,
significado-síntese da inescapável realidade 
da condição humana

(que, feliz e paradoxalmente,
tem como ser transmitida
e compartilhada).



segunda-feira, 1 de julho de 2024

ancestral

Hoje acordei agudamente cansada de ser gente.

    Ser qualquer outra coisa viva. O ar, a água. Um polvo. Um cachorro. Uma abelha. O mato que cresce à beira de um lago a vários metros de altitude. A cabra que pasta esse mato. A colônia de bactérias que ajuda essa cabra a digerir esse pasto.
    A lua, não - muito cheia de sentido humano. Uma estrela novíssima, recém-nascida, ainda não captada pelas super lentes da NASA. Talvez (tomara!) nunca captada. Ou uma antiquíssima, de brilho tênue e bruxuleante, seus fótons derradeiros viajando, esparsos, pelo espaço sideral.
    Qualquer coisa, menos isso que, não importa o quanto eu investigue e pense e sinta e treine e teste e coloque para jogo, corajosamente, é sempre um balde de água fria em um dia frio - meu primeiro dia de férias.


terça-feira, 25 de junho de 2024

sonhos adolescentes


há muito tempo eu não sonhava com fugas intermináveis. 

novos significantes revestem velhos significados:

dessa vez eu não sou eu, e as rotas são outras,

os espaços, mais vivos,

porque há pessoas que me acolhem

enquanto adio, por milésimos de segundo,

por milímetros de espaço,

meu encontro com a radicalidade do extermínio.

qualquer decisão imprecisa é fatal. 


(um sono inquieto, é claro.

há quanto tempo ele é assim, sem que eu me dê conta?)

                                      〜⋨⋩〜

uma confluência casual de circunstâncias

e o rútilo desejo desabrocha,

nascido das trevas da fantasia juvenil:

entre pedais duplos e distorções,

embebidos no sumo dionisíaco,

meus neurônios viajam pelas espirais do tempo

entranhadas nas frestas da minha carne

- friccionada pela sua.                     

                                      〜⋨⋩〜

"por quê?", eu me pergunto, miserável,

ao despertar no solo aereárido de Saturno

depois de o poço fundo me revelar

entre suas brumas

que o rio sombrio que me trespassa

ainda é navegado 

por dois tenebrosos fantasmas:

o desencontro

e a incompreensão.






domingo, 23 de junho de 2024

porque há desejo em mim

é tudo rutilância.
o vermelho que se me desprende
lava a dor das líquidas oscilações.

mergulho no perfume de um outro
tangível, e tanto,
que me põe em dúvida
quanto a sua verossimilhança.

o desejo que nos funde
é como a rosa de infinitas pétalas
que desfolhamos, todos os dias,
nos centros de nossos peitos. 

terça-feira, 11 de junho de 2024

na parede da memória

trançávamos nossos destinos
de um jeito que, hoje,
já não mais nos reconhecemos

nova era
novas cores
novos cortes

(mas me lembro do seu cheirinho
de carne doce e macia)

quinta-feira, 6 de junho de 2024

500.000 lágrimas

algumas poucas ocultas,
a maior parte, aqui expostas,
com uma coragem besta, de quem sempre contou com
"ah, mas as pessoas nem leem, mesmo"

mas sei que algumas leem, e
obrigada por compartilharem comigo
a barra sublime e pesada da existência





sábado, 1 de junho de 2024

profundas más águas

A exaustão não é só um estado físico, concreto,
Como o corpo ofegante depois do trabalho intenso.
Como tudo o que é interiorizado e cristaliza,
Há um "não poder respirar com a alma"
Estranho familiar
Que me assola os nervos sempre que o caminho parece
Um empilhamento de encruzilhadas
Em vez de estrada reta e límpida
Caminho pelo qual se desliza
Sem ansiedades ou atritos.

(Você me deixa mais vazia do que cheia
Sempre que te encontro depois da primeira vez:
Essa para sempre perdida, nunca igualada,
Que dói como um espinho inflamado na alma
- Essa mesma que vive ofegante, à beira
  De um tipo abstrato de infarto.)


de 05 de fevereiro de 2023,
     revisado em 26 de abril de 2024,
     publicado hoje, dia de Saturno.

sexta-feira, 31 de maio de 2024

...

love's something you give
not something you ask for

(if you don't make a move,
the move is made)

quinta-feira, 30 de maio de 2024

um beijo de morango

seu lábio cínico
pendendo, cheio de charme,
e as três vezes que colhi
as últimas gotas do néctar
com sabor de 
pasta de dente
bala halls
e poucas horas dormidas

terça-feira, 28 de maio de 2024

no espelho

o novo rosto que apareceu
se viu sozinho

como eu

segunda-feira, 27 de maio de 2024

Morgaine, now I can see

I'm honoured to be blessed with your Sight
despite all of the centuries that set us apart

sábado, 25 de maio de 2024

escrevendo, eu manifesto

I

No fundo do tanque
Circundado por macieiras,
Morgana agita as águas
Do meu destino pequenino.
Mergulho as mãos, e
As batidas do meu coração
Transmitem ao poço fundo
O ritmo do meu desejo.
Olho para o espelho turvo:
As brumas ainda encobrem 
As respostas aos meus anseios.

II

(No fundo do poço,
Oculto pelas águas,
Ecoa, ignoto,
O ritmo com que
Eu dançaria a Vida
Me sentindo menos exausta.)

III

De relance, eu vislumbro
- Seria desonesta comigo
Se não desse esse testemunho -:
"Como é bom, por vezes,
Não ter que lidar com ninguém..."

IV

Tanta vida interior me exige
Uma dança cotidiana
Essencialmente solitária.

V

Qual o ritmo ideal
Para dançar com o Outro?
Sou eu quem determina
Quando o rei poderá reinar
- Apesar de você pensar que
"Quem não quer é você".

VI

(Até porque falta um bocado
Para esse arremedo de sapo
Se tornar príncipe, ou o que for.)

sexta-feira, 24 de maio de 2024

daydreaming

vi seu rosto
ao lado do meu
no novo espelho
do banheiro 

quinta-feira, 23 de maio de 2024

palavras que não posso te dar

me alimentei das suas até me fartar 
(não só as que você me deu
e eu guardei, reticente,
numa prateleira da memória)
reparando-as em minúcias, como o fiz

com os traços que você traz no corpo,
e os seus pequenos gestos
e as presenças incertas

e as ausências impostas
por sei lá que feitiço maldito
que me prende no cárcere infinito
dessa impossibilidade...

sexta-feira, 17 de maio de 2024

tornar-se mulher

minha mãe teve um longo tempo de observação
da minha curiosidade intensa por
suas caixas
seus cabides
seus estojos
seus envelopes
suas carteiras
seus armários
- nossa, quantas portas,
quanta vida,
quanta memória

antes eram só
objetos banais;
hoje consigo senti-los doendo
no meu coração
como fragmentos-fisgadas de duas histórias:
da minha mãe
e da minha própria
 

quinta-feira, 16 de maio de 2024

pra que canções de amor

se o amor está morto?

que sejam canções fúnebres,
de modo que, representando o real,
nós possamos despertar

e pensar em despertá-lo

(mas não se engane,
esse não é um poema tão esperançoso assim...)

domingo, 12 de maio de 2024

à sombra, um novo lugar

o beijo de Eros em minha alma alheada.
quem te beijou fui eu –
quem quis,
quem fui,
quem fiz.

sob tal responsabilidade, respondo como
quem banca o próprio desejo –
"sem apego ao fruto",
tenho dito às minhas pupilas,
para que também elas tenham coragem
de dar o salto de fé no escuro.

sem as lentes, as formas difusas
ganham um grau a mais de angústia,
esse anseio doloroso.

à luz da janela noturna
diviso, mesmo assim, seus contornos,
fantasma do meu desejo ganhando corpo.

domingo, 5 de maio de 2024

laudo inconclusivo

pensamos, pensamos, pensamos
falamos - falei um bocado
chorei largado, que é o que eu faço
daqui pra frente, ainda não sabemos bem

o que fazer?

terça-feira, 30 de abril de 2024

nas fibras da pele

esconderam-se as moléculas
da essência marinha amadeirada
que você trouxe consigo
e me transmitiu por meu convite

- o problema não é o abraço, meu amigo...

domingo, 28 de abril de 2024

raízes

a delicadeza da flor me chamou:
atraída pelas cores iridescentes
de suas pétalas macias,
meus dedos abraçaram, 
ansiosos, mas docemente,
sua frágil composição.

minhas narinas buscaram
a nascente do aroma
que, de longe, eu intuía.
inebriada, desejei passar
dias e dias entregue
às vertigens dos sentidos.

em seus galhos me entrelacei
de forma ousada, quase como
se invadisse, sôfrega,
os limites de uma roseira,
ignorando, incauta,
os avisos dos espinhos.

em seus veios internos mergulhei:
em cada curva, em cada escolha,
me admirei com seus fragmentos,
os pequenos orbes de sentido,
pacotes luminosos de memória,
constelações em transformação.

no âmago de seu tronco
arquitetei minha morada:
entre as estreitas paredes
de seu sistema vascular
expandi minha presença,
tentando, aos poucos,
me fixar em seus caminhos.

o seu corpo em movimento
- pequeno espelho do mundo -
me colocou à deriva.
inapelavelmente corri,
junto à seiva, floema abaixo,
e pelos mais extremos poros

retornei à terra quente
onde, um dia, eu mesma florescerei.
quem sabe?, então, assim,
você venha até mim (novamente),
munido de curiosidade e desejo
que te façam querer chegar

às raízes do meu ser.

[só as flores de plástico não morrem]





sexta-feira, 19 de abril de 2024

temperos

o dela tem pimenta
o do meu bem é o curry doce
o meu, as ervas de provença
com a presença marcante do alecrim
e o êxtase do manjericão

quinta-feira, 18 de abril de 2024

o que se canta sobre a sereia?

ouvi-lo cantar é um espinho que

estava parado, quieto,
sem ninguém mexer com ele
talvez até cicatrizado?
calcificado nas bordas, pelo menos
já não sangrava, só estava lá, quietinho

e então algo se mexe
e eu me dou conta
da profundidade em que ele se infiltrou
na minha carne

-----------

esteróides androgênicos

bondoso ≠ pacífico ≠ atlântico

na praia da paciência
em frente à casa da felicidade 
junto à cauda da Jubarte
a sereia da água doce
em seus tons rosa-quartzo
lê o palimpsesto:
"só Deus pode me julgar"
sob
"felicidade não é sobre ter tudo pra você"
(happiness is not about getting all your(s))

diga-me com quem andas

e a natureza relacional do ser humano.
ánthropos-,
não andro-,
nem gino-.

à parte as interseccionalidades,
há as escolhas éticas e morais.
daí que

sexta-feira, 12 de abril de 2024

consortes

minhas irmãs,
onde estão vocês?
com quem eu compartilho,
em semelhança de minúcias,
o meu destino pequenino?

quinta-feira, 11 de abril de 2024

no fim, sempre se casam com as princesas

não com as bruxas
obviamente

alguns casos são de divã
outros, de guilhotina

terça-feira, 9 de abril de 2024

gritos e sussurros

da minha pele em pânico
pela monumental mudança
que a roda viva instaura
(na minha vida - não,
ou sim, é claro,
mas nunca do jeito que eu esperava que seria
nunca é, afinal) 

quarta-feira, 27 de março de 2024

crônicas da misericordilândia

chove em nossa terra. 21ºC, uma manhã fria no alto da colina, a chapa quente dentro dos portões e portas da escola. sobe o vapor barato do desleixo.
o nome do nosso sistema de governo é a autocracia fundamentalista burguesa. antes de toda e qualquer coisa: eu. eu em segundo, eu em terceiro e, se sobrar alguma energia, talvez, quem sabe?, dependendo da maré de hoje... ah, hoje não porque amanhã é recesso.
as nuances são misteriosas: quem é que manda, afinal? eu ainda não entendi bem, por isso escrevo. se você souber, por favor, me escreva.
sendo professora da misericordilândia, confesso: estou exausta. mas... e se não resistir? e desocupar? entregar tudo pra quem? em vão? o que será? Criolo tem sido tão bem sucedido em me ajudar, por isso vivo convocando o meu Buda. até o Profeta eu saquei, das catacumbas da memória, pra vir em meu socorro.
professor, profissão de profeta. quando a profecia é sombria para o poder instituído, cegam-nos e jogam-nos no labirinto das sombras.
acontece que eu sou amiga do vale da sombra da morte e, por isso, já não temo mais mal algum.

sexta-feira, 15 de março de 2024

os seus filhos gostam

quem diria!
Jorge Maravilha,
prenhe de razão,
sabia que as crianças precisavam de
menos raciocínio lógico
e
mais produção literária

<3

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

a dobradinha da tia Sônia

    Houve em dois dias, pelo menos, de que eu consigo me lembrar. O primeiro foi feijoada; o segundo, dobradinha. Houve também um Natal, com rabanadas - não sei se o mesmo em que, aos dezenove, percebi que acontece de as famílias serem casas fraturadas em sua medula.
    Enquanto lavava a louça, é claro: é no trabalho doméstico que nos irmanamos, as mulheres da família. Tentamos escrever histórias novas, prometendo aulas de inglês para as primas, mas a herança mais forte ainda está muito próxima em termos geracionais.
    Eu adoro dobradinha e feijoada. Gosto muito da ideia da família reunida, mas só no campo da idealização. Pode ser que haja famílias que caminhem bem sobre as próprias pernas: a minha, não. Retraímo-nos em um núcleo fundado na exploração do trabalho doméstico das mulheres e na depredação de sua autoestima - como é de nossa praxe dita civilizacional. E eu ainda tomo como falha pessoal a minha dificuldade de expandir meu passo pelo mundo...
    A vizinha berrou o dia inteiro com as duas meninas. Meu coração treme, nervoso. Meu cérebro se exaure imediatamente, derrotado, angustiado com a repetição do trauma. Tenho trinta e dois anos, mas meu corpo se lembra de muita coisa passada. Meu corpo é mais sábio que eu, e eu ainda não aprendi a escutá-lo.
    O que é feito do amor nesses contextos de violência e abuso? Eu não consigo entendê-lo bem, ainda. bell hooks diz que eles não coexistem, amor e violência. Mas na casa fraturada reuníamo-nos, vez em quando, ao redor do fogão de lenha com a panela fumegando cuidado. As mulheres... Algumas de nossas faces são as da guardiã violada, Medusa que grita para nos petrificar de horror.
    Além dos gritos e do choro desesperado de criança, de vez em quando também sobe, da casa da vizinha, um cheiro bom de comida boa...