terça-feira, 30 de agosto de 2022

image overflow

como se as imagens falassem:
a beleza: o espelho em que me vejo e vejo o outro
as primeiras taças: confusão diante de tantas ofertas
(são muitas ideias, todas tão atraentes)
a energia do louco: caminhante, é no caminhar que se faz o caminho
o mundo: domínio. fim ou início? todo dia, fim e início
(mas existe um grande ciclo que se encerra e outro que se inicia,
um grande ouroboros no meio dos ouroboros cotidianos)
a taça que transborda: são muitas emoções
(é nela que sirvo ao outro o néctar revigorante, desdenhado
- desdenhado pelo que ele tem de excessivo?)
nuvens: são muitos pensamentos
a lua: são muitas sombras
(a noite me revela minhas esquinas escuras)
a estrela: venha, sorte, minha estrela-guia
(ela apareceu duas vezes)
a copa revirada
me faz chorar o leite derramado
- spoiler: o leite era veneno
(mas venho chorando-o há semanas...)
o espectro da morte confirma os livramentos
o desejo obsessivo por uma ilusão daninha
(o apego àquela ilusão, tão antiga...)
mais nuvens, sempre muitas, densa névoa
a busca por águas calmas
o domínio material: pelo pai, pela mãe
(há muito, muito tempo eu construo o meu castelo.
não tive que construí-lo do zero,
mas tem também as minhas mãos e a minha energia nesse empreendimento)
a justiça - ela sempre está comigo,
eu sempre busco por ela
intensidade: na ação vigorosa
(uma novidade na minha vida tão pacata)
clarividência: necessidade de liberar a intuição
(a nuvem-névoa bloqueia a visão)
a delicada flor da coragem: coroação
(não preciso de muito mais do que um aceno de esperança)
a força represada: saber delinear limites
(porque não preciso carregar o mundo inteiro nas minhas costas)
a voz primeva, aquela que se revolta:
grita a partir da profundidade uterina
mas também sabe modalizar-se em sons maviosos...

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

torpor da sede

se entre o desespero e a esperança há a revolta
hoje revolto-me
como venho fazendo há tanto tempo:
todo esse ciclo saturnino
30 anos de um anseio não apenas implacável:
não atendido
desdenhado
e eu permaneço me questionando
o que raios eu estou fazendo de errado
e investigando, é claro,
porque não é possível que a culpa seja só minha

sábado, 27 de agosto de 2022

cirúrgico

a crescente em escorpião me ferroou
num momento de esplendor solar
como o bisturi que corta para curar

mas que me deixou sangrando:
depois de atiçar o fogo do meu desejo
me deixou às voltas com meu próprio incêndio
com meu próprio sangue, jorrando aos borbotões 

foi embora sem suturar
revirou a terra, ferveu a água, inquietou o ar
e apenas foi embora

me trouxe bons poemas, é claro
(exceto por esse, cheio de impaciência
e rimas óbvias)

mundo de sombras

espectros circulam por uma dimensão improvável:
milênios para que o acaso nos esculpisse
com o intricado engenho fractal que nos é peculiar

a geometria unitária é o momento zero:
o ponto no círculo é a síntese,
e a verborragia cotidiana é a análise
- mas é bom não analisar demais

ou um simples passeio noturno com os cães
vira um processo de desrealização cognitiva

(em busca do segredo do mero viver)

terça-feira, 23 de agosto de 2022

barren

olho ao redor e tudo é seco
como a nota olfativa de topo:
a areia desértica, árida,
a ressecar minhas narinas

olho além e farejo água
pingando, diligente, do poço do desejo
mas pinga na areia árida
por sua porosidade escorre
não fica nada, nada

o ar elétrico e seco rasga-se
em uma ou outra trovoada
alguns golpes e rajadas de vento
mas não chove
nada molha
não floresce ainda
ainda nada

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

do amor e do silêncio - ⚸

sempre quis sabê-lo e
não me atrevendo a trazê-lo à tona,
cuidava-o naquele canto da mente
que pulsava inflamado, inquieto.

seu nome nunca falhou em me chamar
como quem diz: olha eu aqui!
vem, vem saber o que eu tenho a dizer

saber, dizer

verbos muito, muito abstratos

para quem tanto pensa e analisa
como saber o amor com a superfície do corpo?

ensina-me a pedagogia do arrepio:
o êxtase do silêncio mental

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

limitless

once I felt I had no boundaries
and it cost me intense flows of an energy that I
always suspected was leaking
but I couldn't find where

now I feel the dense lines that contour
my waves and corners
from the softer to the roughest ones

(it increases solitude)
(but it's not as if I wasn't a loner before...)

terça-feira, 16 de agosto de 2022

pobres dos nossos corações que sangram

 "Se tens um coração de ferro, bom proveito. O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia." (José Saramago)

domingo, 14 de agosto de 2022

baby

embute uma terrível metáfora 
nas nossas formas de fazer laços
uma vez que sua natureza é, ainda que análoga,
consideravelmente diferente
daquele sentimento
que a árvore devota a seus frutos.

qual é a palavra que se dá
ao amor entre duas árvores maduras?

(não é baby, nem bebê, nem broto)

(ainda que a paixão nos deixe
indefesos e vulneráveis)

imperfect illusion

(per)feita: criada pelo eu, sobre si e o outro, em mínimos detalhes
- ilusão, generoso véu com que Maya oculta
a vertigem da estrutura fractal da matéria,
a serpente bioluminescente que navega as salgadas águas das células,
a ruptura e o desencontro incontornáveis
que resultam, mais ou menos hora,
do corajoso ato: o salto no escuro.

(I take, I take
the illusive leap of faith
)

"De novo ele me agita,
Eros, o deus que desata os membros,
doce-amargo, indomável,
sombrio animal." (Safo)

(em grego, o animal é a serpente)

mas do perfeito engenho universal
há algo que escapa, refugiando-se
no segundo mo(vi)mento em que o Cosmos se cria:
o metaverso da linguagem.

(nessa imperfeição está o risco,
a radicalidade do fazer ser ou não ser,
gesto que resiste à natural deriva:
irrupções de Caos e/ou Eros,
as duas tonalidades que podemos escolher
ao assumir nossa própria divindade:
o poder de destruir e/ou criar)

(É o Diabo, é o Diabo
todo este atrapalho
tão terrivelmente próprio aos meus instantes de escolha;
um meter constante dos pés pelas mãos,
essa bagunça enorme: luz e vísceras...)



temperança, refrigera meu espírito

traz o tempo e a esperança em seu nome,
processando a têmpera da ardência bruta dos afetos
com suas uranianas águas mágicas, glaciais, fluidas,
que não correm livres como os rios, não:
vertem-se de um cântaro a outro
- lemniscata da eternidade desdobrada - 
a moderar, com destreza, o (in)visível,
alquimia exigida pela dança universal.

o anjo-menina-mulher que mora aqui
o é à imagem e semelhança da arcana:
suas águas não são cósmicas nem míticas.
são uma coleção singular de gozos e lágrimas,
as más águas de uma já longa memória,
vertidas daqui pra lá, de lá pra cá,
no inexorável curso das horas...

A Temperança de Salvador Dalí (1970s)

"A Temperança limpa nossas percepções defeituosas ligando-nos, de um modo divino e humano ao mesmo tempo, ao mundo imutável além do alcance da foice do tempo." (Sallie Nichols, Jung e o tarô: uma jornada arquetípica, p. 255)





quarta-feira, 10 de agosto de 2022

just the same/but not exactly

o tempo foi passando e eu percebi
que é sobre mim mesma
a torrente
o trovão
a tempestade
furiosa
revolvendo-se sobre o eixo
eu no centro
tentando segurar a vertigem
(a náusea)
e, quando acalmados os ventos:
manter a vigília
a mente sã
o coração acelerado, embora,
palpitando de masoquista gozo
- oxitocina e adrenalina

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

escrever

a gente escreve boa poesia com as vísceras,
essas mesmas que nos são demandadas
para a bondade e a gentileza
em um mundo tão tão inóspito
para sensibilidades aguçadas e cultivadas.

é doloroso o vir-a-ser
quando experimentado com 
atenciosíssima perquirição 
de cada um dos seus delicados movimentos.

eles - os movimentos -
são o entrechoque dos átomos,
a matéria visível versus a matéria escura,
as ondulações da cauda do peixe beta
condenado a viver em um ínfimo aquário.

a natureza da totalidade é inenarrável
mas carrego-a comigo, a me tocar os nervos
incessantemente
até que participar do mundo
de forma mais ou menos funcional
torne-se uma verdadeira
missão impossível.

(escolho o embotamento
em nome de uma existência viável
- pelo menos por enquanto)

domingo, 7 de agosto de 2022

maleness (2)

porque meu corpo me convoca à justiça:

mais do que sei, sinto
o toque que repousa sobre a pele
- mas, antes dele,
o calor que irradia de uma proximidade anunciada.

como o sol que, num dia frio,
surpreende minhas costas num acolhedor
abraço-afago-surpresa
(às costas também se recebem boas surpresas,
não apenas traição).

mais do que sei, sinto
- e temo o que há a se saber sobre o sentir -,
e ressinto meus sentidos turvos
a colher os primeiros registros
of this so quite new a thing:
your body when it is against my body
.

porque meu corpo me convoca à justiça:
não sei mentir;
quero jogar, mas de forma honesta;
esse é o mundo que quero criar ao meu redor.

mais do que sei, sinto:
o corpo, testemunha dos encontros.

(trust your vision, trust your guts)
(it's so easy to laugh, it's so easy to hate
it takes guts to be gentle and kind
)