quinta-feira, 16 de maio de 2024

pra que canções de amor

se o amor está morto?

que sejam canções fúnebres,
de modo que, representando o real,
nós possamos despertar

e pensar em despertá-lo

(mas não se engane,
esse não é um poema tão esperançoso assim...)

domingo, 12 de maio de 2024

à sombra, um novo lugar

o beijo de Eros em minha alma alheada.
quem te beijou fui eu –
quem quis,
quem fui,
quem fiz.

sob tal responsabilidade, respondo como
quem banca o próprio desejo –
"sem apego ao fruto",
tenho dito às minhas pupilas,
para que também elas tenham coragem
de dar o salto de fé no escuro.

sem as lentes, as formas difusas
ganham um grau a mais de angústia,
esse anseio doloroso.

à luz da janela noturna
diviso, mesmo assim, seus contornos,
fantasma do meu desejo ganhando corpo.

domingo, 5 de maio de 2024

laudo inconclusivo

pensamos, pensamos, pensamos
falamos - falei um bocado
chorei largado, que é o que eu faço
daqui pra frente, ainda não sabemos bem

o que fazer?

terça-feira, 30 de abril de 2024

nas fibras da pele

esconderam-se as moléculas
da essência marinha amadeirada
que você trouxe consigo
e me transmitiu por meu convite

- o problema não é o abraço, meu amigo...

domingo, 28 de abril de 2024

raízes

a delicadeza da flor me chamou:
atraída pelas cores iridescentes
de suas pétalas macias,
meus dedos abraçaram, 
ansiosos, mas docemente,
sua frágil composição.

minhas narinas buscaram
a nascente do aroma
que, de longe, eu intuía.
inebriada, desejei passar
dias e dias entregue
às vertigens dos sentidos.

em seus galhos me entrelacei
de forma ousada, quase como
se invadisse, sôfrega,
os limites de uma roseira,
ignorando, incauta,
os avisos dos espinhos.

em seus veios internos mergulhei:
em cada curva, em cada escolha,
me admirei com seus fragmentos,
os pequenos orbes de sentido,
pacotes luminosos de memória,
constelações em transformação.

no âmago de seu tronco
arquitetei minha morada:
entre as estreitas paredes
de seu sistema vascular
expandi minha presença,
tentando, aos poucos,
me fixar em seus caminhos.

o seu corpo em movimento
- pequeno espelho do mundo -
me colocou à deriva.
inapelavelmente corri,
junto à seiva, floema abaixo,
e pelos mais extremos poros

retornei à terra quente
onde, um dia, eu mesma florescerei.
quem sabe?, então, assim,
você venha até mim (novamente),
munido de curiosidade e desejo
que te façam querer chegar

às raízes do meu ser.

[só as flores de plástico não morrem]





sexta-feira, 19 de abril de 2024

temperos

o dela tem pimenta
o do meu bem é o curry doce
o meu, as ervas de provença
com a presença marcante do alecrim
e o êxtase do manjericão

quinta-feira, 18 de abril de 2024

o que se canta sobre a sereia?

ouvi-lo cantar é um espinho que

estava parado, quieto,
sem ninguém mexer com ele
talvez até cicatrizado?
calcificado nas bordas, pelo menos
já não sangrava, só estava lá, quietinho

e então algo se mexe
e eu me dou conta
da profundidade em que ele se infiltrou
na minha carne

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esteróides androgênicos

bondoso ≠ pacífico ≠ atlântico

na praia da paciência
em frente à casa da felicidade 
junto à cauda da Jubarte
a sereia da água doce
em seus tons rosa-quartzo
lê o palimpsesto:
"só Deus pode me julgar"
sob
"felicidade não é sobre ter tudo pra você"
(happiness is not about getting all your(s))

diga-me com quem andas

e a natureza relacional do ser humano.
ánthropos-,
não andro-,
nem gino-.

à parte as interseccionalidades,
há as escolhas éticas e morais.
daí que

sexta-feira, 12 de abril de 2024

consortes

minhas irmãs,
onde estão vocês?
com quem eu compartilho,
em semelhança de minúcias,
o meu destino pequenino?

quinta-feira, 11 de abril de 2024

no fim, sempre se casam com as princesas

não com as bruxas
obviamente

alguns casos são de divã
outros, de guilhotina

terça-feira, 9 de abril de 2024

gritos e sussurros

da minha pele em pânico
pela monumental mudança
que a roda viva instaura
(na minha vida - não,
ou sim, é claro,
mas nunca do jeito que eu esperava que seria
nunca é, afinal) 

quarta-feira, 27 de março de 2024

crônicas da misericordilândia

chove em nossa terra. 21ºC, uma manhã fria no alto da colina, a chapa quente dentro dos portões e portas da escola. sobe o vapor barato do desleixo.
o nome do nosso sistema de governo é a autocracia fundamentalista burguesa. antes de toda e qualquer coisa: eu. eu em segundo, eu em terceiro e, se sobrar alguma energia, talvez, quem sabe?, dependendo da maré de hoje... ah, hoje não porque amanhã é recesso.
as nuances são misteriosas: quem é que manda, afinal? eu ainda não entendi bem, por isso escrevo. se você souber, por favor, me escreva.
sendo professora da misericordilândia, confesso: estou exausta. mas... e se não resistir? e desocupar? entregar tudo pra quem? em vão? o que será? Criolo tem sido tão bem sucedido em me ajudar, por isso vivo convocando o meu Buda. até o Profeta eu saquei, das catacumbas da memória, pra vir em meu socorro.
professor, profissão de profeta. quando a profecia é sombria para o poder instituído, cegam-nos e jogam-nos no labirinto das sombras.
acontece que eu sou amiga do vale da sombra da morte e, por isso, já não temo mais mal algum.

sexta-feira, 15 de março de 2024

os seus filhos gostam

quem diria!
Jorge Maravilha,
prenhe de razão,
sabia que as crianças precisavam de
menos raciocínio lógico
e
mais produção literária

<3

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

a dobradinha da tia Sônia

    Houve em dois dias, pelo menos, de que eu consigo me lembrar. O primeiro foi feijoada; o segundo, dobradinha. Houve também um Natal, com rabanadas - não sei se o mesmo em que, aos dezenove, percebi que acontece de as famílias serem casas fraturadas em sua medula.
    Enquanto lavava a louça, é claro: é no trabalho doméstico que nos irmanamos, as mulheres da família. Tentamos escrever histórias novas, prometendo aulas de inglês para as primas, mas a herança mais forte ainda está muito próxima em termos geracionais.
    Eu adoro dobradinha e feijoada. Gosto muito da ideia da família reunida, mas só no campo da idealização. Pode ser que haja famílias que caminhem bem sobre as próprias pernas: a minha, não. Retraímo-nos em um núcleo fundado na exploração do trabalho doméstico das mulheres e na depredação de sua autoestima - como é de nossa praxe dita civilizacional. E eu ainda tomo como falha pessoal a minha dificuldade de expandir meu passo pelo mundo...
    A vizinha berrou o dia inteiro com as duas meninas. Meu coração treme, nervoso. Meu cérebro se exaure imediatamente, derrotado, angustiado com a repetição do trauma. Tenho trinta e dois anos, mas meu corpo se lembra de muita coisa passada. Meu corpo é mais sábio que eu, e eu ainda não aprendi a escutá-lo.
    O que é feito do amor nesses contextos de violência e abuso? Eu não consigo entendê-lo bem, ainda. bell hooks diz que eles não coexistem, amor e violência. Mas na casa fraturada reuníamo-nos, vez em quando, ao redor do fogão de lenha com a panela fumegando cuidado. As mulheres... Algumas de nossas faces são as da guardiã violada, Medusa que grita para nos petrificar de horror.
    Além dos gritos e do choro desesperado de criança, de vez em quando também sobe, da casa da vizinha, um cheiro bom de comida boa...