sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

meio Mar Becker, meio Claudia Lisboa

adivinhar na arte de amar do outro
quais artérias do desejo pulsam mais forte
as nuances de seu ser em trajetória

atiçar seus, nossos rios de fogo
achar-lhes um ritmo comum
afinado com a harmonia das esferas

descobrir-lhe os traços distintivos
que podem ser, talvez, sugeridos pelos astros
- mas essa é só uma curiosidade à toa

(nada melhor que a graça de apenas ser)

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

lábios, dentes, língua

pródiga mente que jorra aos borbotões
ideias furiosas
pródigo corpo que se expande 
em tentáculos e mandalas
seus dedos tenros e suaves
arrepiando minhas carnes ansiosas

"não, não quero me envolver
e depois enjoar de você"

domingo, 4 de dezembro de 2022

sonhar é melhor que viver

uma frustração galopante, velha amiga, me arrebata em seus macios braços
e me leva para a cama, me aninha, e eu não tardo em adormecer.
sete pares de horas - e alguns acréscimos -, meu ser ausente desse plano
maléfico, maldito, em que o futuro é sinistro, o presente é difícil
e o passado, doloroso.

antes fossem apenas os problemas de gênero o que me aflige,
o que nos aflige, todas nós, as que nascemos sob o signo da Terra.
mas são eles, sim, a ponta de uma lança cujo comprimento não importa:
seu poder de destruição está na violência do golpe, na frieza da intenção.

no meu sonho adormecido, em que a aflição se faz presente, mas não machuca
- porque não é real no plano concreto, esse que tenho o prazer de poder ignorar -,
minha casa é um palacete, cheia de perigos iminentes, necessidades de reparos,
mas circundada por uma vegetação fresca, ar limpo, sem o tóxico cheiro
da fumaça produzida por escapamentos antiquados.

as aventuras com o Outro são quase análogas:
revejo amigos queridos, revestidos de memórias dúbias, mas não há ressentimentos
(eis uma palavra estranha, um caleidoscópio de amargores
- e não é como se o amargo fosse sempre um sabor repulsivo,
mas tudo o que é muito peca pelo excesso
e eu não tenho conseguido, nunca, equilibrar esses pratos...).

caminho pela rua de trás de minha antiga casa concreta
- a vertiginosa sobreposição de significantes - 
e nela há uma sequência de portas e janelas
de uma vizinhança sinistra e deslumbrante
como as ruas de Santa Teresa - mas sem as colinas.

entro e saio por essas passagens
colhendo rastros de outras vidas
montando quebra-cabeças orgânicos
não encontrando, é claro, o que eu queria
- mas, ao contrário da vida real,
no meu sonho eu obtenho resposta.

(no lindo mundo da minha imaginação
as pessoas agem como eu espero,
a vida é justa, 
a dor tem cura.

no horrendo mundo da alienação capitalista
compra-se anestesia para a alma
[nem todo mundo pode comprar],
a vida não precisa ser justa,
a dor pode ser ignorada.

um arrepio me percorre por dentro,
ao imaginar o momento em que a panela de pressão vai explodir:
isso não tarda.)