quinta-feira, 25 de julho de 2024

vez em quando

me lembro de lembrar de você
e me dá um aperto
de o nosso amor não ser sustentável
como não o é nenhum outro
em que eu me ponha em trabalho
pensando que as coisas acontecem
só porque eu quero que sim 

às vezes não é pra ser
e tudo bem desistir,
tudo bem

tenho pensado em você,
lembrando que
a primeira vez
em que pensei em escrever muito
sobre uma única coisa
foi quando te vi, e sua imagem
grudou no meu mundo interior
e foi se desdobrando
numa fantasia louca
em que me joguei
sem calcular nada, nadinha,
por um bom tempo

e até que deu em alguma coisa,
porque meu coração é sincero
e você é sensível 

...................................................

na segunda vez
em que pensei em escrever muito
sobre uma única coisa
estava desesperada
com o fundo mais fundo da minha alma 

era a minha história pessoal
o que eu precisava desenhar
para mim mesma, é claro
- tudo isso aqui é pra mim,
principalmente 

...................................................

na terceira vez
em que pensei em escrever muito
sobre uma única coisa
era a história do outro
condensado em um bode expiatório
que eu quis narrar
com ares de conhecimento de causa
uma pitada de ressentimento
e a curiosidade que me é própria 

...................................................

sobre nenhuma dessas três coisas
eu quis escrever tanto assim,
mesmo,
afinal.

melhor ir soltando fragmentos
pedaços de dias e pensamentos
a partir dos quais eu vou contando
o que eu quero escrever
um pouquinho só
sempre
sobre vocês
e você
e eu
e tudo o mais
ou nada
se eu não quiser





segunda-feira, 22 de julho de 2024

oh no

quisera poder pegar
entre as minhas mãos, como
um punhado de areia
(do deserto?)
- antes: a água que mina da fonte
do oásis - 
e não simplesmente deitar fora
ou sorver
(por mais que pareça até uma boa,
como naquele beijo de morango),
mas afagar docemente,
como a um pássaro
que se feriu pelo caminho
porque, ora,
ele gosta de voos radicais
e não há descanso no ninho

o seu coração




sexta-feira, 19 de julho de 2024

o que fica

uma delicadeza inédita
que eu não costumava perceber
- quem terá mudado: eu ou você? -
ou foi o empilhamento dos anos
que operou seu ofício transformador

meu coração, exultante,
não queria nem tecer essas palavras
- tão acostumado está aos dissabores
que mal sabe cantar a alegre satisfação -

seu coração, exaltado,
martelando forte no peito amplo
- exposto à força da necessidade -
e eu reparando, incrédula,
rosto e ouvido colados

(eu celebrando o básico, talvez,
mas há que se reconhecer os milagres,
goles improváveis de água fresca
em meio à selva de pedra)



quarta-feira, 17 de julho de 2024

é isso

    da mesma forma que eu anseio
    por algo que você não tem
    menino
    você anseia por algo
    que só vai encontrar
    quando aprender
                a confiar
          e se entregar

    (o caminho não é de volta
    à santa ignorância
    e é o contrário da solidão
    como vêm pregando
    os sinos, e eu com eles)

    (eu posso contar essa história
    mas gosto tanto de quando
    ela conta a si mesma...)

terça-feira, 16 de julho de 2024

testemunho

    uma palavra carregada de temor
    que, penso, é tão apropriada
    para os nossos tempos apocalípticos
    - não porque seja o fim do mundo,
    mas o fim de um mundo conhecido.

    dentre as profecias, preferiria aquelas que
    cantam um vindouro menos:
    indiferente
    amargo
    cínico
    doído
    triste
    só

    empilhamos nossas cavernas em espaços bem delimitados.
    trancados a sete chaves, temos tudo de que precisamos
    para cultivar a ilusão
    da autossuficiência.

    empilho meus versos em unidades de ideias
    que me ajudem a passar por esses dias
    áridos, porque a sombra que se projeta
    por sobre nossos corações e mentes
    é imensa, inequívoca,
    e eu não consigo não vê-la.

    (meus versos,
    minha caverna solitária,
    refúgio do meu eu íntimo
    que não deixo, também,
    de tentar espalhar por aí
    - dentre as profecias,
    há as que prefiro...)

domingo, 14 de julho de 2024

sad babies' club

vi outro par de olhos passando,
uma sombra circundando-os,
uma rede de rugas, algo de opaco

que costumeiramente vejo, também, no meu espelho
- o do banheiro, que nunca mais te viu, nem verá, mas
em que eu me encontro: inescapável,
sob circunstâncias habituais

daí percebo algo que nos une, ainda que não suficiente
para a brutal colisão que eu almejo,
uma que abale as estruturas e ponha tudo no chão
e nos faça reorganizá-lo juntos:
uma costura de linhas temporais

mas não, não, não.
o que eu tenho é a negativa,
pensamentos pensando pensamentos
e um longo passado à espera
de eu fazer as pazes
comigo
mesma
mesmo



contorno

"...people can't, unhappily, invent their mooring posts, their lovers and their friends, anymore than they can invent their parents. Life gives these and also takes them away and the great difficulty is to say Yes to life."

Giovanni's room - James Baldwin

ao redor da liberdade
circulamos uma
duas
três vezes
mil voltas e voltas 

tentando reconhecer suas saídas
e entradas
qual reta leva a que caminho
onde estão as contramãos

sabendo que todo o fluxo
gira em torno
desse sumidouro

cada elemento
encontra seus pares
nas esquinas das ruas,
nos casarões, nos parques

nos longos muros
que margeiam os córregos

os mundos se chocam e fundem, mas eu,
à beira do abismo, me posto
e observo

a centrífuga dos encontros
e a densidade dolorosa
em que colido comigo mesma

e desmorono


sexta-feira, 12 de julho de 2024

garrafas ao mar

velejar, velejei
no mar da ilusão 
com o barco da fantasia
esbarrei numa ilha
o barco afundou
eu, as garrafas,
os papéis, uma pena
a tinta contada 
o tempo contado 
os derradeiros gestos 
inúteis 



quinta-feira, 11 de julho de 2024

continuando

    o que são 30 minutos de Mayara falando
    (ou escrevendo uma dúzia de versos indolentes)
    diante dos 3 fucking mil anos de patriarcado
    - quando o patriarcado nem é o início da história
    da opressão das mulheres?

    você poderia até pensar se tratar de um melindre meu,
    só um vômito em resposta ao nojo que me desperta
    esse comportamento ridículo e repetitivo
    naturalizado


    mas o buraco é tão, tão mais embaixo...




eu posso contar essa história

    do menino bom, filho amoroso e atencioso, e sua saga no planeta Terra durante o capitaloceno
    - sobre o qual levanto suspeitas, é claro,
    uma vez que
    pense só: "a soberania terrestre é vegetal:
    as plantas representam mais de 80% da biomassa terrestre,
    enquanto os seres humanos correspondem a 0,01%".
   
    quero dizer:
    quem deus pai pensa que é 
    diante de mãe Gaia?

    não tem nem antropoceno, nem capitaloceno,
    quem vamos morrer somos só nós, infestação maldita.
    Pachamama ficará numa boa quando se ver livre...

    (me condene por fuga ao tema, mas só agora.
    a história continua.)




terça-feira, 2 de julho de 2024

lua doida

os significantes do feminino não lhe são exclusivos.
ainda bem, é claro - mas, nossa,
o que eles não significam quando habitam diferentes corpos
e suas tão discrepantes socializações?

para uns, a insaciável gana de ter mais e mais
ao ponto em que a dignidade se torna negociável
e não se consegue mais falar em amizade,
essa categoria política.

para outras, a neurótica demanda de qualquer coisa
que eu não sei bem o que é
- o sol absoluto do sentido: resposta? -
e então a chamo de "insatisfação crônica".

para todos, essa solidão profunda,
significado-síntese da inescapável realidade 
da condição humana

(que, feliz e paradoxalmente,
tem como ser transmitida
e compartilhada).



segunda-feira, 1 de julho de 2024

ancestral

Hoje acordei agudamente cansada de ser gente.

    Ser qualquer outra coisa viva. O ar, a água. Um polvo. Um cachorro. Uma abelha. O mato que cresce à beira de um lago a vários metros de altitude. A cabra que pasta esse mato. A colônia de bactérias que ajuda essa cabra a digerir esse pasto.
    A lua, não - muito cheia de sentido humano. Uma estrela novíssima, recém-nascida, ainda não captada pelas super lentes da NASA. Talvez (tomara!) nunca captada. Ou uma antiquíssima, de brilho tênue e bruxuleante, seus fótons derradeiros viajando, esparsos, pelo espaço sideral.
    Qualquer coisa, menos isso que, não importa o quanto eu investigue e pense e sinta e treine e teste e coloque para jogo, corajosamente, é sempre um balde de água fria em um dia frio - meu primeiro dia de férias.