sábado, 26 de dezembro de 2020

Feliz Natal II

[A autoria não é minha - ela vem indicada ao fim do texto.]


jesus jacobino


Meu reino não é deste mundo.

JESUS


A história é um pesadelo do qual quero acordar.

JAMES JOYCE


Eis que o reino de Deus está dentro de vocês.

LUCAS, 17,21


Jesus, reformador ou revolucionário?

Essas categorias são muito modernas, filhas das Revoluções francesa, russa, mexicana, chinesa e cubana, talvez as únicas, até agora, dignas desse nome.

A tomada do poder pelas classes oprimidas raras vezes (alguma?) ocorreu na história.

A doutrina de Jesus, porém, tomou o poder no Império Romano, sem disparar um tiro, quer dizer, sem disparar uma flecha nem levantar uma espada.

Isso é um fato.

Como é fato que foi a burguesia quem inaugurou a idade das revoluções, com essa Revolução Francesa, que Lênin e Trótski, pais da russa, chamavam A Grande Revolução.

Nela, a atuação mais radical foi a do Partido Jacobino, liderado por Robespierre, dito o Incorruptível, oposto aos girondinos, de tendência moderada (1793-4).

Durante a breve ditadura dos jacobinos, milhares de cabeças rolaram na guilhotina, condenadas pela sumária justiça revolucionária (revoluções não costumam primar pela gentileza nem pelas boas maneiras).

Robespierre e os jacobinos queriam a pureza máxima do ideal revolucionário: democratização, republicanismo, secularização, em uma palavra, o racionalismo da burguesia iluminista, moldando a sociedade à imagem dos seus interesses e à semelhança dos seus negócios.

Robespierre pode parecer o paralelo mais inadequado para Jesus. Nenhum símile entre quem salvou a adúltera de apedrejamento, contra as leis de Moisés, e o advogado que, 1790 anos depois, condenou à morte, implacável, seus próprios companheiros de partido e de militância, com o rosto de pedra de um rei assírio. Uma coisa, porém, Jesus e Robespierre têm em comum. Eles querem o exagero, a pureza de um princípio.

Nisso, são revolucionários. Apenas os métodos diferem.

Erro pensar que Jesus veio abrandar os rigores farisaicos da religião de Israel. Ele veio para tornar mais agudas as exigências dessa fé.

Um dos pontos essenciais de sua doutrina é a interiorização dos ritos

Daí, sua hostilidade constante contra o exibicionismo da piedade dos fariseus.

Jesus os detesta porque mandam tocar trombeta na hora em que vão depositar esmolas no templo, para que todos saibam como eles respeitam a Lei.

Os fariseus lhe devolvem o rancor na mesma medida, classe ideologicamente dominante (o poder romano era inteligente demais para mexer na religião dos seus incontáveis súditos, pontuais pagadores de impostos, que importa que não adorem?). Influências essênias, contato com João, o Batista, Jesus acelera ao máximo essa tendência de interiorização dos ritos judaicos, que já tinha começado com os profetas, no século VII a.C.

O dentro e o fora começam a desaparecer: exterior e interior tendem a se encontrar num ponto infinito.

Jesus está inventando a alma: o supersigno que todos somos “dentro”. Essa, talvez, foi a sua revolução, a mais imperceptível de todas.

Jesus ocupa um lugar muito especial na lista dos Cromwells, Robespierres, Dantons, Zapatas, Villas, Lênins, Trótskis, Maos, Castros, Guevaras, Ho-Chi-Mihns, Samoras Machel.

Talvez seja inadequado aplicar à irradiação da doutrina de Jesus o qualitativo de “revolução”, uma categoria política essencialmente moderna, afinal, com implicações não apenas ideológicas, mas, sobretudo, econômicas, administrativas, sociais e pedagógicas. E bélicas. Uma categoria essencialmente laica.

A saga de Jesus só faz sentido no interior de um mundo de intensidade religiosa máxima, como o judaísmo antigo, onde as motivações da fé comandavam todos os aspectos da vida. Uma existência inimaginavelmente mais rica do que esta jângal sem grandeza que é a vida das grandes massas nas megalópoles abortadas pela Revolução Industrial.

Só um energúmeno iria pedir a um profeta da Galileia, na época de Augusto, programas concretos de reforma agrária, projetos de participação nos lucros da empresa ou altas estratégias de tomada do poder através da organização militar das massas.

Ninguém, porém, que conheça os evangelhos pode deixar de ver o caráter violentamente utópico, negador (utopias são negações da ordem vigente: o imaginário é subversivo), prospectivo, des-regrado(r) da pregação de Jesus. Nem vamos sublinhar o teor popular de sua doutrina.

Impossível superar esta bem-aventurança:


Felizes os pobres,

porque deles é o reino.


A contradição (binária) pobre x rico, a mais elementar de todas, Jesus viu. E fulminou, brilhante:


Mais fácil

passar um camelo

pelo buraco de uma agulha

do que um rico

entrar no reino dos céus.


O profeta era radical:


Não se pode servir

a dois senhores:

a Deus e a Mammon.


Mammon, a divindade cananeia, cultuada pelos comerciantes, que propiciava bons negócios e fortuna em dinheiro.

Com Mammon, Jesus não queria parte.

Mais que populismo, esse pauperismo de Jesus parece ter raízes na tradição judaica.

Jesus apresenta traços ebionitas.

Ebio, em hebraico, é “pobre”.

Os ebion constituíram uma seita judaica, uma habhurah, anterior a Jesus, que se transformou numa das centenas de seitas judaico-cristãs que proliferaram por todo o Mediterrâneo, depois da morte do profeta.

Seu credo fundamental consistia em afirmar a santidade essencial da pobreza, da penúria de bens, da frugalidade, uma doutrina contra o ter.

O tema ebionista foi modulado muitas vezes na história do cristianismo, sempre com implicações subversivas e utópicas: Francisco de Assis, um dos seus momentos mais altos. Concílio Vaticano II. Igreja dos pobres, no Terceiro Mundo. A essencial subversividade (“negatividade”) da doutrina de Jesus revela-se, porém, na própria realidade que ele anunciava, uníssono com os profetas de Israel: o iminente advento de um Reino. O Reino de Deus.

Um momento de atenção na palavra “reino”, vocábulo político, com implicações de poder, autoridade e mando.

Jesus não inventou a expressão nem o tema. Já está lá em Abdias, o mais antigo dos profetas (século VII a.C.).

O Reino de Deus era a restauração da autonomia nacional do povo hebreu. Sobre isso, a autoridade romana não se equivocou, ao pregar o profeta na crux, exemplar suplício com que os latinos advertiam os rebeldes sobre os preços em dor da sua insurreição. Esse, o suporte material, socioeconômico-político, da pregação, por Jesus, de um (novo) Reino, um (outro) poder.

Nessa tradução/translação do material para o ideológico, Jesus forneceu um padrão utópico para todos os séculos por vir.

As duas grandes Revoluções, a Francesa e a Russa, estão carregadas de traços messiânicos de extração evangélica.

Ambas prometeram a justiça, a fraternidade, a igualdade, enfim, a per-feição, o ideograma da coisa-acabada projetada sobre o torvelinho das metamorfoses.

Natural que seja assim. Afinal, as utopias são nostálgicas, saudades de uma shangrilá/passárgada, estado de excelência que lá se quedou no passado, Idade de Ouro, comunidade de bens na horda primitiva, antes do pecado original da divisão da sociedade em classes, plenitude primitiva, paleolítica, intrauterina, antes do pesadelo chamado história.

Apokatástasis pánton, locução grega, registrada nos Atos dos Apóstolos, expressa a esperança de Jesus e da Igreja primitiva (das Igrejas). “Restauração de todas as coisas”, mas também “integral subversão de tudo”: apocatástase.

A revolução é o apocalipse, o Juízo Final de uma ordem e de uma classe social: o cristianismo primitivo cresceu à sombra da expectativa da segunda vinda, quando Jesus, vitorioso sobre a morte, voltaria, apocalipticamente, para julgar, ele que foi julgado e condenado pelas autoridades: o retorno do reprimido, a vendeta, o acerto de contas entre os miseráveis da terra e seus prósperos opressores e exploradores.

Nenhuma das religiões da terra foi construída em torno de um mito tão forte, tão fundo, tão básico.

A única exceção, quem sabe, seria o budismo.

Afinal, budismo e cristianismo têm um lugar para dialogar no tema da dor. E na nota da solidariedade. Da sim-patia, da compaixão.

Por aí, o budismo e o cristianismo, também, podem conversar, ainda, com o comunismo, cujas metas e mitos guardam tantos parentescos com as vivências mais fundamentais de um príncipe do Nepal chamado Buda e de um “rabi” hebreu, filho de um carpinteiro, chamado Jesus.

A força política da ideia de Jesus, porém, está no estabelecimento de um ultralimite.

Amar os inimigos? Vender tudo e dar aos pobres? Ser “prudente como as serpentes e simples como as pombas”?

O programa de vida proposto por Jesus é, rigorosamente, impossível. Nenhuma das Igrejas que vieram depois invocando seu nome e cultuando sua doutrina o realizou. 

Religião saída de Jesus não poderia ter produzido Cruzadas, inquisição, pogrons e as guerras de religião entre católicos e protestantes, que ensanguentaram a Europa nos séculos XVI e XVII.

O programa de Jesus era uma utopia.

Curioso que, na frondosa bibliografia sobre os socialismos utópicos, nunca apareça a doutrina de Jesus como uma das mais radicais.


LEMINSKI, Paulo. Vida: Cruz e Souza, Bashô, Jesus e Trótski – 4 biografias. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 216-221.

Um comentário:

  1. "Fariseu era basicamente um partido, teológico, mas com movimentações bem políticas (eu não os chamaria de uma classe, mas parte de uma classe dominante sim... Mas sob a colonização de Roma ainda assim...)

    Sobre aquela parte 'somente um energúmeno...' Tinha várias revoltas sim... Os macabeus são um exemplo... Tá na bíblia católica... Os judeus até tem celebração a eles no calendário, mas não lembro quando..."

    "É super complexo esse negócio da santidade na pobreza... Porque ao mesmo tempo tinha outros ricos que seguiam jesus e tinham o coração generoso e não eram repreendidos... Como o José de Arimatéia, que é quem arruma o túmulo pra jesus... Acho que até o ajuda a carregar a cruz"

    "Mas eu acho sim que tem um olhar mais carinhoso pro lado dos pobres, mas porque quem tem riqueza é cobrado bem mais"

    "eu faria esse sentido da interiorização por outro caminho..
    Tipo quando ele fala do adultério em pensamento..." (D.V.)

    ResponderExcluir

:)