[A autoria não é minha - ela vem indicada ao fim do texto.]
"Acho que, de todas as provocações que fiz a sociedade, nenhuma delas é mais grave pra mim que a que eu vou fazer agora.
Porque, com a necessidade de criar estratégias para que se dialogue politicamente com evangélicos, eu preciso voltar alguns passos atrás para explicar pra você, que não é da igreja, o que se passa dentro. Mas não tratar você como uma criança. Te dizer algumas verdades, algumas delas, que os crentes não suportariam ouvir.
Fico entre a cruz e a espada.
Mas Jesus não é Deus.
Jesus foi "tornado" Deus no Concílio de Nicéia, no ano de 346 D.C. Ou seja, o jovem, negro, marginal, morto pelo Império, odiado pelos religiosos do seu povo, virou Deus, 400 anos depois, fruto de delírios e disputas de poder.
Jesus foi um judeu marginal.
Morto como um marginal. Odiado e excluído do meio do seu ambiente religioso. Vou repetir: odiado, e excluído dentre os religiosos de seu tempo.
Morto como um excluído, um indigente. Um gentio. Um incircunciso, a morte dos incircuncisos.
É importante dizer uma última vez:
odiado e excluído pelos seus.
Nenhum dos judeus seguidores de Jesus consideravam que ele fosse Deus. Isso não é possível, na teologia do "movimento de Jesus", original, apesar dos esforços teológicos posteriores.
Jesus não é Deus.
Mas há ainda duas outras coisas, que, como disse, são as mais graves que já escrevi, mas que você precisa saber.
Jesus não nasceu como obra e graça do Espírito Santo.
Ele era filho de alguém. Alguém com dois braços, duas pernas, sangue nas veias, junto com Maria.
Sabe-se lá quem foi o pai de Jesus.
Quem sabe José acolheu Maria grávida e assumiu o filho, por pena. Uma jovem, dos seus 17 anos, largada grávida na madrugada, José, com seus 65 anos, já com outros filhos, uma família que morava junto com ele, de aproximadamente 40 pessoas num tipo de vila, ele levou Maria pra dentro da sua família.
Casou, na forma da lei. Ela, com 17, podia casar. Com 13, naquela sociedade, você já era maior de idade.
Jesus nasceu ali, nesse contexto.
Teve 4 ou 5 irmãos, negados pela Igreja Católica, mas citados na Bíblia.
Jesus era um menino sem pai biológico, crescendo de maneira confusa, buscando a transcendência, a ludicidade, não se encaixando no que havia ali.
Com certeza, seria fora da curva.
Com romanos pendurando corpos na entrada de cada cidade e aldeia judaica, para mostrar quem mandava ali, Jesus passou por toda a infância por corpos pendurados, e mortos, apodrecendo no sol.
Assim como crianças no morro, assim como eu, passei por corpos apodrecendo na esquina, mortos pelo BOPE.
Jesus tinha em si elementos, fios soltos o suficiente, para se tornar um hippie que pregava a ruptura com o cerimonialismo, o legalismo, o moralismo.
Por isso foi amigo de putas.
Suas escolhas, quando adulto, foram para um outro lado.
Optou pelos marginais, mendigos, leprosos, putas, mulheres, ladrões, todos aqueles que aquela sociedade também excluía.
Tem razão os estudiosos judeus em ferirem a imagem dele.
Porque ele, primeiro, questionou esses judeus e seu sistema.
Era um jovem sem controle.
Cavou a própria morte.
Os religiosos não o queriam, o governador não o queria, e ele passou a ser visto como uma ameaça a Cesar, na medida em que começou a ser chamado de 'rei', 'rei dos judeus', dos judeus marginais, do povo, os não-eruditos.
Feiticeiro. Dizia curar pessoas. Amigo de prostitutas. Falso profeta.
Jesus foi o responsável pela própria morte. E no fundo, sabia.
Mas os marginais continuaram com ele. E esses marginais não conseguindo voltar para o sistema, projetaram nele a experiência de liberdade.
Então vem a terceira coisa.
Jesus não ressuscitou.
Quando morto pelos policiais romanos, seus seguidores disseram 'Jesus Vive', tanto quanto nós, na Maré, dissemos 'Marielle Vive'. Mas nós sabemos que essas pessoas não vivem. Seus IDEAIS vivem. É licença poética. Nada mais.
Ocorre que Jesus pregava a transcendência, Marielle não.
Então, é natural que dele saísse uma experiência mística e dela, política.
Jesus morreu. E ficou morto. Provavelmente eram dele os restos mortais, em Talpiot, encontrados por volta do ano 2000. Yehoshua ben Yossef. Jesus, filho de José. Ao lado dos restos mortais de Yaco'ov ben Yossef, Tiago, seu irmão, líder da comunidade em Jerusalém. Lembre-se, todos os que seguiam Jesus eram exclusivamente judeus.
As comunidades primitivas do chamado "movimento de Jesus", eram compostas por pessoas que queriam se desligar do sistema e criar uma fraternidade. Com erros e acertos. Os primeiros hippies, os primeiros comunistas.
Deu merda.
Porque alguns foram mortos. Outros se espalharam para África. E um deles, pra Europa.
E esse um, foi o que empoderou o Império Romano,
e deste processo, nasceu a Besta.
A Igreja Católica Apostólica Romana.
E dela, o mal do mundo.
Esse um, Paulo, seu nome original, Saul, Sholomo, foi judeu erudito, falava aramaico, latim e grego, foi aluno de Gamaliel, este, discípulo do venerável Rabbi Hillel.
Paulo inseriu os gentios nessa história. E disse que Jesus era uma esperança não apenas para os judeus, mas para todos os povos. Sim, deu merda.
A Igreja Etíope seguiu seu rumo, mais próxima da experiência original, sem oprimir ninguém.
A Europa, porém, tornou o marginal em poderoso. E no nome dele, derramou sangue. O Império precisava de uma nova religião para oxigenar seu poder no povo. Criou a própria, juntando elementos diversos num único monstro teológico. O catolicismo.
E os protestantes até que tentaram, saindo disso mil anos depois, criando seus próprios sistemas. Mas geraram mais sangue, pois legitimaram o capitalismo, e os Estados Unidos.
E destes, saíram os evangélicos.
Um misto de milênios de idolatrias, misticismo, ódio, e desejo por poder e dinheiro.
Qualquer teólogo sério sabe que o que estou dizendo é verdade, mas causa escândalo dentro da igreja.
Mas é.
E apenas partindo desse ponto, podemos criar condições para entender com o que estamos lidando.
E um movimento de contra-sistema sempre existiu.
O Jesus que acredito, por exemplo, quer o fim, e a destruição da igreja.
O Jesus que acredito quer a aniquilação dos pastores, poderes, igrejas, dogmas. É como dizer que a vontade de Deus hoje é que a igreja seja destruída.
E é nisso, inclusive, que acredito.
Para que nasça outra possibilidade, outra experiência de liberdade. Para todos. Com os marginais deste tempo. Para eles, com eles, através deles.
Deus é Um.
Ele não veio como homem.
No fundo, Jesus é um estado da alma, um estado POLÍTICO da alma. Onde há um marginal, ali há um Jesus. Jesus é todo aquele que está contra o sistema. Que visita o preso, que visita o doente, que alimenta o faminto, que abraça o marginal. Jesus deveria ser sinônimo de marginal. Mas ele é; esses crentes que estão neo-enfeitiçados.
E é importante escrever isso. Pra você saber com quem você está falando. Ao dizer que defendo Bíblia, ou Deus, ou as coisas que você diz sobre mim, se feche. Você não sabe metade do que eu penso, e o quanto andei, pra pisar no seu chão, e no deles. Você, nem eles, podem me aprisionar.
O resumo das minhas utopias estão nessa pessoa, nesse Jesus, que entregou sua vida para ser morto, pendurado pelos romanos. Não em Marx. E também, não no poder religioso. Morreu a morte que ele, quando criança, viu nas entradas das cidades.
Mas acho que, de tudo que escrevi, esse texto é o que talvez me dará mais problemas. Nem Dória, nem Maiara e Maraisa, nem quem me ameaçou de morte. Isso tudo é lixo, e tudo que falei sobre eles foi lixo. Isso aqui, é a coisa mais dura que escrevi.”
FRANÇA, Anderson.
25/08/2020
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