[23 de maio]
Deixa eu te contar uma história.
Nos idos de 1980, quando nem eu nem você ainda habitávamos esse plano da existência, já havia pessoas sofrendo. Desde muito antes, até muito depois, sei que isso acontece. Mas esse caso, nesse momento, me é de extremo interesse simbólico (e psicanalítico).
Uma jovem de 19 para 20 anos aportou na cidade grande onde havia nascido. Muito criança, mudou-se para uma cidade do interior, e lá passou sua infância e adolescência. Lá construiu, como a maior parte das pessoas, suas lembranças mais acalentadoras, e observou, pouco analiticamente, sua personalidade se desenvolver. Não era uma pessoa de bases muito fortes.
Chegando a sua cidade natal, se instalou na casa da avó. Começou a estudar para cursar alguma faculdade, que ela ainda não sabia muito bem qual seria - o que, no fim das contas, não fez tanta diferença em termos profissionais e acadêmicos.
Tinha seus flertes aqui e acolá. Começou a sair com um homem, namorou-o por pouco mais de um ano: grávida. Seu pai havia falecido recentemente. Ela só fazia chorar - de culpa, de arrependimento, de desespero. O homem, já pelos seus 30 e alguns, não cogitava se casar. Ainda mais com uma pessoa tão frágil. O comunicado veio no mesmo dia em que ele estava decidido a finalizar a história com a moça e seguir com a sua vida de andarilho solitário. Também ele precisava do manual chamado Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios - se bem que eu não posso te dizer, exatamente, como foi que ele reagiu.
A vida tem desencontros horríveis, veja você.
Tiveram que se casar, afinal, e se casaram. Não sei quanto amor houve, de fato, nos anos que passaram juntos. O que ficou impresso: a marca do desencontro convertido em frustração. Desejos e expectativas completamente desencaixados. Mesmo assim, eles tiveram o sangue frio de levar a história adiante. Não sei que tipo de sentimento os conduziu a isso - talvez um sentimento de absoluta responsabilidade diante da vida alheia. Mas não sei o quanto isso sustenta uma alegria de viver.
Foi nesse ninho partido que eu surgi. Foram esses os sentimentos que habitaram as minhas raízes, esses fluidos me nutriram: desencontro, frustração, senso de responsabilidade, luta diária contra desejos profundos que poderiam arruinar com muita facilidade o castelo de areia que se criou nesse meio tempo.
De alguma forma, avaliando isso tudo, me parece muito justificável que as minhas emoções sejam assim tão excêntricas.
Essa é só uma continuação escalafobética das desculpas que se iniciaram ontem. Eu ainda precisava falar do quão alucinada eu estive no dia fatídico em que eu desisti de me conter e destruí os meus frágeis castelos de areia de uma pretensa respeitabilidade social. Like I care, even if I should. I just don't, I just can't. Mas isso fica pra outro momento.
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