[Querido e estimado desconhecido,]
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Voltando para casa no início de uma quase-noite, fui reparando em cada detalhe da paisagem. Tudo parecia vagamente real, não fazia muito sentido... Reparava nas peculiaridades do caminho, mas com uma desatenção e um descaso incomuns, até porque meus sentidos estavam ligeiramente perturbados. Há um fator que me enlouquece sempre e sempre mais, essa coisa que é tão simples e ao mesmo tempo tão rara. Não preciso de mais do que uma hora e quinze minutos para me sentir completamente deslocada do mundo; tudo culpa dessa coisa inverossímil e fácil, isso que muitos chamam de amor, e que eu prefiro nomear encantamento. A presença maligna e deliciosa. Arde em meus olhos e me deixa completamente alheia de mim a sua aparição.
Então eu caminhava pela rua, e o vento soprava forte. Ele fazia a poeira girar em um balé lindíssimo... Até chegar aos meus olhos e me cegar por breves instantes. Contraditório, esse vento... É assim, como você, que consegue me levar beleza e, passados poucos segundos, aborrecimento. E, como o vento, você carrega um perfume cruelmente saboroso.
O vento forte... Eu desejei que ele me transportasse através do longo espaço, e me depositasse, levemente, nos seus lânguidos braços. Desejei que você se esquecesse do mundo, de tudo e de todos, e acreditasse quando eu te dissesse: você surgiu no mundo para me querer e me fazer sentir-me cuidada. Assim como eu fui criada com o mesmíssimo propósito, de te fazer voar nas correntes mais sutis do mais sutil sonho, esse sonho inefável que costumeiramente chamam de amor.
Que, na verdade, é um encantamento - não gosto de dizer que te amo. Porque eu não estaria sendo, de todo, sincera.
E o que eu posso fazer se você me é tão caro, tão valioso? Se os meus pensamentos rotineiros, todos eles voltam-se à sua direção, veneram sua imagem numa idolatria fanática e doentia...
E eu não te amo, porque você é malignamente errado, e completamente tentador.
Meu caminho foi inundado por esses pensamentos. Não conseguia detê-los, mesmo que isso me deixasse à mercê dos perigos que a inconsciência gera - e eu realmente devo ter corrido sérios perigos, e isso não me importava muito. Estava ocupada demais, sonhando acordada com você. Esse é o meu maior perigo.
Cheguei em casa correndo, aflita e calma, com uma lembrança pendurada nos meus lábios risonhos: a sua ironia para com o mundo. Eu gargalhei como uma tola, ouvindo as suas palavras descompromissadas e gracejantes... Seu olhar calmo, seu sorriso indecifrável. Minha fronte falsamente plácida, minha alma borbulhante, minha boca involuntariamente louca. Não, eu não sei reagir coerentemente quando estou no mesmo espaço físico que você.
Subi as escadas, entrei no doce lar - vazio, ainda bem - e me joguei na cama. Despi-me por dentro e por fora, como se quisesse me limpar das impurezas que se agarraram a mim nesse meio tempo em que vaguei, sonhando e esquecendo de respirar. Lembrando apenas de você - mesmo com a certeza do mal que isso me faz. Por dentro e por fora.
E corri para as palavras. Para que elas me alentassem, para que eu pudesse contar ao mundo concreto sobre as minhas percepções, e tentar não me sentir culpada ao saber que o mundo sabia da minha culpa e do meu pecado. As palavras, que podiam ser tanto celulósicas quanto digitais, agora sabiam de tudo. Fossem como fossem, eram meu conforto, desabafo do meu desespero mudo e insanamente alegre.
Escrevendo agora, lembrei-me de ter criado, na manhã vazia, aérea e fria, um poema que reacendia a vida em meus olhos, e adormecia ainda mais o meu corpo. Qual o tema? Você, logicamente. O mote perfeito que, como eu já disse, é digno de durar toda uma vida. Esse poema... Deve estar perdido em algum caderno. Em alguma hora, dia, semana, mês ou ano remoto, eu o encontrarei e criarei uma coragem sem precedentes para revelá-lo. Por mais que o meu engenho seja muito pouco engenhoso, tento colocar arte nas minhas pobres palavras. Para tentar ser sincera, e deixar que as más emoções fluam de mim e desapareçam - em você. Quem sabe sobre as reações que esses meus atos infames podem desencadear?
E vê como todos os meus pensamentos perdem a lógica? Eu queria escrever algo bem rico e contraditório. Fazer disso um presente, e depositar anonimamente em meio aos seus pertences... Para que você, surpreso, descobrisse meu presente e pensasse: “Quem deve ter sido a criatura ridícula que cometeu esse ato tão pueril?” E eu riria de mim mesma, por ser tão inocente, pensando ser franca e original...
Mas me diga, alguém já dedicou semelhante presente a você? Eu me sentiria extremamente honrada de ser inspiração para qualquer obra que fosse, mesmo que ridícula e infantil. É que eu tenho uma triste necessidade de me sentir importante. E esse é o último sentimento que me seria ofertado por você. Tudo bem, não dramatizarei maiores martírios, por mais que isso tudo seja verdade. E sim, você é importante para mim, por mais que a minha obra seja, mesmo, ridícula e infantil.
E eu não te amo. Você me encanta e, como eu já comprovei há algum tempo, esse encantamento é indelével em mim.
Na verdade, creio que você seja uma imagem que a minha mente, sequiosa de emoções complexas, criou para se satisfazer. Você nem parece ser real! Nem parece uma pessoa de verdade; você deve ser um devaneio sonhado por uma criança sonolenta e ingênua, que eu vesti em trajes sensuais e dei meu toque de impossibilidade. Só para Platão se irritar quando eu digo ser esse um sentimento platônico - porque não há nada de arquetípico em você. E eu gosto de te nomear platônico, por mais que eu não te ame.
Saí da frente do computador. Estava tornando-se extremamente irritante o cursor piscando, impaciente, esperando o restante do meu desabafo incoeso. Fui tomar uma taça de vinho e comer um chocolate, para esquecer de te esquecer. Lembrar de você da mesma maneira como eu me lembro da vida. Tentar te fazer ser comum, tal como vinhos e chocolates. Eu me embriago de você, com o mesmo prazer que o vinho e os chocolates me proporcionam. Isso deveria ser comum... Como eu queria que isso fosse comum! Mas não sei fazer com que você seja um mero personagem do teatro irreal da minha vida. É que você é importante e me causa os mais terríveis efeitos – e a outras incontáveis pessoas! -, enquanto eu sou frágil e anônima - a quem eu causo algum efeito? Ah! O que é que eu estou dizendo?
Eu gosto assim, indefinidamente, desse encanto que você exerce sobre mim. Essa é a razão de eu estar escrevendo essa carta que, mesmo anônima, já me denuncia. Fatalidades do estilo.
O curioso disso tudo é que eu não consigo me desvencilhar de um detalhe seu, que me instiga e abre ainda mais as minhas feridas: a sua maneira simples de sobreviver ao mundo e criar uma aura de mundo-próprio que te permite viver outra realidade. Quem sou eu para transpassar essa linha da sua irrealidade e tentar ser parte do seu infinito? Eu, pequena criança jogada no mundo feio e comum. E você... Personificação de uma magia que não existe nos limites das minhas divagações. Eu te sinto, e não consigo te imaginar. Você é como algo que está entre o céu e a terra, e não pertence a nenhum desses dois extremos - mas, ao contrário do que pode imaginar, você não representa o equilíbrio. Você está no meio termo da contemplação de todas as coisas, concretas e metafísicas. Você é o meu purgatório.
Mais uma vez, pensamentos loucos e inconseqüentes. E continuo afirmando que não te amo.
Reneguei meu ambiente, saí de casa. Fui caminhar, para tentar clarear minhas idéias, organizá-las para que elas tentassem conquistar um vão sentido. Respirei o ar frio da noite já estabelecida, que pendia no céu como um manto negro que encobrisse uma cama sem pessoas; havia estrelas poucas e espalhadas, como migalhas de um amor de outrora que se despedaçou na cama e foi recolhido, mas do qual resquícios foram esquecidos, os quais cismam em incomodar as costas frias durante as noites de insônia. Isso tudo era muito solitário, inspirando um sentimento de confusão, como um diário perdido no meio de livros que jamais serão lidos. E tudo isso, absolutamente tudo, é culpa sua.
Não adianta que eu fique formulando comparações literárias e metáforas que aspiram à beleza... Meus pensamentos continuam confusos, girando eternamente numa ciranda irrefreável. Não há solução para o meu tormento.
E talvez eu nem queira solucioná-lo, na verdade; toda a graça dessa minha desdita contente é a sua surrealidade. Eu gosto de não poder te tocar. Gosto de passar tão próxima de você, roçar de leve no seu braço e ir embora, fingindo que você não significa nada. Rir internamente da minha insegurança tão bem disfarçada de indiferença – será que é assim, tão bem disfarçada? Só você poderia me dizer. A única certeza que possuo é que essa situação é realmente engraçada e instigante.
Instigante, porque eu gosto desse jogo que propus a mim mesma. É a maneira de explorar minhas sensações mais excêntricas; e gosto de ter você como referência. Busco em você a inspiração para viver sentimentos diferentes. Toda vez que te vejo, uma nova emoção me aflora – e você não imagina o quão instigante isso é. Por isso não quero deixar jamais de te ver, por isso que eu fico aflita e eufórica ao mesmo tempo. Estou descobrindo outras faces de um mundo abstrato e isso é gratificante, dá mais sabor à vida. Tudo é mais colorido, as coisas ficam tão menos banais!
E imagine só, eu te confessando essas minhas loucuras. Meu propósito era te presentear porque, se você me motivou a dizer segredos que mantenho profundamente no meu âmago, creio que seria irracional não revelá-los à única pessoa que realmente deve conhecê-los. Para que você se sinta ainda mais altivo. Eu deveria continuar a alimentar o seu ego?
Na verdade, não sei se isso faz muita diferença para você e, sinceramente, eu não me importo. Importa-me poder dizer isso tudo. E que eu crie coragem ou não de te entregar esse meu manifesto, isso também não é tão importante – eu creio. Alivia-me ter podido falar os absurdos que me acometem e entorpecem toda vez que te vejo; alegra-me saber que eu consigo me expressar, ainda, por meio das palavras queridas. Preocupa-me e, ao mesmo tempo, diverte-me ver o grau da minha insanidade. Perdoe-me se escolhi a sua imagem para criar os meus devaneios. Você me encanta, inexplicavelmente.
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[Mui carinhosamente,
Amelie.]
Respirei as tuas palavras como a uma brisa gélida... [e gosto muito disto!] Senti nas entrelinhas uma vastidão do Sentir que apenas uma alma sensível poderia possuir. Talvez este ser te seja um encanto por veres nele, my dear, uma outra face de tua própria alma, reflexo ele de teu próprio ser numa tangente do obscuro e desconhecido. Talvez, e é mais que certo, o encanto esteja todo em ti.
ResponderExcluirAmo-te, sinto saudades.
Teu paipai,
Will.