[...]
Cada
página, uma vitória.
Quem
cozinhava o banquete?
A
cada dez anos um grande homem.
Quem
pagava a conta?
Tantas
histórias.
Tantas
questões. (BRECHT, 2012, p. 166)
A elaboração teórica do campo dos Estudos
Culturais visa a compreensão da cultura não mais como algo apartado de uma vida
cotidiana e material, como um cultivo de valores espirituais a ser preservado
por uma elite intelectual: objetiva-se o entendimento das disputas
político-econômicas no campo da produção de significados socialmente
partilhados. Comentando a noção de Raymond Williams sobre uma “cultura em
comum”, Maria Elisa Cevasco (2003) afirma que
O exemplo mais claro da dependência
da criação de processos que são comuns à toda a sociedade é a linguagem; ela é
uma prática social cujo significado é estendido e aprofundado por certos
indivíduos, cuja criatividade depende do grupo social para sua inteligibilidade
(CEVASCO, 2003, p. 20).
Tendo como ponto de apoio essa questão da
produção de uma linguagem partilhada socialmente, coletivamente, e noticiada de
uma maneira inédita ao considerarmos o que vem sendo o desenvolvimento das
tecnologias de informação e comunicação na era das mídias digitais, propomos
uma elaboração crítica a respeito de um acontecimento da história recente
brasileira. Uma organização autodenominada “Revolução Periférica” ateou fogo à
estátua do bandeirante Borba Gato, na cidade de São Paulo, no dia 24 de julho
de 2021; nesse dia estavam
ocorrendo, ao redor de todo o Brasil, manifestações contra o governo do
presidente Jair Bolsonaro. Seis dias depois, é veiculada a notícia de que
haviam sido depredados um mural com a imagem da vereadora Marielle Franco,
assassinada em março de 2018, e um monumento em homenagem a Carlos Marighella, guerrilheiro
que atuava contra o regime militar brasileiro, assassinado em 1969. Os dizeres pichados no
mural, “666. Viva Borba Gato”, associam diretamente o segundo acontecimento
como resposta ao primeiro; a mesma tinta vermelha espalhada sobre a imagem do
rosto de Marielle Franco e sobre o monumento em homenagem a Marighella une os
dois símbolos sob o mesmo signo da resposta violenta.
O que nos intrigou foi a precisão da
resposta: ambas manifestações iconoclastas denotam uma consciência aguda das
ideias que os três ícones sustentavam. De um lado, Borba Gato representando a
história dos vencedores: o trecho do poema de Brecht que trazemos como epígrafe
situa-nos ao lado de quem questiona a posição de privilégio histórico desses
“grandes homens”. Compreendemos o ataque à estátua de Borba Gato como uma
reverberação das manifestações ocorridas na Europa e nos Estados Unidos em
decorrência do assassinato de George Floyd, homem negro estadunidense, ocorrido
em 25 de maio de 2020. Doze dias depois, na cidade de Bristol, Inglaterra, a
estátua de um comerciante de pessoas negras escravizadas foi derrubada e
atirada ao mar, em um ato de protesto contra o racismo e a violência policial
que vitimaram Floyd. O fluxo digital de informações permitiu que as notícias
desses acontecimentos chegassem ao Brasil muito rapidamente, e a concretização
de ato semelhante, aqui, atesta uma consciência política atenta e em movimento,
ao contrário do que o senso comum poderia supor.
No ensaio intitulado “As raízes negras da
liberdade”, Nikole Hannah-Jones (2020) disserta sobre a participação das
pessoas negras na construção dos Estados Unidos como “a mais rica e mais
poderosa nação do mundo”, abarcando as contribuições da mão de obra negra
trabalhadora, bem como suas produções intelectuais e seus movimentos de
resistência. À parte o que seu discurso preserva de um orgulho patriótico que
serve a propósitos neoimperialistas, a autora faz um percurso histórico que
ressalta a relevância dos negros estadunidenses para o estabelecimento do país
como uma democracia. Dentre as contradições e violências desse processo,
Hannah-Jones menciona a perseguição aos homens negros veteranos da Segunda
Guerra Mundial – uma vez que esses homens tivessem vestido uma farda e
defendido a bandeira estadunidense, eles se sentiriam compelidos a lutar pelo
reconhecimento de sua participação na democracia estadunidense. O que se obteve
foi bem diferente do reconhecimento esperado:
No auge do terror racial neste
país, os norte-americanos negros não foram apenas assassinados, mas também
castrados, queimados vivos e esquartejados, com partes de seus corpos exibidas
nas vitrines de lojas. Essa violência tinha como objetivo aterrorizar e
controlar as pessoas negras, e, talvez igualmente importante, servia como um
bálsamo psicológico para a supremacia branca: seres humanos não seriam tratados
dessa forma (HANNAH-JONES, 2020, não paginado).
Isabel Wilkerson (2020), no ensaio “A raça
é a pele, e a casta, o osso”, evoca o caso do estrangulamento de George Floyd
para desenvolver sua crítica ao sistema hierárquico que sustenta a desigualdade
racial estadunidense, em consonância com o que Hannah-Jones apresenta em seu
ensaio através de um apanhado histórico. O tratamento dispensado a Floyd
reverbera essa antiga exibição pública da violência contra as pessoas negras
como forma de, simultaneamente, aterrorizá-las e confortar as pessoas brancas:
a demonstração da supremacia branca serve à manutenção das “castas” às quais a
autora se refere.
No caso brasileiro que aqui evocamos é
possível observar muitas semelhanças quanto às demonstrações de poder que
buscam manter uma ordem vigente. Percebemos um movimento duplo de repressão às marcações
de posicionamento dos representantes da “história dos vencidos”: por um lado, o
ataque à memória de Marielle Franco e Carlos Marighella, duas pessoas negras
que atuaram politicamente e foram brutalmente reprimidas por regimes
brasileiros de tendência totalitária. Por outro lado, temos, ainda, a prisão de
Paulo Galo, líder do movimento dos “entregadores antifascistas”, que vem
buscando a organização e a politização dos trabalhadores que prestam serviços a
aplicativos como o Ifood, o Rappi e o Uber. Paulo Galo assumiu a autoria do
incêndio à estátua de Borba Gato junto a outros integrantes da Revolução
Periférica e, a despeito de o Superior Tribunal de Justiça já haver determinado
sua soltura, Paulo permanece preso.
Walter Benjamin, em suas
teses “Sobre o conceito de história”, afirma que “O dom de despertar no passado
as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador
convencido de que tampouco os mortos estarão em segurança se o inimigo vencer.
E esse inimigo não tem cessado de vencer.” (BENJAMIN, 2012, p. 244, grifo do
autor). Carlos Marighella, Marielle Franco e Paulo Galo fazem parte desses
historiadores que não deixam de resistir a um inimigo que não tem cessado de
vencer.
Em
seu último discurso, por ocasião das celebrações do 8 de março, enquanto trazia
denúncias de violências cometidas pelo Estado contra as populações
marginalizadas, Marielle Franco brada: “Não serei interrompida”. Segundo Anne Carson (2020), no
ensaio “O gênero do som”:
Colocar
uma porta na boca das mulheres tem sido um importante projeto da cultura
patriarcal desde a Antiguidade até os dias presentes. Sua estratégia principal
é criar uma associação ideológica do som produzido pelas mulheres com o monstruoso,
a desordem e a morte (CARSON, 2020, p. 117).
Vozes como a de Marielle Franco, que se
insurgem na luta contra o racismo, a misoginia e o patriarcado, são silenciadas
por representarem uma “desordem” em relação à história dos “grandes
homens”. George Packer, no ensaio “Os
inimigos da livre expressão”, aponta: “Como o Charlie Hebdo demonstrou,
a livre expressão, que constitui a base do trabalho de qualquer escritor, pode
ser um osso muito duro de roer” (PACKER, 2020, p. 263). O medo oblitera a livre
expressão, elemento essencial à construção de uma democracia mais sonhada do
que vivida; haverá sempre quem se disponha a roer esse osso?