terça-feira, 15 de setembro de 2020

Vênus e Adônis


Mitologia grega, vol. 1 - Junito de Souza Brandão [p. 218-220]

[...]

Ares não foi, no entanto, o único amor extraconjugal de Afrodite. Sua paixão por Adônis ficou famosa. O mito, todavia, começa bem mais longe. 

Téias, rei da Síria, tinha uma filha, Mirra ou Esmirna, que, desejando competir em beleza com a deusa do amor, foi por esta terrivelmente castigada, concebendo uma paixão incestuosa pelo próprio pai. Com auxílio de sua aia, Hipólita, conseguiu enganar Téias, unindo-se com ele durante doze noites consecutivas. Na derradeira noite, o rei percebeu o engodo e perseguiu a filha com a intenção de matá-la. Mirra colocou-se sob a proteção dos deuses, que a transformaram na árvore que tem seu nome. Meses depois, a casca da "mirra" começou a inchar e no décimo mês se abriu, nascendo Adônis. Tocada pela beleza da criança, Afrodite recolheu-a e a confiou secretamente a Perséfone. Esta, encantada com o menino, negou-se a devolvê-lo à esposa de Hefesto. A luta entre as duas deusas foi arbitrada por Zeus e ficou estipulado que Adônis passaria um terço do ano com Perséfone, outro com Afrodite e os restantes quatro meses onde quisesse. Mas, na verdade, o lindíssimo filho de Mirra sempre passou oito meses do ano com a deusa do amor... Mais tarde, não se sabe bem o motivo, a colérica Ártemis lançou contra Adônis adolescente a fúria de um javali, que, no decurso de uma caçada, o matou. A pedido de Afrodite, foi o seu grande amor transformado por Zeus em anêmona, flor da primavera, e o mesmo Zeus consentiu que o belo jovem ressurgisse quatro meses por ano e vivesse ao lado de Afrodite. Efetivamente, passados os quatro meses primaveris, a flor anêmona fenece e morre. O mito, evidentemente, prende-se aos ritos simbólicos da vegetação, como demonstra a luta pela criança entre Afrodite (a "vida" da planta) e Perséfone ("a morte" da mesma nas entranhas da terra), bem como o sentido ritual dos Jardins de Adônis, de que se falará mais abaixo. Há uma variante do mito que faz de Adônis filho não de Téias, mas do rei de Chipre, o qual era de origem fenícia, Cíniras, casado com Cencréia. Esta ofendera gravemente Afrodite, dizendo que sua filha Mirra era mais bela que a deusa, que despertou na rival uma paixão violenta pelo pai. Apavorada com o caráter incestuoso de sua paixão, Mirra quis enforcar-se, mas a aia Hipólita interveio e facilitou a satisfação do amor criminoso. Consumado o incesto, a filha e amante de Cíniras refugiou-se na floresta, mas Afrodite, compadecida com o sofrimento da jovem princesa, metamorfoseou-a na árvore da mirra. Foi o próprio rei quem abriu a casca da árvore para de lá retirar o filho e neto ou, segundo outros, teria sido um javali que, com seus dentes poderosos, despedaçara a mirra, para fazer nascer a criança. Nesta variante há duas causas para a morte do lindíssimo Adônis: ou a cólera do deus Ares, enciumado com a predileção de Afrodite pelo jovem oriental ou a vingança de Apolo contra a deusa, que lhe teria cegado o filho Erimanto, por tê-la visto nua, enquanto se banhava. 

De qualquer forma, a morte de Adônis, deus oriental da vegetação, do ciclo da semente, que morre e ressuscita, daí sua katábasis [descida ao mundo inferior] para junto de Perséfone e a consequente anábasis [movimento de saída do mundo dos mortos] em busca de Afrodite, era solenemente comemorada no Ocidente e no Oriente. Na Grécia da época helenística deitava-se Adônis morto num leito de prata, coberto de púrpura. As oferendas sagradas eram frutas, rosas, anêmonas, perfumes e folhagens, apresentados em cestas de prata. Gritavam, soluçavam e descabelavam-se as mulheres. No dia seguinte, atiravam-no ao mar com todas as oferendas. Ecoavam, dessa feita, cantos alegres, uma vez que Adônis, com as chuvas da próxima estação, deveria ressuscitar. 

O mitologema da morte prematura de Adônis, quer se deva a Ártemis, Apolo ou Ares, está sempre ligado ao nascimento e à cor de determinadas flores. A anêmona prende-se, como se viu, à metamorfose do deus naquela flor; a rosa, de início branca, tornou-se vermelha, porque Afrodite, no afã de salvar o amante das presas do javali, pisou num espinho e seu sangue deu à rosa um novo colorido. O poeta grego da época alexandrina, Bíon (fins do século IV a.C.), relata que de cada gota de sangue de Adônis nascia uma anêmona, de cada lágrima de Afrodite, uma rosa.

Pois bem, foi exatamente para perpetuar a memória de seu grande amor oriental, que Afrodite instituiu na Síria uma festa fúnebre, que as mulheres celebravam anualmente, na entrada da primavera. Para simbolizar "o tão pouco" que viveu Adônis, plantavam-se mudas de roseiras em vasos e caixotes e regavam-nas com água morna, para que crescessem mais depressa. Tal artifício fazia que as roseiras rapidamente se desenvolvessem e dessem flores, as quais, no entanto, rapidamente feneciam. Eram os célebres Jardins de Adônis, cuja desventura era solenemente celebrada com grandes procissões e lamentações rituais pelas mulheres da Síria. Muitos séculos depois, Ricardo Reis, o gigantesco Fernando Pessoa, perseguido pela brevidade da vida e pela lembrança do puluis et umbra sumus (somos pó e sombra) de Horácio, recordou os Jardins de Adônis:

As rosas amo dos jardins de Adônis, 

Essas volucres amo, Lídia, rosas, 

Que em o dia em que nascem, 

Em esse dia morrem. 

A luz para elas é eterna, porque 

Nascem nascido já o sol, e acabam 

Antes que Apolo deixe 

O seu curso visível. 

Assim façamos nossa vida um dia, 

Inscientes, Lídia, voluntariamente 

Que há noite antes e após 

O pouco que duramos.

[PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1977, p. 239]




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