sábado, 28 de setembro de 2024

Em busca de um reencontro - comigo, com o outro

     De tanto discutir literatura algumas fichas vão inevitavelmente caindo. Me dou conta, por exemplo, de que minha grande virada psicanalítica como leitora se dá quando paro de procurar por mim mesma no que leio e consigo, enfim, ouvir a voz e a experiência do outro, em camadas cada vez mais profundas. "A leitura do mundo precede a leitura da palavra": se no início da minha vida eu me sentia alienada do mundo por adultos que não conseguiam fazer com que eu me sentisse pertencente - antes, mera espectadora de um teatro sério, em que tudo era urgente e grave demais para que os meus anseios pudessem também ser considerados -, só me restava buscar a mim mesma nas palavras dos outros de que, diziam, eu deveria me apropriar. Sempre o outro antes de mim: que confusão. Nunca deixei de me amar, contudo, porque sempre estava me procurando, afinal: comovente instinto de sobrevivência da minha singularidade negligenciada.
    Daí que meu caminho na literatura tem esses ares de busca por salvação, uma disciplina que, sendo instintiva, carece de método: tem o desespero da tentativa de sobrevivência. Diante do grande enigma do mundo, as palavras me ajudaram a dar contorno a tudo aquilo que eu só conseguia intuir, porque ninguém pôde se dar ao trabalho de me formar da maneira de que eu necessitava: me nutrir espiritualmente para que, forte, eu também pudesse nutrir os outros. Assim se me foi crescendo, por espelhamento, um egoísmo: por ser ponto de apoio, nunca um sujeito, fazia da literatura um ponto de apoio para os meus anseios negligenciados, subnutrida espiritualmente de uma forma tal que era incapaz do gesto fundamental de generosidade que a leitura do texto de outrem exige: para que seja lido em si, e não como ponto de apoio para que eu me sentisse, enfim, reconhecida.
    Não que o encontro não aconteça - inevitavelmente. Mas encontrar a nós mesmos é o que acaba acontecendo também, não o que se deve buscar a priori, porque o mundo do outro é o que é e não se submete às leis da nossa moralidade individual. Buscar no mundo do outro a ratificação das nossas expectativas vai gerar uma frustração tremenda: é bom que estejamos bem resolvidos com o fato de que as pessoas são o que são, e não o que nós gostaríamos que elas fossem para satisfazer as nossas fantasias. Mas se ninguém nunca nos forneceu a graça do reconhecimento e do pertencimento através de uma percepção a mais profunda possível da forma como escolhemos vir a ser, mais ou menos consistentemente, como fazer isso pelo outro - factualmente, ou nas práticas de leitura - e, assim, fazer do mundo um lugar menos inóspito, em que os laços são um pouquinho mais estreitos?
    É uma decisão a ser tomada, a interrupção desse ciclo de violência que se dá pela transmissão da negligência egoísta. Para tanto, devemos entrar em contato com esse desamor que nos vitima, a esmagadora maioria de nós, que vivemos em um mundo cada vez mais adoecido pela solidão do individualismo ("Meu amor, o egoísmo é a pior solidão que existe..."). Que, por sua vez, é um paradoxo: a afirmação burra de um eu desconectado do outro, como se isso fosse possível - porém, sendo feito real, possibilitado, vai gerando todo esse rastro de destruição da nossa potência emocional e psíquica. A clínica psicanalítica fornece um espaço de cura para todo esse horror - seu gesto fundante é o da curiosidade generosa, de alguém que se sentia amado e, portanto, espiritualmente nutrido. Eis a graça. Para além dessa técnica, espero que consigamos encontrar outras formas, mais fáceis e simples, de recriar comunidade, de tal sorte que não nos pareça tão árduo viver experiências em comum que nos devolvam a dignidade de nos sentirmos acolhidos e pertencentes a algo maior que nós mesmos. Sentir-nos seguros, fortes, protegidos e capazes de fornecer esse sentimento uns aos outros de forma recíproca e horizontal: essa é a meta.

sábado, 14 de setembro de 2024

a bad romance

"Esfriou, né?"

Assim começou Ana, tentando uma socialização estranha ao seu humor introvertido. Frequentar os espaços públicos se tornou um novo aprendizado depois da grande peste, que manteve a população de todo o planeta sob ordem de "distanciamento social". Alguns puderam se distanciar mais do que outros, certamente. Uma das primeiras discussões que se colocaram foi sobre qual função era considerada "essencial": tanto para cobrar direitos trabalhistas quanto para lutar pelo direito de manter seu negócio aberto e, assim, continuar a honrar com os compromissos financeiros e familiares. Aqueles que estavam menos em risco eram os que menos se preocupavam em honrar com os compromissos financeiros, é claro. Os familiares... Essa história é mais longa.

Felipe respondeu vagamente, sem entusiasmo. Ana não se deu por vencida, é claro; qualquer coisa se acendeu desde que vira o par de olhos castanhos passando sob a touca de lã amarelo mostarda. Causou-lhe uma impressão curiosa a combinação de cores contra o céu de fevereiro, tempo de um verão fixo - mas, no vale do Paraibuna, sobretudo em seus pontos mais altos, sempre sopra uma brisa fresca que acaba acendendo hábitos bem consolidados. 

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

queria ficar

não vai passar:
vai perder intensidade,
mas a marca fica
como tatuagem
me lembrando
da vergonha,
é claro,
mas também da coragem.

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

em off

chega a ser violento

sua voz
ecoando
nos corredores
do meu inconsciente

terça-feira, 27 de agosto de 2024

oração

quem é você,
que eu almejo?
desde o fundo mais fundo
da minha alma estilhaçada
anseio pelo dia
da sua chegada        ou Deus, ou o Cosmos
- a resposta                não teriam me feito assim, assim
para a solidão azul       como sinto, como sou
que me assola                 porque não sei ser diferente
desde muito antes             não sei fingir, ou maquinar
de eu saber                         estrategizar formas
com o corpo                          de (im)permanência
por que fresta                         porque a honestidade é
a dor se insinua                         o primeiro passo
e penetra                                    e eu sou amor
deixando o vazio                           da cabeça aos pés
e a queixa
e a súplica
por favor
por favor
pelo menos um sinal
uma visão
em sonho ou não
                              apareça