Havendo futuro, e havendo quem se interesse, postumamente, pelo arquivo que eu mesma produzo - o que relatará aquela que se ocupar das minúcias verbais que insisto em deixar aqui e ali?
Há uns quinze anos dizia minha professora de literatura: "se você não quiser que leiam, queime, porque vão investigar até o último bilhete".
Ela me via vibrar, sôfrega, com os arquivos literários que os currículos convencionaram escolarizar. Me via deixar, também, minhas próprias palavras em papel: diários, bilhetes, cartas, mas também poemas que submeti a sua avaliação, minhas "incultas produções da mocidade". Outros, ainda, que pus à avaliação coletiva em um pequeno concurso artístico que em nada deu, porque ser a filha do professor de português fazia (faz) com que tanta coisa seja colocada em perspectiva: como se eu não pudesse (e devesse, até) dar continuidade a um trabalho corajosamente iniciado no coração do desespero pela sobrevivência. Do corpo, sim, mas da alma, principalmente: essa que parece que poucos ainda se dão ao trabalho de acessar. E se dão, quando dão, não dão o relato, não produzem o arquivo... Não comunizam.
Talvez entendamos melhor a gravidade de ser quem somos: as amarras que nos prendem às necessidades cotidianas, os planos de um crescimento financeiro que signifique crescimento individual e ponto, porque essa é a nossa ontologia.
A graça de ser quem somos se dá no reconhecimento dos contornos que delimitam o nosso vazio, esse abismo que, se ignorado, toma o poder sobre nós e nos obriga aos vícios... Respostas possíveis à pergunta que o vazio permanentemente nos coloca e que, se não nos entregamos a ele, somos incapazes de responder de outra forma.
Fui colocada em xeque, e tantas coisas desmoronaram ao redor da minha autopercepção que não sei o quanto de mim restará dessa passada em revista. Isso é estar sensivelmente aberta ao outro - mas eu deveria conseguir mensurar melhor seus efeitos, para que a vida exterior não signifique vida ou morte sempre que eu preciso me aventurar fora de mim.
As relações humanas são cheias de nuances, e as mágoas falam bem por mim há muito tempo. Na barra lateral, explore o arquivo: você vai perceber o que é isso que digo de forma vaga e confusa. Não me importo.
Deixo, aqui, um fragmento dos manuscritos:
02/11 - dia de lembrar a morte no livro de mágoas
Vocês gostam que eu seja baluarte de um mundo novo. Devem achar graça no meu otimismo, esse mesmo que os inspira, alimenta, permite acessar aquela luz bruxuleante no fundo da caixa de Pandora, a esperança. Quase não creem que ainda haja alguém a quem o cinismo não tenha conseguido de todo corromper. Alguns, de tão incrédulos, tornam-se até detratores: o que fazer com a beleza diante do horror do mundo? Como se fosse a lei do horror o correto. Como se houvesse "correto".
Os que não se escandalizam com a nudez da minha sinceridade olham para ela com malícia, calculando a forma correta de extrair o máximo sem que eu (ingênua!) perceba que há poucos dispostos a retribuir - o mínimo. Acontece que não só de um otimismo tolo vive um coração que anseia pela verdade, palavra estilhaçada em inúteis fragmentos que eu vivo a tentar reconstituir.
Vocês acham graça do/no meu esforço. Apreciam que eu mate a cobra e mostre o pau - rindo, apontam entre si para o ninho, que o otimismo não me permite enxergar. Minto: eu não enxergo porque não quero: acho melhor não me concentrar nele. Mas talvez deva repensar essa decisão.
Não pensem que não sei do escárnio que corre ao fundo de suas despretensiosas investidas e minhas generosas respostas. Não pensem que eu não serei corajosa o suficiente para tomar a decisão que meu coração ingênuo apontar, quando for a hora. Não serei a primeira a fazer isso, afinal.
Talvez entendamos melhor a gravidade de ser quem somos: as amarras que nos prendem às necessidades cotidianas, os planos de um crescimento financeiro que signifique crescimento individual e ponto, porque essa é a nossa ontologia.
A graça de ser quem somos se dá no reconhecimento dos contornos que delimitam o nosso vazio, esse abismo que, se ignorado, toma o poder sobre nós e nos obriga aos vícios... Respostas possíveis à pergunta que o vazio permanentemente nos coloca e que, se não nos entregamos a ele, somos incapazes de responder de outra forma.
Fui colocada em xeque, e tantas coisas desmoronaram ao redor da minha autopercepção que não sei o quanto de mim restará dessa passada em revista. Isso é estar sensivelmente aberta ao outro - mas eu deveria conseguir mensurar melhor seus efeitos, para que a vida exterior não signifique vida ou morte sempre que eu preciso me aventurar fora de mim.
As relações humanas são cheias de nuances, e as mágoas falam bem por mim há muito tempo. Na barra lateral, explore o arquivo: você vai perceber o que é isso que digo de forma vaga e confusa. Não me importo.
Deixo, aqui, um fragmento dos manuscritos:
02/11 - dia de lembrar a morte no livro de mágoas
Vocês gostam que eu seja baluarte de um mundo novo. Devem achar graça no meu otimismo, esse mesmo que os inspira, alimenta, permite acessar aquela luz bruxuleante no fundo da caixa de Pandora, a esperança. Quase não creem que ainda haja alguém a quem o cinismo não tenha conseguido de todo corromper. Alguns, de tão incrédulos, tornam-se até detratores: o que fazer com a beleza diante do horror do mundo? Como se fosse a lei do horror o correto. Como se houvesse "correto".
Os que não se escandalizam com a nudez da minha sinceridade olham para ela com malícia, calculando a forma correta de extrair o máximo sem que eu (ingênua!) perceba que há poucos dispostos a retribuir - o mínimo. Acontece que não só de um otimismo tolo vive um coração que anseia pela verdade, palavra estilhaçada em inúteis fragmentos que eu vivo a tentar reconstituir.
Vocês acham graça do/no meu esforço. Apreciam que eu mate a cobra e mostre o pau - rindo, apontam entre si para o ninho, que o otimismo não me permite enxergar. Minto: eu não enxergo porque não quero: acho melhor não me concentrar nele. Mas talvez deva repensar essa decisão.
Não pensem que não sei do escárnio que corre ao fundo de suas despretensiosas investidas e minhas generosas respostas. Não pensem que eu não serei corajosa o suficiente para tomar a decisão que meu coração ingênuo apontar, quando for a hora. Não serei a primeira a fazer isso, afinal.