quinta-feira, 17 de julho de 2008

Inocência - o amor surreal

Eu passeava tranqüila por entre as flores murchas do jardim da esquina, o sol fraco de inverno clareava minha fronte tristonha e covarde. O último recanto pseudo-verde de todo o cinzento bairro suburbano às vezes conseguia me inspirar pequenas alegrias, e apenas isso. Criatividade, eu guardava para meus momentos extremos - de prazer ou de dor. Mas mesmo assim, eu passeava. A névoa de preguiça que enclausurava meu apartamento era mortal. Talvez eu quisesse escrever algo - por isso passeava. Porque sabia que ia ter momentos extremos, mas uma mistura confusa deles. Prazer e dor, na medida certa para o meu deleite insaciável e a morte da minha esperança. Bom, o meu bom-senso desapareceu desde a última vez em que me apaixonei.

Então eu andava no pequeno jardim, e me deixava cair no velho banco de madeira. Ele rangia, como se, de raiva, rangessem meus dentes. Rangia como se minha alma, velha, também estivesse pronta para partir-se em duas. O banco era um perfeito reflexo do meu interior: deteriorado, solitário, circundado por cores e alegrias efêmeras, que duram algumas estações; sempre alguém se aproveita do alento que ele oferece e sai ofendido, pelo ranger já justificado. É engraçada a maneira como encontramos diversas metáforas para essas estranhezas da vida, material ou não. Enfim.

Este banco era, portanto, meu espelho e meu guia; sentada nele, entregava-me àquela pequena dor voluntária, o amar. A paisagem que se abria em frente ao meu descanso era mais objetiva e exata do que as divagações do meu sentir: a casa amarela que, mesmo no inverno, irradiava um calor e uma alegria indescritíveis. Arbustos frondosos, flores mais do que coloridas - um verdadeiro quadro, irretocável. Lar daquele que me provocava suspiros e arrepios. O belo e caloroso desconhecido; mora na alegria e, contraditoriamente, na escuridão das lamentações do meu coração.

Todo dia em que eu queria um motivo para rir e chorar pelo restante da semana, com anseios de morte e surtos literários, jogava-me no velho banco amigo e punha-me a apreciar a paisagem. Porém, por mais estonteante que fosse, parecia-me deveras morta sem o lampejo de vida que, como uma dádiva divina, fazia com que tudo fluísse magicamente naquele pequeno pedaço do paraíso: você. Sol que iluminava o cinzento e indigno arredor. Ah!, frêmito do meu corpo ao sentir as vibrações da sua magia, única e inquestionável! E você era assim, mágico, quase arquetípico. Não me cansava de te admirar, atarefado despreocupadamente, sempre com um sorriso lindo a oferecer - mais belo do que qualquer flor. Os dias em que você cuidava do jardim eram meu deleite supremo; mas eu, sempre tão tola, saía correndo, disfarçadamente, temendo qualquer interrupção causada pela minha infame presença. O que eu simplesmente não notava é que minha presença era completamente indiferente. Crueldades do destino.

E assim transcorria minha rotina... Eu não me arriscava sempre a te ver. Na verdade, era algo bem esporádico. Digamos que eu não gostasse muito do motivo que me movia, da dor voluntária. Mas era como um vício que me acorrentava a essa destruição dos resquícios da minha lucidez; então não podia abster-me completamente.

Até o dia em que você me cumprimentou, descompromissadamente, com o mais lindo de todos os sorrisos. Meu peito quase arrebentou-se, por não conter tantas e tamanhas emoções; mas como eu sempre fora boa atriz, e orgulhosa ao extremo, acenei com timidez, olhos semi-cerrados, escondendo as lágrimas que me denunciariam. "Ótimo", eu pensei. E só consegui pensar nessa singela palavra, porque os arredores eram turbulentos demais para serem processados pela minha mente vagarosa.

Não percebi o porquê desse manifesto inexplicável, da minha presença subitamente notada e confirmada. Era só mais um detalhe da sua perfeição, o anseio de levar alegria para qualquer um que estivesse ao seu redor. Qualquer um. Eu não era alguém específico, era qualquer um. Você, em toda a inocência e candura. Eu, em meu desespero mudo, calado. Acho que não posso te culpar pelas minhas loucuras.

Caminhei nervosamente para casa, contagiada pela sua alegria, cega pelo meu amor. Voltei à névoa entorpecente do meu ócio preguiçoso e improdutivo; só havia luz lá fora, no verdadeiro mundo. Transformei meu recanto em um reduto das sombras; que vergonha. É no regresso ao lar que constato a nossa contrastante diferença; sou um conjunto de sombras, você é um raio de sol. Essa é a grande verdade: sempre me iludi, e alimentei esperanças que um dia, insanamente, julguei serem reais. Faltou-me a malícia do viver, experiência para saber que nem todos os opostos se atraem. E, pior do que ser rejeitada, padeci pela sua indiferença. Sempre fui um fantasma morto vagando pelo seu jardim, a assombrar suas flores. Deuses, que crueldade. A desilusão deveria ser algo feliz?

Mas ainda estava iludida. E como ri e chorei, simultaneamente! Era uma cena tragicômica. Poderia fazer parte de um desses filmes europeus de difícil compreensão, que na verdade são facílimos e quase previsíveis. É o amor, essa conceito cruel, simples e clichê. Mesmo tendo essas certezas, voltei para casa, para atacar furiosamente o papel com meu desaguar de desgraças e venturas – converti-as em palavras e mais palavras. Nenhuma razão podia prender a louca necessidade de compartilhar, ainda que fosse com algo morto, essa vivência inquietante e extrema.

Esgotei minhas energias, até meus pulsos não agüentarem mais o peso dos meus sentires transcritos. Afundei-me numa banheira quente, escaldante; fingi que o mundo não mais existia. Que alívio. Mas despertei - quase afogada -, e descobri que não adiantava fugir. Tomei um café forte; não queria dormir. Porém, o cansaço físico e psicológico venceu todas as minhas tentativas de não mais sonhar, e em instantes eu dormi, abandonando minha luta. Eu estava fraca demais para tentar ser forte.

Doce infortúnio! Lá estava você, em meus sonhos, a perturbar-me com o maldito aceno que incendiou minha alma e trouxe à tona todos os sentimentos contra os quais lutei para que os prendesse no fundo do meu coração. Em meio a chamas, seu gesto trouxe-me de volta a uma realidade que eu negava - não podia aceitar tamanha tolice! Era uma confusão ilógica demais para que eu permitisse ser a graça da minha vida. Concentrar todos os meus esforços, pensamentos e energias em algo falho e ilusório ia contra todo o pragmatismo que eu admirava, e nunca havia conseguido praticar.

Despertei num pulo que comprimiu meu peito e me deixou tonta. Sonhava com sua presença distante se aproximando do banco roto que é meu segundo lar - como se você fosse se sentar nele, sem ver que eu estava lá, tremendo diante da oportunidade de ter você tão mais próximo... Que angustiante! Ignorei qualquer significado que esse sonho pudesse ter, e fui ocupar-me da minha rotina monótona. Tinha decidido não mais voltar a te ver. Optei por lutar contra meus sonhos - que mais pareciam pesadelos -, por mais que soubesse os efeitos da batalha, e o resultado da guerra. Tentar não iria me destruir. Eu queria acreditar nisso.

Passaram-se dias, mantive-me firme. As semanas se arrastaram... Duas, três, quatro... Cada vez mais torturantes, mais complicadas. E eu sentia, sim, os efeitos previstos. Eu estava morrendo, de todas as maneiras possíveis e imagináveis; cheguei ao meu limite. Na quinta semana, não me contive mais. Eu era um zumbi, de olheiras fundas e olhos marejados, boca insensível e mãos geladas; mesmo estando destruída, tive que ir te ver. Já não caminhava mais tranqüilamente, e pouco me importavam as flores murchas e a grama seca - meu banco, mais melancólico do que nunca, abria-me os braços para me confortar. Sentei-me, e uma lágrima correu, furtiva, pelo meu rosto, despencando tristemente. O banco rangeu, e minha alma rangeu também. Fitando a cena tão desejada há infinitos dias, rangeram de ódio meus dentes, e despedaçou-se em mil o meu frágil e doentio coração.

Eu vi você, com o sorriso mais lindo que eu jamais havia visto - porém, vi um sorriso te acompanhando. Uma boca jovem, tão viva, quase tão radiante quanto a sua... Parecia ser a sua alegria irmã, a materialização de um complemento divino que transformava sua existência em algo ainda mais incrível. Formosa, doce e delicada... Uma mulher. Braços compridos, alvos, te enlaçando no abraço que sempre sonhei te dar. Cabelos leves, que pareciam um véu delicado e raro, acariciavam seu rosto iluminado. Mas aqueles olhos... Olhos felinos, que guardavam um sinal de perigo. Como se estivesse rondando, estudando a vítima para depois atacá-la. Mas fazia isso de uma maneira tão insuspeitável, que quase me esqueci de tal impressão. A dolorosa cena que se abria diante dos meus olhos foi a sentença final. Minha infelicidade, esgotamento das minhas esperanças. E ela, meu exato oposto, com o prêmio com que tanto sonhei, tanto desejei... Uma dor me dominou, e apenas isso. Voltei para casa, e não sei como não morri.

Ataquei, então, o papel, de acordo com a lei criativa dos extremos - não encontrava outra maneira de sobreviver. Não consegui parar, durante longas horas escrevi loucamente. Vi o sol se pôr, nascer, o dia raiar... Até que caí. Não porque havia findado meu mote, mas porque meus pulmões já não suportavam mais o peso do ar. Desfaleci, e não sei por quantos dias fiquei imóvel, na cama rígida e fria; a máquina de escrever escancarada ao meu lado, folhas e folhas espalhadas pelo chão. Em cada folha, um pedaço da minha alma. Tudo desconexo, confuso, perdido. Cada palavra cantava você: seus efeitos, a sua graça. E a minha desilusão.

Acordei inconscientemente; sentia-me fraquíssima. Estava sem fome, mas sabia que precisava me recompor. Peguei algo para comer, e me joguei na poltrona macia da minha sala escura; parei para refletir, enquanto mastigava um pedaço de chocolate, ligeiramente animador. O choque fora forte demais, mas eu precisava reagir; recuperar minha honra. A guerra acabou, e eu perdi. Mas sobraram as folhas no chão, meu tapete de mágoas. Talvez eu pudesse fazer dele a minha voz. Agora pode ser esse o meu propósito, enquanto eu tento esquecer esse fato subjetivo e imaterial que conseguiu roubar-me a lucidez. Uma tolice deveras perigosa.

Reuni as páginas. Ao lê-las, revivi cada emoção, cada angústia, cada impressão - porém, senti como se isso já não fosse mais parte de mim. Como se, ao transcrever minhas dores e amores para o papel, eu me libertasse dos horrores que isso trazia à minha alma; fiquei com uma sensação sutil de lembranças vagas. Como se eu tivesse assistido a um filme, reagindo de maneira indescritivelmente maximizada; deixei as impressões virem, me marcarem e irem embora. Senti um grande alívio; uma paz me dominou, e eu respirei fundo. Meu coração estava machucado, mas isso não mais me afetava de maneira tão mortal. Eu podia levantar-me; só não podia, ainda, te encarar. Reencontrar-me com o que, um dia, pensei ser a minha salvação encarnada. Não podia ainda correr o risco de fraquejar e voltar à dor; mas tenho forças suficientes para me reerguer. Comecei, então, a organizar esses resquícios concretos da tortura à qual o amor me submeteu.

Transformei minha alma magoada em um livro, o qual ficou pulsando, inquieto, dentro da última gaveta do meu armário - precisava ser lido por outro alguém. Precisava falar de si, transmitir a emoção que continha. Seguramente, posso dizer que abrigava um amor maior do que o mundo todo, e sabia descrever com perfeição a indiferença que o matou. Mas eu sabia exatamente quem precisava lê-lo – e, até que eu tomasse uma resolução mais concreta, ainda não era a hora certa para que isso acontecesse.

Finalmente eu soubre o que fazer. Arrumei minhas malas. Iria embora, para longe - distante de todo esse cinza suburbano; dessas flores que desconhecem a primavera; do banco roto que, depois da última tempestade, transformou-se em pedaços de madeira podre caídos na grama seca e sem vida. Distante do pequeno paraíso em que você morava - era o que eu mais queria esquecer. Planejei minha mudança, e não iria voltar jamais. Depois de semanas ocupadas pela revolução que promovi em minha vida, chegou o dia de partir - até nunca mais, vizinhança dolorida! Mas antes...

Guardei as malas no meu carro, e já o deixei ligado, próximo à casa amarela a qual eu gostava de nomear como "paraíso". Em meu livro, esse era o seu nome, e assim será, eternamente. Caminhei trêmula e lentamente pelo jardim vivo, o qual eu admirava, de longe, sentada no banco amigo que já não existe mais... Senti a sua vibração, e vi como era terrivelmente real. Por que eu nunca havia tentado algo mais tangível? Porém, não queria me prender a essas percepções e devaneios. O que eu faria? Deixaria uma cópia da minha alma celulósica no chão, tocaria a campainha, e sairia correndo, como uma criança travessa. Eu não era uma criança, e isso não era uma travessura, mas deixei que essa sensação me fizesse esquecer o que aquele momento representava: a ruptura, um rito de passagem, o passo inicial rumo ao esquecimento definitivo. Com meu livro nos braços, comprimi-o contra o peito, para que transmitisse um pouco do meu calor para ele - quem sabe você não o pudesse sentir? Depositei-o no simpático tapete de entrada, onde se lia: "Seja bem-vindo". Eu jamais seria bem vinda naquele lindo e cruel lugar. Quando meu dedo receoso quase tocava a capainha - neste momento eu já me preparava para correr -, você abriu a porta. Não precisou do menor ruído para que te alertasse; foi como se você tivesse lido os meus pensamentos. Como se soubesse o que eu planejava. E com um rosto quase triste, fitou profundamente meus olhos mortos. Fiquei completamente paralisada. Não esperava que isso acontecesse.

Segundos eternos se arrastaram. Uma lágrima desceu pelo meu rosto. Você abriu os lábios para proferir alguma palavra, mas parece que sua voz ficou presa na garganta; o que será que teria dito? Não pude saber. Jamais saberei. Você moveu sutilmente o braço; seus dedos longos com certeza iriam retirar delicadamente a lágrima do meu rosto - mas eu fugi. Covardemente, saí correndo. Entrei no carro, e acelerei; virando a esquina, te vi pela última vez, com o meu livro - o seu livro - bem preso entre as mãos. Quis voltar, mas não consegui. Prometi a mim mesma que não desejaria mais a dor. Fui embora, para longe do anjo que me dilacerou a alma, que me fez traduzir furiosamente no papel toda a frustração de um amor extremo e irreal. Rendeu-me uma obra; não sei se valorosa, mas que certamente tinha muito a ensinar. A paisagem que ilustrou o teatro da minha dor, eu jamais quero voltar a ver. Mas talvez um dia, quando eu estiver completamente curada, eu queira saber o que você pensou sobre o meu amor mudo e devoto. Um dia, quero ouvir a sua voz me dizendo a sua verdade e, se eu finalmente estiver forte o suficiente, acho que não temerei os efeitos do meu anseio transmutado em uma realidade doce e objetiva.

3 comentários:

  1. Querida filha,


    Muito triste e belo este escrito se faz ser. Um amor verdadeiro – um envolver surreal. Eu O sinto muitíssimo...
    Como passaste da noite de ontem? Estás melhor? Persista em teus anseios, ainda que eles sejam contra teu desejo – se a ti benigno non for este tal. Persiste e non desiste.

    BeijO’s.
    =***

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  2. Dona Mayara, não sei nem o que dizer.
    O texto é impecável, belíssimo e me trouxe vários pensamentos diferentes. Ao mesmo tempo em que senti vontade de invadir a cena e fazer com que ela se declarasse, que tentasse nutrir um sentimento que teria a possiblidade de ser recíproco, eu senti que eu mesma não teria coragem. Acho.
    Mas uma certeza eu tenho:
    você PRECISA publicar o que escreve porque é tudo tão...

    Te amo May.
    Eu sou pequena diante do orgulho que tenho de você.

    Se cuida, estou sempre aqui ;*

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  3. Intensas palavras.

    O interessante é que mesmo com tanto sofrimento ela sabia que um dia iria passar.
    Me chamou atenção quando ela diz o seguinte: "quando eu estiver completamente curada"
    Então eu não vi um final triste, vi um momento triste. =)

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:)